4. A REVISÃO CONTRATUAL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
4.1. A TEORIA DA EXCESSIVA ONEROSIDADE E A REVISÃO CONTRATUAL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
O Código de Defesa do Consumidor é tema atual e recente, datando de 11 de setembro de 1990, quando foi promulgada a lei nº 8.078. Sua base de sustentação é puramente constitucional. Sendo previsto nos art.5º, inciso XXXII, art.170, inciso V e art. 48. ADCT da Constituição Federal brasileira.
Assim, dispôs a constituinte em 1988 que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" e mais, no art.48 ADCT terminou que "o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do Consumidor". A legislação consumerista também teve influência de legislações estrangeiras, contudo, foi um mérito dos brasileiros ver promulgado um instrumento moderno, original e eficiente na proteção e defesa do consumidor. O Código de Defesa Do Consumidor foi um "divisor de águas" em nosso ordenamento jurídico, sendo referência às legislações estrangeiras.
Voltando ao assunto teoria da imprevisão, não se pode afirmar que foi adotada pelo Código de Defesa do Consumidor, pois esta é mais abrangente do que a "excessiva onerosidade superveniente". É claro que não se pode negar a influência e fundamentos da teoria da imprevisão sobre o artigo 6º, inciso V do referido diploma legal. Assim, dispõe o artigo:
Art.6º. São direitos básicos do consumidor:
V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas; [grifo nosso]
Numa primeira análise, já fica estabelecido que a tutela estatal e titularidade do direto se volta para o consumidor. Isto fica evidente quando o caput artigo afirma que "são direitos básicos do consumidor". Essa proteção, muitas vezes exagerada, não é proposital em face da hipossuficiência do consumidor nas relações consumeristas. Nesse sentido acrescenta Fabiana Rodrigues Barletta61:
Essa proteção especial que lhe é dispensada ocorre de maneira proposital, já que, expressamente, a Constituição brasileira dispõe em seu artigo 3º, III, que "constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais", procurando pois, garantir uma isonomia não apenas formal entre as pessoas, mas sim material ou substancial, isto é, considerando as desigualdades fáticas, a Constituição legislou a fim de equalizar uma situação real de desigualdade entre fornecedores e consumidores.
É sempre bom relembrar os princípios de ordem pública, que regem o Código de Defesa do Consumidor, tais como: o do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo (art.4º, inciso I), da boa-fé e do equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores (art.4º, inciso III). Tais princípios são norteadores na política de relações de consumo.
Dando continuidade ao estudo, pode-se dividir o inciso V, do artigo 6º, em duas partes. A primeira se refere à "modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais", não havendo relação nenhuma com a "onerosidade excessiva", reflexo da teoria da imprevisão. O legislador visou restabelecer o equilíbrio das prestações inexistentes desde a formação do vínculo contratual. Neste caso, o contrato já nasce eivado de um desequilíbrio e, com base nos princípios da boa-fé e do equilíbrio das relações, ele deve ser revisto para o estabelecimento da comutatividade das prestações.
A segunda parte é a que trata propriamente do "onerosidade excessiva", acrescentando a necessidade de "revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas". Assim, o Código de Defesa do Consumidor adotou como causa da revisão contratual a "excessiva onerosidade superveniente", distanciando-se da teoria da imprevisão propriamente dita.
Analisando o dispositivo, veja-se que não se adotou o requisito da imprevisibilidade, fator indispensável à teoria da imprevisão. Talvez esta postura do legislador estivesse ligada diretamente ao princípio de vulnerabilidade do consumidor, sempre enquadrado como hipossuficiente na relação consumerista. A lei visou estabelecer de fato a isonomia postulada pelo artigo 5º da Constituição, tratando "os iguais com igualdade e os desiguais com desigualdade".
Pode-se observar ainda dois requisitos para a revisão judicial, sendo eles os "fatos supervenientes" e "excessiva onerosidade". A expressão "fatos supervenientes" apenas nos revela uma questão situacional, de tempestividade da ocorrência do fato, que torne a prestação demasiadamente onerosa ao consumidor, face ao desequilíbrio na base econômica (negocial) do contrato. Desse modo, implicitamente, pressupõe-se a existência de um contrato de execução diferida de prestação duradoura ou periódica. Os fatos supervenientes, só irão ocorrer se o contrato se projetar para o futuro, pois é nesse interregno temporal entre a vinculação e a execução que incidirão fatos capazes de alterar a base negocial do contrato.
Outro ponto fundamental é a "onerosidade excessiva", o acontecimento que incidiu sob o contrato diferido deve ser apto a proporcionar um desequilíbrio entre a prestações, capaz de deslocar um ônus excessivo ao consumidor, a ponto de lhe causar uma lesão subjetiva se o contrato fosse cumprido. A onerosidade excessiva esta diretamente ligada à base do negócio jurídico, ou seja, a base negocial e econômica do contrato. O consumidor, ao exercer sua liberdade de contratar e se vincular a um determinado contrato, estará subordinado-se ao estado fático vigente à época da pactuação. Assim, advindo algum fato, que altere essa normalidade, onerando o consumidor além do que foi estabelecido, este poderá utilizar-se da revisão contratual.
Vale a pena frisar que a imprevisão é dispensável quando se trata de revisão ou resolução no direito do consumidor. O fato superveniente à contratação pode ser previsto ou não. Eis o ponto de distinção entre a Teoria da Imprevisão e a "excessiva onerosidade superveniente" prevista no Código de Defesa do Consumidor.
Em se tratando da resolução contratual, o Código de Defesa do Consumidor adotou outra postura, prevendo a nulidade das cláusulas contratuais. Assim dispondo:
Art.51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
[...]
IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou seja incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;
[...]
§1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
[...]
III – se mostre excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e o conteúdo do contrato, o interesse das partes e outra s circunstancias peculiares ao caso.
[...]
§2º A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes.
Veja-se que é acentuada a preocupação do legislador em manter o contrato pactuado. O que muito faltou aos mentores do novo Código Civil Brasileiro. O Código de Defesa do Consumidor inovou nesta área e foi muito feliz, pois criou uma legislação moderna e eficaz.
A legislação consumerista incorporou o princípio da função social do contrato, colocando à disposição dos contratantes a revisão, como forma de preservação dos pactos e restabelecimento da comutatividade das prestações contratuais. Tanto é assim que, mesmo prevendo a nulidade contratual no §2º do artigo 51, ainda adverte as partes para o melhor caminho da revisão. Pode-se dizer que, no caso de excessiva onerosidade, a regra é a revisão e a exceção é a nulidade. A anulação é tratada de forma isonômica no dispositivo legal, pois visa prevenir de uma eventual lesão tanto o consumidor (devedor), quanto do fornecedor (credor), ao mencionar "ônus a qualquer das partes".
A nulidade de alguma cláusula contratual, não gera a invalidade do contrato, o que ocorrerá caso não seja restabelecida a comutatividade das prestações e persista desvantagem a uma das partes. O contrato só continuará valendo se for bom para ambas as partes.
5. CONCLUSÃO
No decorrer deste trabalho, foram várias as construções teóricas sobre a " A Teoria da Imprevisão e a Revisão Contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumido". Assim, para o melhor entendimento do tema proposto bem como, de suas peculiaridades, reportamos a formação do contrato e seus princípios basilares.
No tocante à formação do contrato, viu-se que se trata de um acordo de vontades, destinado a constituir uma relação jurídica de natureza patrimonial e de eficácia obrigacional. Assim, fundamentado na vontade humana, ou seja, na livre iniciativa, as partes exercem uma faculdade de contratar. Com efeito, depois de feita a opção, essa liberdade se exaure com a formação do contrato, sendo as partes vinculadas a seus termos.
O contrato como vimos foi e ainda continua sendo um instrumento eficaz de aproximação de pessoas e de circulação de riquezas, e assim como o Direito é reflexo dos fenômenos histórico-sociais, sobretudo, sofrendo variações no tempo e no espaço. Desse modo, rompendo com os ideais de igualdade, liberdade e autonomia da vontade, implantados pelo liberalismo do século XIX, o contrato adquire uma nova roupagem nos fins do século XIX e entra no novo milênio (século XX) com um caráter mais humanístico e social.
O princípio do pact sunt servanda que antes era tido com absoluto, passou a ser relativizado, dando lugar à teoria da imprevisão, vertente moderna da rebus sic stantibus. Os dois institutos passaram a coexistir como um todo harmônico. A regra geral, que ainda prevalece, é da obrigatoriedade contratual, mas sobrevindo fato anormal a contratação, decorrente de acontecimento imprevisível, aplica-se o remédio jurídico da teoria da imprevisão como pressuposto da revisão contratual.
Como se vê, o contrato passa a atender sua função social, cabendo ao Estado conciliar os interesses individuais, com os da coletividade. Assim, apesar do princípio da força obrigatória procurar resguardar a autonomia da vontade, a liberdade de contratar e a segurança jurídica nos contratos, a teoria da imprevisão vem proteger o bem comum, o equilíbrio contratual, a igualdade fática entre as partes, o não-enriquecimento ilícito e principalmente assegurar que os interesses individuais não prevalecerão sobre o social.
Sob esse prisma, o instituto da imprevisão é introduzido em nosso meio jurídico, primeiro na jurisprudência e na doutrina, mais tarde na legislação civil. Infelizmente o legislador brasileiro, ao prever a matéria nos artigos 478, 479 e 480, não ateve as peculiaridades da teoria da imprevisão propriamente dita. Os artigos citados foram cópias fieis da legislação italiana.
Além do mais, incorporaram à nossa legislação concepções contraditórias ao ordenamento jurídico brasileiro. O artigo 478 ao invés de preconizar a manutenção dos pactos, objetivando sua função social, fez pior, ditando como regra geral e única alternativa ao devedor, a resolução contratual.
Como se não bastasse tal contra-senso, no artigo 479, o legislador incumbiu ao credor, que despropositadamente é chamado de "réu", o ônus da revisão contratual. Contudo, o que deveria prevalecer é a regra geral da revisão e não a resolução, pois essa é exceção dentro do contexto do nosso ordenamento. Finalizando, a revisão deveria ser um direito e um dever das partes, pois buscando no princípio da boa-fé e da equidade, a nenhum dos contratantes seria interessante a resolução pura e simples do contrato.
Outro aspecto interessante é o Código de Defesa do Consumidor, onde por bom senso prevaleceu a revisão contratual. Contudo, não se pode falar na teoria da imprevisão neste código, pois o pressuposto da revisão é a "onerosidade superveniente". Sendo dispensável o requisito da imprevisibilidade inerente àquela teoria. Ainda, o legislador do código consumerista não previu a resolução contratual, apenas fez menção à nulidade das cláusulas excessivamente onerosas, que não estão sujeitas à revisão.
A teoria da imprevisão, apesar de sua existência milenar, é tema novo em nosso ordenamento jurídico. Possuindo natureza incidental nas relações contratuais, fundamentada no equilíbrio das prestações, na manutenção da base negocial sobre a qual foi emitida a vontade de contratar. Assim, essa teoria se coloca como remédio jurídico, destinado ao restabelecimento da comutatividade das prestações contratuais, afetada por eventos imprevisíveis que as tornem excessivamente onerosas à parte que, por ventura, venha adimplir o contrato, a ponto de lhe causar uma lesão caso o contrato seja cumprido.
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