Resumo: Ao olharmos pelo retrovisor da história, é possível observar que a mulher, nas mais diferentes culturas, sempre foi aviltada e vilipendiada em seus direitos. Nesse sentido, a Lei n.º 11.340/06, conhecida popularmente como Lei Maria da Penha, foi editada com o objetivo de conferir proteção e assistência às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, coibir a violência de gênero, bem como para atender ao comando inserto no art. 226, § 8º, da Constituição da República, aos tratados e convenções internacionais chancelados pelo Estado brasileiro, para a prevenção e erradicação da violência contra a mulher. Não obstante, a Lei Maria da Penha tem sido alvo de inúmeros questionamentos perante o Supremo Tribunal Federal (STF), guardião da Constituição, quanto à sua constitucionalidade.
Palavras-chave: Lei Maria da Penha. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Direitos humanos. Violência de gênero. Constitucionalidade. Constituição Federal.
Sumário: I. Considerações Iniciais II. Análise do Tema III. Considerações Finais
I. Considerações Iniciais
Através de um estudo histórico da figura da mulher na sociedade, extrai-se que ela vem, por um longo período, sofrendo calada a discriminação e a violência, inclusive dentro do próprio lar. Por muitos anos, tal cenário era visto com normalidade e aceitação, tanto pela vítima como pela sociedade, isso em razão da sociedade extremamente machista que até então se apresentava, considerando a mulher como mero objeto, com funções específicas de procriar, cuidar da casa, dos filhos e do marido.
No Brasil, inclusive em seu período de Colônia, a violência contra a mulher sempre esteve presente. Naquele momento, a legislação emanava de Portugal, destacando-se as Ordenações Filipinas, legislação vigente de 1603 a 1916. Segundo referido diploma normativo, a mulher era considerada alguém que precisava de “permanente tutela, porque tinha fraqueza de entendimento” (Livro IV, Título LXI, § 9º e o Título CVII). O marido podia, ainda, castigar sua companheira (Livro V, Títulos 36 e 95); ou, até mesmo, matar a mulher acusada de adultério (Livro 5, Título 38), mas a recíproca não era verdadeira; tal punição à mulher não necessitava ser comprovada com “prova austera” (Livro V, Título XXVIII, § 6º), sendo suficiente apenas a fama pública. O Código Criminal do Império (art. 252), durante o século XIX, atenuou essa violência legal, permitindo apenas a acusação ao juízo criminal. Com efeito, no período em que vigeram as Ordenações, o entendimento doutrinário era o de que marido e mulher se reputavam a mesma pessoa para efeitos jurídicos.
Naquela época, a criação e educação de uma mulher eram direcionadas apenas para o casamento, procriação e cuidados com o marido e filhos, logo, estudo, trabalho e poder de decisão não a alcançavam, ficando reservadas essas atividades somente aos homens. Sendo assim, seu papel era o de se portar sempre de forma submissa em relação ao homem, aceitando passivamente tudo que lhe fosse determinado e, se assim não se apresentasse, “procuravam encaminhá-la logo para o internato num convento”[1].
Dentro desse contexto, Freitas, no Esboço do Código Civil (1860-1865), previu que, para fazer valer o poder marital e a obrigação da mulher de viver com ele na mesma habitação, o marido poderia requerer diligências policiais necessárias (art. 1.306).[2]
Comum à época, também, eram os crimes passionais. Em um parágrafo extraído de uma carta escrita por um estrangeiro visitante da colônia, este revela com naturalidade a forma brutal e desumana de como as coisas estavam ocorrendo por aqui:
Os portugueses são de tal forma ciumentos que eles mal lhes (às esposas) permitem ir à missa aos domingos e feriados. Não obstante, apesar de todas as precauções, são elas quase todas libertinas e encontram meios de escapar à vigilância de seus pais e maridos, expondo-se à crueldade destes últimos, que as matam sem temor de castigo quando descobrem suas intrigas. Os exemplos aqui são tão frequentes que se estima em cerca de 30 mulheres assassinadas por seus maridos em um ano.[3]
Aliás, cumpre destacar que, até o ano de 1930, no Brasil, a mulher não era plenamente capaz e sequer tinha o direito de votar.
Em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, tem-se a adoção de diversos instrumentos internacionais de proteção, em defesa da ética dos direitos humanos na qual se coloca o semelhante como merecedor de tratamento em par de igualdade e respeito, munido do direito de desenvolver suas potencialidades humanas de forma livre, autônoma e plena.
A partir daí, iniciam-se, então, no final da década de 1970, os movimentos feministas, tendo por objetivo a conquista de espaço na sociedade e a valorização da mulher.
Seguindo essa linha de evolução, é promulgada no Brasil a Constituição Federal de 1988, momento em que é inaugurado um novo ordenamento político, jurídico e legislativo no País, pois nasce uma Constituição forte, considerada pelos brasileiros a esperança, a chave para restaurar a democracia, eis que rompia com o governo autoritário que havia se instalado no País desde 1964, bem como sinalizava na defesa de direitos igualitários entre homens e mulheres no Brasil, ao consignar em seu art. 5°, inciso I, que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” e, ainda, em seu art. 226, § 5°, que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos pelo homem e pela mulher”.
Ocorre que, apesar de os direitos à igualdade e à dignidade da pessoa humana já se encontrarem previstos em diplomas internacionais, bem como na Carta Magna de 1988, a violência contra a mulher continuava grassando no meio social com estatísticas alarmantes.
Diante desse quadro, é promulgada, então, em 07 de agosto de 2006, norma específica para tratar com mais rigor o assunto, a Lei n.º 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, com o intuito de se trazer o legítimo respeito à mulher como titular de direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, estabelecendo medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, traçando, para isso, medidas de penalização e proteção em caráter de urgência.
O conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como seu âmbito de abrangência, encontra-se já no art. 5º, da Lei n.º 11.340/06, o qual prescreve que se configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, quando causada: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; ou III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Assim, não obstante a Lei n.º 11.340 ter implementado grandes inovações na órbita jurídica, diversos pontos polêmicos começaram a ser suscitados, tanto por estudiosos do Direito como pela própria sociedade, e aqui se encontra o cerne do presente artigo, buscar analisar essas questões controvertidas da Lei Maria da Penha sob a ótica da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF).
II. Análise do Tema
Um dos primeiros pontos controvertidos da Lei n.º 11.340/06, Lei Maria da Penha, que foram levados à cognição do Supremo Tribunal Federal, diz respeito ao processamento dos crimes de lesão corporal leve e lesão culposa, quando praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, ou seja, se a ação penal a ser proposta no caso concreto é pública incondicionada ou pública condicionada à representação da ofendida.
Isso por que o art. 88, da Lei n.º 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, estabelece que a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas dependerá de representação da vítima.
Entretanto, o art. 41, da Lei n.º 11.340/06, dispõe de forma clara que não se aplica a Lei n.º 9.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista.
No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 4.424/DF[4], de relatoria do ministro Marco Aurélio, o procurador-geral da República pugnou pela interpretação conforme a Constituição dos arts. 12, inciso I[5], 16[6] e 41, da Lei n.º 11.340/06, para declarar a não aplicabilidade da Lei n.º 9.099/95 aos crimes tipificados naquele diploma normativo, defendendo, por consequência, que os crimes de lesão corporal leve e lesão culposa sejam processados mediante ação penal pública incondicionada e que a aplicação dos arts. 12, inciso I, e 16, da Lei n.º 11.340/06, seja restrita às ações penais cujos crimes estejam catalogados em leis diversas da Lei n.º 9.099/95.
Prosseguindo, o procurador-Geral da República alegou que a necessidade de representação da ofendida para viabilizar a ação penal representaria um obstáculo à punição do agressor, redundando em violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, bem como às disposições dos arts. 5º, inciso XLI, e 226, § 8º, da Carta da República, e ao princípio da proibição da proteção deficiente, corolário do princípio da proporcionalidade.
Ao proferir o seu voto no julgamento em tela, o ministro Marco Aurélio, relator do processo, observou que, em 90% dos casos, a renúncia à representação se deve não ao exercício da manifestação livre e espontânea da ofendida, mas ao fato de entrever uma possibilidade, ainda que remota, de mudança na conduta do ofensor, quando, na verdade, o que acontece é o agravamento do quadro de violência doméstica, em virtude da reiteração das agressões por parte do parceiro ou convivente.
Sob a ótica constitucional, o ministro relator frisou que é dever do Estado assegurar a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Logo, na sua concepção, não seria razoável condicionar a atuação estatal à vontade da mulher, sob pena de incorrer em flagrante contrariedade ao previsto no art. 226, § 8º, da Carta Magna. Em outras palavras, “implica relevar os graves impactos emocionais impostos pela violência de gênero à vítima, o que a impede de romper com o estado de submissão”[7].
Na mesma linha, o ministro destacou que, antes da edição da Lei n.º 9.099/95, a lesão corporal, mesmo leve ou culposa, provocava a ação penal pública incondicionada. Com o advento da Lei n.º 9.099/95, passou-se a exigir a representação da ofendida para o prosseguimento da ação penal. Mas o legislador, ao editar a Lei n.º 11.340/06, afastou de forma categórica a aplicação da Lei n.º 9.099/95. Sendo assim, “se caminharmos no sentido de concluir que a ação é pública condicionada, estaremos a contrariar o entendimento de nossos representantes (deputados federais e senadores)”[8].
Com base nesses argumentos, o ministro Marco Aurélio votou pela procedência dos pedidos formulados na ADI n.º 4.424/DF, para conferir interpretação conforme à Constituição Federal aos arts. 12, inciso I, 16 e 41, da Lei n.º 11.340/06 (Lei Maria da Penha), no sentido da não aplicabilidade da Lei n.º 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais) aos crimes descritos naquele diploma legal, assentando-se que, nos crimes de lesão corporal leve e lesão culposa, a ação penal será pública incondicionada.
Ao final, a Corte Suprema, por maioria e nos termos do voto do relator, julgou procedentes os pedidos formulados no bojo da ADI n.º 4.424/DF, dando interpretação conforme a Constituição aos arts. 12, inciso I, 16 e 41, da Lei n.º 11.340/06, para assentar a natureza incondicionada da ação penal pública nos crimes de lesão corporal praticados contra a mulher no ambiente doméstico, sendo irrelevante a extensão da lesão, confirmando a constitucionalidade do art. 41, da Lei n.º 11.340/06, o qual prevê a inaplicabilidade da Lei n.º 9.099/95, Lei dos Juizados Cíveis e Criminais, aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher.
A par disso, vê-se que o entendimento vertido pelo STF está em conformidade com o Texto Maior, visto que deixar a cargo da vítima o início da persecução criminal significaria vulnerar ainda mais a mulher que, na maioria das vezes em silêncio, sofre com agressões diárias em seu ambiente doméstico, o que vai de encontro ao princípio da proteção à família (art. 226, § 8º, da CF) e, sobretudo, ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, CF), que é um dos pilares do Estado Democrático de Direito e centro do constitucionalismo moderno. Assim, o agressor, ao saber que a interrupção da persecução criminal não mais depende da vontade da vítima, não se sentirá mais estimulado em praticar agressões contra a sua esposa/companheira e, desta forma, terá mais consciência da gravidade das consequências da violência doméstica e familiar eventualmente perpetrada.
Em continuidade à análise das ações que foram propostas perante o Supremo Tribunal Federal quanto à Lei Maria da Penha, no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) n.º 19/DF[9], de relatoria do ministro Marco Aurélio, o presidente da República, com fulcro no art. 13, inciso I, da Lei n.º 9.868/99, pugnou pela declaração de constitucionalidade dos arts. 1º, 33 e 41, da Lei n.º 11.340/06.
Com relação ao art. 1º, da Lei n.º 11.340/06[10], o autor da ação sustentou que tal dispositivo está em harmonia com o princípio constitucional da isonomia (art. 5º, inciso I, da CF[11]), sob o argumento de que o desiderato da lei foi justamente coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres. Da mesma forma, aduziu que o legislador, ao conferir tratamento legislativo diferenciado, visou corrigir o histórico de discriminação sofrido pela mulher na sociedade e na esfera familiar.
Já no que tange ao art. 33, da Lei n.º 11.340/06 – o qual estabelece que, enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente –, o chefe do Executivo federal asseverou que não teria havido invasão da competência atribuída aos Estados para editar normas sobre organização judiciária, conforme preveem os arts. 96, inciso I, e 125, § 1º, ambos do Estatuto Político de 1988.
Por fim, no que concerne ao art. 41, da Lei n.º 11.340/06, que estabelece a não aplicabilidade da Lei n.º 9.099/95 aos crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher, o autor da ação esclareceu que não haveria qualquer ofensa ao art. 98, inciso I, da Carta Federal, tendo em vista a comprovada ineficácia das medidas despenalizadoras (transação penal, suspensão condicional do processo e composição civil dos danos) no combate à violência contra a mulher.
O ministro Marco Aurélio, ao proferir o seu voto, no caso em testilha, enfatizou que não haveria qualquer dúvida quanto à constitucionalidade do art. 1º, da Lei n.º 11.340/06, pois ao criar mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher e estabelecer medidas de assistência, levando em consideração o gênero da vítima, utiliza-se o legislador de meio adequado e necessário visando fomentar o fim traçado pelo art. 226, § 8º, da Carta Federal.
Do mesmo modo, o relator registrou que não se afigura desproporcional ou ilegítimo considerar o sexo como critério de distinção, porquanto que a mulher é extremamente vulnerável em se tratando de violência física, moral e psicológica sofrida em ambiente doméstico. Além disso, o ministro ressaltou que, mesmo quando homens, eventualmente, sofrem violência, a prática não decorre de fatores culturais e sociais e da usual diferença de força física entre os gêneros.
Na órbita internacional, o ministro relator destacou que a Lei n.º 11.340/06 está em sintonia com o compromisso assumido pelo Estado brasileiro de introduzir no ordenamento jurídico interno as normas penais, civis e administrativas aptas a prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, nos termos do art. 7º, item c, da Convenção de Belém do Pará e em outros tratados internacionais chancelados pelo País.
Sob o prisma constitucional, o ministro salientou que o diploma legal em análise é consectário da incidência do princípio da proibição da proteção insuficiente dos direitos fundamentais, na medida em que ao Estado compete a adoção de medidas que venham a conferir relevo aos preceitos estatuídos no Texto Magno. Assim, o ministro relator vaticinou que a Lei n.º 11.340/06 retirou da invisibilidade e do silêncio a vítima de hostilidades ocorridas na privacidade do lar e representou movimento legislativo claro no sentido de assegurar às mulheres agredidas o acesso à reparação, à proteção e à justiça.
Mostra-se também constitucional o art. 33, da Lei n.º 11.340/06, uma vez que, segundo o ministro Marco Aurélio, o dispositivo em exame não institui a obrigação, mas atribui aos Estados a faculdade de criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, a exemplo do que o legislador também o fez no art. 145, da Lei n.º 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a respeito da criação das varas especializadas e exclusivas da infância e da juventude, e no art. 70, da Lei n.º 10.741/03 (Estatuto do Idoso), no tocante à possibilidade de criação de varas especializadas e exclusivas do idoso.
No que atine ao art. 41, da Lei n.º 11.340/06, lembrou o ministro Marco Aurélio que, no julgamento do HC n.º 106.212/MS, o STF declarou a constitucionalidade do indigitado dispositivo infraconstitucional. Posto isto, o ministro votou pela procedência dos pedidos articulados na ADC n.º 19/DF, para declarar a constitucionalidade dos arts. 1º, 33 e 41, da Lei n.º 11.340/06 (Lei Maria da Penha).
Já na concepção da ministra Rosa Weber, a Lei Maria da Penha abriu uma nova fase no iter das ações afirmativas em favor da mulher brasileira, consistindo em verdadeiro microssistema de proteção à família e à mulher, bem como traduz a luta das mulheres por reconhecimento, constituindo marco histórico com peso efetivo, mas também com dimensão simbólica, e que não pode ser amesquinhada, ensombrecida ou desfigurada. No mais, obtemperou que o homem também pode ser vítima de violência, entretanto, por se tratar de exceção, e não de regra, a legislação não lhe teria dado ampla cobertura. Nestes casos, os arts. 44, inciso II, alínea g, e 61, inciso II, alínea f, ambos do Código Penal, já seriam suficientes para oferecer proteção.
De outra parte, a ministra asseverou que o art. 33, da Lei n.º 11.340/06, em nada altera as regras de organização judiciária dos tribunais estaduais, pois alberga regra de direito processual, não ofendendo, portanto, os arts. 96, inciso II, alínea d, e 125, § 1º, da Carta Política, e, no que se refere ao art. 41, da Lei n.º 11.340/06, consignou a ministra que o legislador, após verificar a ineficácia dos instrumentos despenalizadores previstos na Lei n.º 9.099/95 em combater a violência praticada em âmbito familiar, decidiu afastar a aplicação do aludido diploma legal aos crimes cometidos contra a mulher. Assim, segundo o entendimento da ministra, a insuficiência na prestação estatal protetiva configura, em si mesma, uma afronta à garantia inscrita no texto constitucional. Dessa forma, a ministra Rosa Weber acompanhou o voto do relator, julgando também procedentes os pedidos articulados na inicial e, por consequência, declarando a constitucionalidade dos arts. 1º, 33 e 41, da Lei n.º 11.340/06.
Ao acompanhar o voto do relator, o ministro Luiz Fux destacou que a Lei Maria da Penha repercute, na realidade brasileira, um panorama moderno de igualdade material, sob a ótica neoconstitucionalista que inspirou a Carta de Outubro de 1988, teórica, ideológica e metodologicamente.
A respeito da igualdade, o ministro observou que a nossa Carta Maior, ao consagrar expressamente o princípio da isonomia, teve como inspiração a experiência norte-americana. Com efeito, a Virginia Bill of Rights, de 1776, teria sido o primeiro texto constitucional a enaltecer esse preceito, o que também teria ocorrido na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em seu primeiro artigo.
Porém, a partir do advento do Estado Liberal, que teve como traço marcante o welfare state, percebeu-se que a abstenção estatal, de per si, seria insuficiente para dar concretude à igualdade entre as pessoas. Assim, segundo o ministro Luiz Fux, seria necessária uma atitude positiva, consistente em políticas públicas e edição de normas que garantissem igualdade de oportunidades e de resultados na partilha social dos bens escassos.
Ainda nesta linha, o ministro Luiz Fux frisou que essas políticas de ações afirmativas também podem ser levadas a efeito por medidas de natureza penal, considerando que o dever de proteção, imposto pelo Texto Maior ao Estado, é um direito fundamental. Sendo o Direito Penal o responsável pela proteção dos bens jurídicos de maior envergadura no ordenamento jurídico, a sua efetividade, na ótica do ministro, constitui condição para o adequado desenvolvimento da dignidade humana, enquanto a sua ausência demonstra uma proteção deficiente dos valores agasalhados na Lei Maior.
Esta proteção deficiente, conforme assentou o ministro Luiz Fux, se manifestava através da impunidade dos agressores, o que acabava por deixar ao desalento os mais básicos direitos das mulheres, submetendo-as a todo tipo de sevícias, em clara afronta ao princípio da proteção deficiente (untermassverbot). Neste quadro, enfatizou o ministro que a Lei n.º 11.340/06 não arrosta o princípio da igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, inciso I, CF), pois institui mecanismos de equiparação entre os gêneros, em legítima discriminação positiva que busca, em última análise, corrigir um grave problema social.
Na mesma trilha, estaria também justificado, segundo o ministro Luiz Fux, o preceito do art. 41, da Lei n.º 11.340/06, que afastou a aplicabilidade da Lei n.º 9.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher. Logo, o agente agressor não poderá se valer dos institutos da suspensão condicional do processo, da transação penal e da composição civil dos danos. Já com relação ao previsto no art. 33, da Lei Maria da Penha, o ministro anotou que uma efetiva proteção da mulher exigiria uma completa análise do caso concreto, tanto sob o aspecto cível quanto criminal. Desta maneira, consoante o ministro, é fundamental que o mesmo juízo disponha de competências cíveis e criminais, sem que isso importe em ofensa à competência dos Estados para legislar sobre a organização judiciária local (art. 125, § 1º c/c art. 96, inciso II, alínea d, da Constituição Federal).
Seguindo o voto do relator, o ministro Ricardo Lewandowski assentou que a Lei n.º 11.340/06, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/90) e também o Estatuto do Idoso (Lei n.º 10.741/03), mais do que meros diplomas normativos ordinários, de fato, representam verdadeiras ações afirmativas que visam a eliminar ou atenuar gravíssimas distorções históricas.
No que diz respeito à constitucionalidade do art. 33, da Lei n.º 11.340/06, o ministro registrou que, quando a lei versa sobre a criação de varas especializadas, se limita a fazer uma sugestão aos legisladores federal e estadual e, em razão disso, não extrapola a competência da União para legislar em matéria de processo. Quanto ao art. 41, da Lei n.º 11.340/06, o ministro Lewandowski lembrou que, no julgamento do HC n.º 106.212/MS, votou no sentido de que quando o legislador, no art. 41, afastou do rol de crimes de menor potencial ofensivo aquelas condutas típicas descritas na Lei Maria da Penha, pôs em prática uma política criminal, ao entender que os crimes praticados com violência contra a mulher, pela sua gravidade, deveriam merecer um tratamento legislativo mais rígido.
Por seu turno, o ministro Ayres Britto afirmou que a proteção conferida às mulheres pela Lei n.º 11.340/06 está em harmonia com a Constituição da República, haja vista que a Lei Maior é um repositório de dispositivos que se voltam para a proteção da mulher, e que abrir a Constituição brasileira é chancelar por completo a Lei Maria da Penha.
A título de exemplo, o ministro citou o art. 7º, do Texto Excelso, que dispõe sobre a proteção da mulher no mercado de trabalho, bem como o art. 3º, inciso IV, no qual o legislador constituinte demonstrou preocupação em promover o bem estar de todos, sobretudo pela luta contra o preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Mas, em sua visão, é o art. 3º, inciso I, do Estatuto Político, que mais se coaduna com a ideia de que a proteção das mulheres se inscreve no âmbito de um novo constitucionalismo fraternal.
Prosseguindo, esclareceu o ministro Ayres Britto que o constitucionalismo fraternal não se confunde com o social, pois este tem por objetivo um tipo de inclusão, que é a inclusão econômica, social, material e patrimonial das pessoas, enquanto que aquele tem como mister a inclusão comunitária, ou seja, visa a integração comunitária das pessoas, para que estas vivam de forma pacífica. Por fim, o ministro Ayres Britto averbou que, por qualquer ângulo que a Constituição fosse interpretada, outra solução não haveria senão abonar a Lei n.º 11.340/06 e ratificar a constitucionalidade dos dispositivos questionados.
Na mesma direção, o ministro Gilmar Mendes asseverou que, a partir da exegese do art. 5º, inciso XLI, do Diploma Maior, depreende-se que o dispositivo constitucional determina uma ação positiva do legislador, no sentido de punir qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais e, por meio desta ação positiva, seria possível entrever o princípio da igualdade e a sua operacionalidade. Desta forma, no tocante à Lei Maria da Penha, não haveria falar em excesso ou exagero por parte do legislador e, tampouco, cogitar-se em ofensa ao princípio da isonomia. Ao contrário, o que se constata, na percepção do ministro, é que há um ponto de partida diverso, por fatores dos mais variados, o que acaba por criar esse déficit civilizatório tão lamentável.
A propósito, o ministro Gilmar Mendes fez alusão ainda à Resolução n.º 128, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a qual determina que os Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal criem, em sua estrutura organizacional, Coordenadorias Estaduais da Mulher em situação de Violência Doméstica e Familiar como órgãos permanentes de assessoria da Presidência do Tribunal e, dessa forma, o ministro Gilmar Mendes acompanhou o voto do relator.
Por sua vez, o ministro Celso de Mello acentuou que a edição da Lei Maria da Penha representou uma significativa mudança de mentalidade do Estado brasileiro, fortemente influenciado, nos aspectos ético, jurídico e social, pelo valor fundamental que se arraigou no espírito e na consciência de todos em torno do princípio básico que apregoa a essencial igualdade entre os gêneros, numa evidente e necessária reação do ordenamento positivo nacional contra situações concretas de opressão, de degradação, de discriminação e de exclusão que tem provocado a marginalização da mulher.
Sob o enfoque constitucional, o ministro aduziu que a Lei n.º 11.340/06, longe de malferir a Carta Federal, apresenta-se como importante instrumento de promoção e de realização dos princípios nela consagrados, em especial o comando contido no art. 226, § 8º, do Estatuto Maior, cujo texto institui ao Estado o dever de coibir a violência no âmbito das relações familiares.
Ainda segundo o ministro Celso de Mello, a decisão proferida neste julgamento significaria um divisor de águas na concretização de um dos temas mais relevantes na agenda dos direitos humanos em nosso País, porquanto robustece e confere maior densidade aos direitos básicos da mulher, mormente da vítima de violência doméstica, e torna mais efetiva a resposta estatal na prevenção e repressão aos atos criminosos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Assim, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal julgou procedentes os pedidos elencados na ADC n.º 19/DF, para declarar a constitucionalidade dos arts. 1º, 33 e 41, da Lei n.º 11.340/06.
A despeito dos argumentos de que o art. 1º, da Lei n.º 11.340/06, fere de morte o princípio da isonomia entre homens e mulheres, previsto no art. 5º, inciso I, do Pergaminho Político de 1988, reputamos escorreito o entendimento consolidado pelo STF no julgamento da ADC n.º 19/DF, considerando que a Lei Maria da Penha visa corrigir todo um histórico de discriminação e sofrimento vividos pela mulher ao longo da história na busca pelo reconhecimento dos seus direitos, bem como os casos de violência doméstica que ocorrem diariamente no Brasil. Mais do que o princípio da isonomia, a Lei n.º 11.340/06 homenageia, sobretudo, o princípio da dignidade da pessoa humana, corolário do direito à vida, que é o direito mais caro do ordenamento jurídico brasileiro.
Outro ponto controvertido da Lei n.º 11.340/06, suscitado perante o Supremo Tribunal Federal, é a sua aplicação no caso de namorados ou ex-namorados. Isso por que a Lei Maria da Penha, em seu art. 5º, inciso III, estabelece que para a caracterização da violência doméstica e familiar contra a mulher não seria necessária a coabitação, ou seja, basta que o homem e a mulher tenham mantido uma relação íntima de afeto.
De proêmio, necessário esclarecer que a definição de relação íntima de afeto, descrita na lei em tela, tem sido alvo de severas críticas por parte da doutrina, “pois mal redigida a norma e extremamente aberta”[12].
Nesse sentido, no julgamento do HC n.º 112.698/RS[13], no Supremo Tribunal Federal, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, o recorrente foi denunciado pela prática do crime descrito no art. 129, § 9º, do Código Penal (lesão corporal praticada em ambiente doméstico). Mas, no dia 26.01.2010, o juízo da 4ª Vara Criminal da comarca de Santa Maria/RS, ao apreciar o caso, entendeu por bem afastar a incidência da Lei Maria da Penha, por considerar que o fato teria decorrido de uma simples relação amorosa, entre adolescentes, sem qualquer vínculo entre os envolvidos e, ao final, determinou a redistribuição dos autos ao Juizado Especial Criminal da aludida comarca.
Por sua vez, o Juizado Especial Criminal, no dia 05.03.2010, suscitou conflito negativo de competência perante o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por entender que, em se tratando de casal de ex-namorados, ambos possuíam relação íntima de afeto, independentemente de ter havido coabitação, devendo ser aplicada a Lei n.º 11.340/06, afastando, desta forma, a competência do Juizado Especial Criminal.
Ao apreciar a controvérsia, a Segunda Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em 13.05.2010, acolheu o conflito de competência, para declarar competente o juízo da 4ª Vara Criminal, sob o argumento de que a Lei Maria da Penha seria aplicável ao caso concreto (relação finda de namoro).
Inconformada, a defesa impetrou habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça, o qual teve a ordem denegada, tendo em vista que a Corte entendeu que, em tais circunstâncias, há o pressuposto de uma relação íntima de afeto a ser protegida, por ocasião do anterior convívio do agressor com a vítima, ainda que não tenham coabitado. Em razão desta decisão do STJ, a defesa interpôs recurso ordinário em habeas corpus perante o STF, no intuito de afastar a aplicação da Lei n.º 11.340/06.
Na Corte Suprema, ao analisar o caso por meio do HC n.º 112.698/RS, a ministra relatora Cármen Lúcia anotou que o julgado proferido pelo STJ está alinhado com a jurisprudência do STF, em especial com o entendimento cristalizado no julgamento da ADC n.º 19/DF, de relatoria do ministro Marco Aurélio, no qual o plenário, ao deliberar acerca da constitucionalidade de dispositivos da Lei Maria da Penha, pontificou que não se revela desproporcional ou ilegítimo o uso do sexo como critério de distinção, tendo em vista a vulnerabilidade da mulher no que tange a constrangimentos físicos, morais e psicológicos em ambiente doméstico.
Assim, a ministra votou pelo não provimento do recurso ordinário em habeas corpus, no que foi acompanhada pelos demais ministros da Segunda Turma do STF. Portanto, no julgamento do HC n.º 112.698/RS, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que a violência perpetrada por ex-namorado, quando decorrente de relacionamento íntimo com a vítima, atrai a incidência da Lei Maria da Penha.
Por fim, necessário mencionar que há outros aspectos hermenêuticos controvertidos a respeito da Lei n.º 11.340/06 que ainda não foram levados à apreciação do Supremo Tribunal Federal, como, por exemplo, a possibilidade, ou não, de se estender a aplicação dessa lei ao homem, quando este for vítima de violência doméstica e familiar, bem como no caso de relações homoafetivas e nas relações entre parentes consanguíneos ou por afinidade.