3.Cooperativas de Trabalho: possibilidade de emancipação da classe trabalhadora?
Por pressuposto, partilho da crítica formulada por Boltanski (2009), que põe em dúvida a tese da diluição das classes sociais (ROSANVALLON, 1995). Considero também que elas se formam como consequência de um processo histórico, dialético e reflexivo, e que as identidades de classe se constituem através de um lento e laborioso processo de construção de equivalências (BOLTANSKI, 2009, p. 238-239). Por conseguinte, que as classes se estruturam a partir de clivagens de natureza socioprofissional, mantendo o trabalho como elemento central da organização social.
Tomando a representação da sociedade como um “conjunto de classes sociais no âmbito de um Estado-nação” (BOLTANSKI, 2009, p. 213), penso que todos os movimentos que constituem a sua dinâmica não poderiam ser adequadamente interpretados como resultado da sinergia entre “incluídos” e “excluídos”. Nesse sentido, ainda parece legítimo se falar em interesses próprios de uma classe trabalhadora, que se antagonizam sistemicamente aos daqueles que se distinguem como “capitalistas” (PIKETTY, 2014, 51-55), em especial, os termos de troca do valor-trabalho, isto é, o salário.
Sendo assim, ao largo da discussão acerca da validade ou utilidade da análise da dinâmica social, a partir da perspectiva da “luta de classes”, o fato é que as transformações sociais que porventura ocorram podem ser examinadas sob a perspectiva dos interesses dos grupos profissionais. Nesse sentido, o objetivo deste tópico é refletir sobre a possibilidade de o movimento cooperativista conspirar, ou não, em favor de tais interesses, a despeito de o discurso político predominante no Brasil endossar o caráter emancipatório do trabalhador, atribuído ao modelo associativo-cooperativista.
O tratado de Luis Amaral (1938) registra que o cooperativismo é o “evangelho em ação”. Tal alegoria parece denotar a influência da doutrina socialista-cristã saintsimoniana, ao menos no âmbito do estatuto moral que balizava a experiência cooperativista dos Pioneiros de Rochdale (HOLYOAKE, 1900). Mas a existência de um suporte moral estruturante está presente noutro importante movimento: o owenismo, que a despeito de sua inclusão na historiografia sindical daqui e alhures, chegando mesmo a ser reconhecido como o “iniciador do movimento sindicalista moderno” (POLANYI, 1980, p. 171), não se constituiu originariamente como uma expressão dos interesses mobilizados pela classe trabalhadora.
O Owenismo, epíteto conferido à doutrina de Robert Owen, cujas bases sustentaram a construção de uma “sociedade utópica” na vila operária de New Lanark, não se distinguia, em seus primeiros anos (1800 a 1812) de outras experiências paternalistas do empresariado industrial inglês dos séculos XVIII e XIX, no que tange aos propósitos de atender aos “anseios do povo comum, esmagado pelo surgimento das fábricas” (POLANYI, 1980, p. 171).
As condições de vida no trabalho na fábrica têxtil de propriedade de Owen não a tornavam tão distinta das demais, inclusive quanto aos baixos salários, longas jornadas de trabalho e emprego de crianças, sobretudo órfãs (ALMEIDA, 2010). O que singularizava a gestão de Owen, além da preocupação acima da média com a segurança e o meio-ambiente da fábrica, era a melhoria das condições de “vida fora do trabalho” (ANTUNES, 2009), isto é, a maneira pela qual os operários viviam e se conduziam em comunidade, criavam seus filhos, sustentavam suas famílias e administravam seus lares. Owen expressava sua preocupação com a degradação moral dos trabalhadores, para o quê concorria de forma determinante o alcoolismo.
O laboratório de Owen em New Lanark é anterior à experiência dos Pioneiros de Rochdale, sendo as Villages of Co-operation e o Labour Exchange owenita havidos como experimentos pioneiros de cooperativismo de produção (agrícola) e de consumo, respectivamente. Há, de fato, uma conexão bastante visível entre os dois episódios: New Lanark e Rochdale, haja vista que parte dos membros integrantes da cooperativa de Lancashire era oriunda da vila operária mantida por Owen.
Além da constatação de que se trata de uma experiência bem sucedida, se comparada com as cooperativas owenitas, a preferência por identificar, na experiência dos Pioneiros de Rochdale, o modelo de ignição do cooperativismo, pode ser explicada, de um lado, pelo caráter paternalista original da proposta owenita. De outro, por uma doutrina que motivou o mote atribuído em 1820 por Engels, de que a experiência de New Lanark se tratava de um socialismo utópico.
No primeiro caso, os Pioneiros de Rochdale se distinguiram por terem constituído seu próprio código moral, objetivado na forma de um estatuto no qual elencavam alguns princípios que, mais adiante, iriam se tornar os fundamentos do cooperativismo moderno. Tal disposição requereu improvável habilidade, inclusive intelectual, além de autoconfiança e notável espírito de solidariedade, o que na opinião de Holyoake não eram características da classe trabalhadora britânica (HOLYOAKE, 1900). A experiência de New Lanark é diferente porque os trabalhadores foram assimilados ao ideário owenita, bem como ao estatuto moral formulado segundo as concepções socialistas e espirituais de Robert Owen.
No segundo, a despeito da melhoria das condições estruturais de habitação, saúde e educação na vila owenita, e da experiência comunitária de autogestão direcionada, precipuamente, para o aumento do poder de compra dos trabalhadores, a condição proletária dos trabalhadores era mantida em evidência, como um traço indelével da sua identidade operária. A crença de Owen, até certo ponto transgressora, mas provavelmente equívoca acerca do capitalismo, era a de que a partir da autogestão das suas vidas fora do trabalho, na conformidade de um código moral, calcado no princípio da cooperação, cada operário poderia resistir à reificação imposta pela fábrica, poderia manter-se íntegro em sua identidade, poderia se tornar o “senhor da máquina” (POLANYI, 1980, p. 171).
Considerando seu fundamento ideológico, é totalmente compreensível, portanto, que o movimento owenita tenha se aproximado muito mais do sindicalismo, que do cooperativismo. É bem verdade que durante os primeiros esforços (the first efforts) dos tecelões operários de lancashire, concentrados em financiar a cooperativa de consumo, eles negociaram com os patrões o adiantamento de salários usando estratégias agressivas, incluindo a ameaça paredista (HOLYOAKE, 1900, p. 4). No entanto, o horizonte almejado pelos probos pioneiros de Rochdale não era outro, senão a melhoria da condição de vida pela via do empreendedorismo, o que deveria implicar, em última análise, na superação da sua condição de assalariados[11]. O cooperativismo fundado nos princípios insculpidos pelos pioneiros de Rochdale é, em essência, um modelo de gestão.
O cooperativismo pressupõe, no entanto, um tipo específico de associativismo: o mutualismo (ALEMÃO, 2009), bem distinto do associativismo classista, que caracteriza o sindicalismo. Ambas as espécies de associativismo foram identificadas como formas de resistência da classe operária europeia, durante o século XIX. Mas entre elas, a coexistência era difícil, “ora de identificação, ora de afastamento” (ALEMÃO, 2009, p. 28).
O mutualismo consiste num associativismo de viés pragmático, funcional, e voltado para os interesses da própria associação. O associativismo classista se opõe com frequência ao mutualismo em razão da ausência da têmpera político-ideológica, fundamental para o desenvolvimento e consolidação da “consciência de classe”. Numa síntese, o associativismo classista se voltava para a melhoria das condições de vida no trabalho, enquanto o que associativismo mutualista se preocupava com as condições de vida fora do trabalho (ALEMÃO, 2009).
De todo modo, ambas as formas de associativismo são consideradas manifestações de autoproteção da sociedade (POLANYI, 1980), fenômeno este absolutamente inexorável, haja vista a impossibilidade de se constituir, no mundo da vida, o tipo de sociedade idealizada pelo capitalismo liberal laissezfaireano.
Para Karl Polanyi, uma economia de mercado (autorregulável), fundamento do sistema capitalista, só é possível se concebermos a existência de uma sociedade de mercado. Ocorre que a sociedade de mercado não poderia ipso facto existir, salvo enquanto ficção, eis que não seria viável que uma sociedade se estruturasse a partir de seu sistema econômico, colonizando a ordem social, como se esta lhe fosse um mero acessório (POLANYI, 1982, p. 87). Uma sociedade constituída desta forma não teria futuro, estando condenada à aniquilação.
Imaginar uma sociedade de mercado implica em considerar que todos os elementos que compreendem o sistema produtivo, entre os quais a terra, o trabalho e o dinheiro, tenham sido concebidos e/ou produzidos para serem postos à venda no mercado. Noutros termos, que a terra, o trabalho e o dinheiro sejam considerados mercadorias.
Todavia, o trabalho, a terra e o dinheiro obviamente não são mercadorias. O postulado de que tudo o que é comprado e vendido tem que ser produzido para a venda é enfaticamente irreal no que diz respeito a eles. Em outras palavras, de acordo com a definição empírica de uma mercadoria, eles não são mercadorias. Trabalho é apenas um outro nome para a atividade humana que acompanha a própria vida que, por sua vez, não é produzida para a venda, mas por razões inteiramente diversas, e essa atividade não pode ser destacada do resto da vida, não pode ser armazenada ou mobilizada. Terra é apenas outro nome para a natureza, que não é produzida pelo homem. Finalmente, o dinheiro é apenas um símbolo do poder de compra e, como regra, não é produzido, mas adquire vida através do mecanismo dos bancos e das finanças estatais. Nenhum deles é produzido para a venda. A descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias é inteiramente fictícia.
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Ora, em relação ao trabalho, à terra e ao dinheiro não se pode manter um tal postulado [que são mercadorias submetidas a um mercado autorregulado]. Permitir que o mecanismo de mercado seja o único dirigente do destino dos seres humanos e do seu ambiente natural, e até mesmo o árbitro da quantidade e do uso do poder de compra, resultaria no desmoronamento da sociedade. (POLANYI, 1980, p. 85).
É verdade que o credo liberal fortalece a ficção, que de fato opera seus efeitos, como se houvesse uma separação institucional entre as esferas econômica e política. O trabalho, a terra e o dinheiro são postos à venda, como se fossem mercadorias produzidas para o mercado, e seus preços: salários, aluguéis (e outras rendas da terra) e juros ou lucros, submetidos à ação da “mão invisível”. Mas como visto:
(...) nenhuma sociedade suportaria os efeitos de um tal sistema de grosseiras ficções [sociedade de mercado, mercantilização da terra, do trabalho e do capital, e laissez faire], mesmo por um período de tempo muito curto, a menos que a sua substância humana e natural, assim como a sua organização de negócios, fosse protegida contra os assaltos desse moinho satânico. (POLANYI, 1980, p. 85-86).
Nesse contexto, todos os tipos de manifestação intervencionista, sejam os que emergem dos movimentos sociais, da ação dos grupos de pressão, atravessados ou não pelo aparato político-administrativo estatal, são reações necessárias de caráter pragmático. Para Polanyi, o próprio laissez faire teria nascido de um ato de intervenção estatal e, portanto, seria historicamente falacioso considerá-lo uma cria do liberalismo.
Frise-se que as várias formas de autoproteção da sociedade – independentemente das aderências aos interesses que, porventura, caracterizem este ou aquele estrato social – são, em verdade, reações à mercadorização da terra, trabalho e dinheiro. Em sendo assim, seria plausível, portanto, identificar para qual dessas mercadorias fictícias o ímpeto de defesa se orienta, determinando o vetor de atuação dessas formas de autoproteção.
Embora protagonizados e/ou mobilizados por trabalhadores assalariados, as experiências cooperativistas de New Lanark e de Rochdale priorizaram os interesses relacionados ao consumo. Durante a trajetória do owenismo noutros cantos, inclusive nos Estados Unidos, viram-se germinar as cooperativas de produção agrícola, que se tornaram viáveis a partir da cotização para a compra coletiva de insumos, o que concorria para a redução dos custos de produção, e o aumento das chances de submeter suas mercadorias à venda a preços mais competitivos.
Em ambos os casos, percebe-se que o esforço cooperativista está voltado imediatamente[12] para a defesa do poder de compra; do dinheiro, e não do trabalho (assalariado).
O cooperativismo de produção agrícola não pressupõe, necessariamente, a propriedade da terra, embora a posse seja condição fundamental. Sendo assim, a cotização é dirigida essencialmente para a redução dos custos da produção, ainda que a escala não seja alterada. O resultado prático imediato é a assunção de uma posição de vantagem no momento em que tais mercadorias são postas à venda, com retorno na forma de lucros maiores e/ou dinheiro mais rápido. Mesmo que a propriedade da terra seja uma realidade, o esforço centrado na aquisição coletiva de insumos não garante, como efeito imediato e necessário, o incremento da produtividade, e com ele o aumento da renda da terra. Isto pode ocorrer, evidentemente, como resultado da acumulação de capital, e do reinvestimento em capacitação, gestão, qualidade dos insumos e tecnologia[13]. Tal mobilização em nada, ou muito pouco, se distancia da atividade empresária como a conhecemos, fazendo com que a ideia de uma “empresa cooperativista”, propósito do Sistema Cooperativista dos Assentados (SCA/MST), não seja algo que contradiga os princípios do cooperativismo, salvo pelo tratamento eufemístico dado ao lucro[14].
A experiência dos pioneiros de Rochdale se distingue apenas quanto ao ramo de atividade. Num primeiro momento, a cooperativa de consumo se volta para a melhoria do poder de compra dos próprios membros. Adiante, como menciona Holyoake (1900), o “armazém” se torna acessível aos membros da comunidade[15], e vira um negócio. Se o desemprego de alguns dos integrantes ocorreu devido à “falta de diplomacia” junto aos patrões, quando dos esforços iniciais de financiamento do projeto, o sucesso do empreendimento levou ao desemprego voluntário de seus membros, que passaram a ter mais tempo para se dedicarem à cooperativa.
O cooperativismo, como episódio de um associativismo do tipo mutualista, não constitui um exemplo de defesa imediata do trabalho, mas do dinheiro. Como experiência histórica, o cooperativismo de consumo e produção propuseram a negação ou superação do trabalho alienado e, obviamente, do assalariamento. Se os movimentos de defesa do trabalho estão, de fato, centrados nos termos de troca, e na condição de vida “dentro do trabalho”, então o tipo de emancipação proposto pelo associativismo cooperativista não configura uma pretensão exclusiva da classe trabalhadora, tampouco se opõe às regras do jogo capitalista. Isso, aliás, já havia sido mencionado por Luis Amaral (1938), quando afirma que “o cooperativismo não proscreve o capitalismo, apenas o impede de gerir, por seus próprios interesses, a organização do trabalho” (ASSUMPÇÃO; ANDRADE, 2014).
Ivan Alemão registra que alguns líderes da doutrina anarcossindicalista, ainda na virada dos séculos XIX e XX, proclamavam a inaptidão do mutualismo e do cooperativismo como expressões emancipatórias da classe trabalhadora:
O anarquista português Neno Vasco (1984, p.121-2), que viveu no Brasil de 1901 a 1911, em 1920 pregava a rejeição às práticas mutualistas e cooperativistas dos sindicatos, o que acabaria com as indefinições de atribuições existentes entre as associações. Para ele, a mutualidade e as cooperativas valiam bem menos do que a resistência, a ação direta sindical. Vasco considerava mesmo que a mutualidade facilitava a exploração capitalista, pois reduzia os recursos dos trabalhadores à medida que estes, pela associação cooperativa e de socorros mútuos, aprendiam a fazer face às necessidades da vida com o minguado fruto de seu trabalho. O autor destaca que o mutualismo e o cooperativismo, mais do que o corporativismo, incentivavam a burocracia parasitária. Segundo ele, essa burocracia, quando muito, se prestava a ser usada como obra feita, como organismo de Estado, por algum governo revolucionário, desconfiado da liberdade e das iniciativas populares. Já os sindicatos, de acordo com Vasco, pelo contrário, educavam o proletariado para a luta contra o capitalismo e pela solidariedade. (ALEMÃO, 2009, p. 29-30).
A evolução do associativismo mutualista, segundo a experiência brasileira, parece confirmar as predições de Neno Vasco. As sociedades de socorro mútuo, consideradas uma forma embrionária de previdência, foram posteriormente assimiladas pelo Estado capitalista, fato que concorreu para a atenuação da responsabilidade dos patrões em relação aos seus empregados, quanto aos danos causados em decorrência do trabalho[16] (ALEMÃO, 2009, p. 30).
Quanto ao cooperativismo, reduzido à sua essência de modelo de empresa autogerida, assumiu seu distanciamento teleológico do associativismo classista[17], moldando-se aos mais diversos objetos, a ponto de em 1932, com o Decreto nº 22.239, terem sido elencadas dezesseis espécies de cooperativas, entre elas a de trabalho.
Tomando como referência a classificação do Bureau Internacional du Travail, publicada nos anos trinta do século passado, o cooperativismo profissional surge como uma das quatro grandes categorias do cooperativismo, ao lado da habitação, consumo e produção agrícola.
Entretanto, se o associativismo cooperativista pode ser compreendido como um mecanismo de defesa em face da mercadorização do dinheiro, cujas consequências se travestem em déficits de moradia, consumo, crédito, saúde etc., como atribuir às cooperativas de trabalho o mesmo papel?
A lei 12.690/12 reúne sob o gênero “trabalho”, tanto as cooperativas de produção, quanto as de serviço. Sabe-se que o trabalho que anima a produção coletiva projeta suas energias para dentro da própria cooperativa. O fruto desse trabalho coletivo, cuja propriedade é da (própria) coletividade, aproveita o conceito empírico de mercadoria, visto que são bens cuja produção foi destinada ao mercado. O resultado financeiro do trabalho realizado não possui natureza de salário, pois o propósito é remunerar todo o processo de realização da mercadoria.
O caso das cooperativas de serviço (art. 4º, II) se distingue ontologicamente das demais experiências cooperativistas, justamente porque o trabalho realizado pelos associados é alienado a terceiros, obedecendo à mesma lógica do trabalho assalariado. O trabalho coletivo se limita à gestão do negócio, cujo objeto – o trabalho – é posto à venda no mercado, reproduzindo a ficção mencionada por Karl Polanyi, que impõe à sociedade a autodefesa, e a criação de modelos de resistência social, dentre as quais... o cooperativismo.
Pode-se objetar, como no argumento do PL 3.383/1992, que o cooperativismo (inclusive o profissional) seria a “fórmula mágica” para o desemprego. A cooperativa de serviço teria a função, portanto, de facilitar a oferta de trabalho no mercado, como que aproximando a mercadoria do consumidor, um dos propósitos do cooperativismo de produção, conforme salienta Luis Amaral (1938).
No entanto, se o cooperativismo deve ser considerado um mecanismo de defesa social do poder de compra – do dinheiro – a que interesses as cooperativas de serviço atendem? Aos dos detentores da força de trabalho, ou daqueles que a tomam?
Um dos desdobramentos do associativismo mutualista foram as chamadas “ordens profissionais” (ALEMÃO, 2009), que agregam as profissões liberais, segundo a definição proposta por Coelho (1999, p. 23-24). Mas obedecendo à mesma dinâmica de aproximação com o Estado, as ordens profissionais conseguiram, pela via da regulação legislativa, circunscrever um território de atuação exclusiva. Entretanto, não delegaram à ação dessa interferência legal no mercado, à guisa de um monopólio da expertise profissional[18], a garantia de melhores termos de troca para o trabalho. Preferiram fazê-lo através do aparato regulatório estatal, pela via da fixação legal de patamares salariais de contratação.
Nos primórdios do sindicalismo, a mobilização classista não era dirigida para o “inimigo” capitalista. A estratégia para a conquista de salários mais dignos era bem mais a coerção voltada aos próprios trabalhadores, impondo-lhes que não aceitassem salários abaixo de determinado patamar (ALEMÃO, 2009). Contudo, tal estratégia teve duração curta, como registra Ivan Alemão:
Com o aumento do exército industrial de reserva e a exploração da mais-valia relativa, a possibilidade de os sindicatos interferirem direta e unilateralmente na lei de oferta e procura ficou extremamente reduzida. O aumento da oferta de trabalhadores, fruto do trajeto do campo–cidade, adicionado às necessidades tecnológicas de fazer com que um único trabalhador produzisse a mesma quantidade que antes dependia de vários para ser obtida, propiciou não só a desvalorização dos salários, mas também o risco da redução de empregos. (ALEMÃO, 2009, p. 28).
Excetuando a “reserva de mercado” das corporações de ofício, cuja natureza nada tem a ver com desvios da livre concorrência, não se conhece qualquer episódio de sucesso, que possa ser atribuído à atuação classista dos trabalhadores, na tentativa de melhorar os termos de troca do trabalho assalariado, através de mecanismos de interferência na relação entre oferta e demanda de mão-de-obra[19].
Ora, se a atuação classista dos trabalhadores através do sindicalismo foi incapaz, ao longo da história, de gerar mecanismos de proteção do salário, manipulando as relações entre oferta e demanda da “mercadoria” trabalho, não há razão para crer que as cooperativas de trabalho possam lograr êxito onde os sindicatos falharam.
O propósito das cooperativas de serviço é facilitar a oferta de mão-de-obra. Mas o efeito sobre a taxa de desemprego, principal argumento político em defesa desse tipo de cooperativa, depende do quão atraente seja essa “mercadoria”, o que não é definido pela exclusividade da expertise (do quê se ocuparam as ordens profissionais), mas do valor pelo qual a mercadoria-trabalho é oferecida no mercado. Quanto menor o seu valor, mais competitiva será a sua oferta.