1.Uma Introdução
Vem de Boltanski e Chiapello (2009) uma das mais lúcidas e completas descrições do que foi registrado como a “crise e transformação do capitalismo”, que teve como origem a exaustão do modelo taylorista de organização do trabalho. Eles demonstram que sob a perspectiva da centralidade do trabalho, enquanto categoria estruturante da sociedade, da crise do paradigma tayloriano se irradiou uma verdadeira onda de críticas à própria sociedade capitalista.
Situada a partir do final da década de sessenta, a experiência europeia acerca desse período de desestabilização do sistema capitalista atravessou toda a década de setenta, desaguando num processo de renovação do capitalismo que se deu à custa da “desconstrução do mundo do trabalho” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 239).
A reestruturação do sistema capitalista, baseada no que se convencionou chamar de acumulação flexível, produziu uma série de fenômenos importantes, que desde a gestão dos modelos de produção – toyotismo – passando pela terciarização[1] da atividade industrial, reconfigurou sobremaneira as relações de trabalho, chegando mesmo a solapar as bases principiológicas do próprio Direito do Trabalho.
O liberalismo, como doutrina, reaparece noutros tons: (neo)liberalismo, mais preocupado em dar respostas ao que Boltanski e Chiapello chamam de “crítica estética”, de caráter geracional, e associada às expectativas de autorrealização pessoal não apenas dos operários, já imersos numa sociedade do trabalho que não os atende em suas pretensões de autonomia, mas também dos estudantes, ainda por nela ingressar.
Boltanski e Chiapello enumeram e descrevem as várias facetas da transformação do mundo do trabalho. São mudanças na sua organização interna (duração do trabalho, intensidade do trabalho, divisão do trabalho, individualização salarial etc.), bem como no “tecido produtivo”, com o outsourcing, gênero que tem na terceirização a síntese da produção em rede, cuja versão laboral (externalisation) tornou-se sinônimo de precarização das relações de trabalho.
No Brasil, a “vaga neoliberal” (CARDOSO, 2003) nos atingiu com década de atraso, e ainda hoje sentimos os efeitos de sua inércia. Ao menos no que tange ao sistema de garantias e proteção do emprego, as transformações das relações de trabalho em Terrae Brasilis, nas duas últimas décadas, produziu um cenário menos dramático que na Europa. Nalguma medida, credita-se à ação do Novo Sindicalismo[2] no âmbito do processo de redemocratização, e sua influência na reformulação constitucional dos direitos sociais, nomeadamente os trabalhistas, que pela primeira vez na nossa história republicana, com a Constituição Federal de 1988 (CF/88), deixara de ser um mero apêndice da ordem econômica.
De fato, em que pesem as contradições que volta e meia se mostram no sistema político-jurídico de proteção do trabalhador brasileiro (ASSUMPÇÃO, 2015), causadas pelos embates que se dão na tumultuosa fronteira que separa as garantias individuais trabalhistas e a autonomia negocial das representações categoriais (econômicas e profissionais), o fato é que as novas configurações institucionais que modelam o nosso sistema de relações de trabalho, a despeito de patrocinarem, dentro e fora da ação Estatal, formas de ocupação precarizantes, não se legitimaram a ponto de desqualificar nossa legislação de sustento, mormente a setuagenária CLT.
A sobrevivência do legislado sobre o negociado e, com isso, a preservação da base principiológica do Direito do Trabalho brasileiro inscrita na CLT, contraria, ao menos por ora, a aposta de Jeammaud na desintegração global dos princípios trabalhistas (ASSUMPÇÃO, 2014), que por aqui foram perpetuados por Américo Plá Rodriguez (2005), a começar pelo princípio da alteridade, encarregado de impedir que o trabalhador compartilhasse os riscos do empreendedor capitalista.
Mas é verdade que o período compreendido entre o início da década de noventa, e o final do primeiro triênio da década passada, se caracterizou pelo esforço regulatório do Estado na reprodução e/ou redimensionamento de algumas das novas formas de organização do trabalho vistas na Europa, durante os anos setenta e oitenta, como foi o caso dos contratos a tempo parcial, dos contratos por prazo determinado (Lei 9.601/98), e dos contratos temporários (Lei 6.019/74 e Instrução Normativa nº 03/1997).
Viu-se, também, a postura absenteísta da Justiça do Trabalho, no âmbito da ação coletiva dos sindicatos de classe, a ponto de comprometer a autonomia desses entes coletivos, e o direito à autotutela dos grupos profissionais (SILVA, 2008).
Mesmo a Inspeção do Trabalho, elevada havia menos de dez anos à mesma estatura republicana das demais inspeções federais, experimentou uma reconfiguração político-institucional que levou à mitigação do seu poder de polícia. Era “O Novo Perfil da Fiscalização do Trabalho”, interpretada por alguns como uma tentativa válida para produzir o “cumprimento sustentado da lei” (PIRES, 2009), e por outros como a evidência de um processo de desqualificação das instituições de proteção do Direito do Trabalho no Brasil (FILGUEIRAS, 2012).
Observou-se, também por aqui, o fenômeno da terciarização do que até então eram atividades industriais, produzindo uma maciça terceirização das ocupações, com o consequente entrelaçamento de vários e distintos estatutos profissionais. Além disso, a rejeição categórica à contratação por interposta pessoa[3], representada pelo texto do Enunciado nº 256 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), teve sua expressão atenuada pela jurisprudência que lhe sucedeu: a Súmula nº 331, que flexibilizou o impedimento à terceirização, introduzindo a distinção entre atividade-fim e atividade-meio[4] como critério supostamente objetivo de separação entre as terceirizações lícitas e ilícitas.
Conquanto a conservação do princípio da primazia da realidade (RODRIGUEZ, 2002) tenha evitado o extremismo de um “civilizamento” generalizado das relações de trabalho (VIANA, 2001), o fato é que as terceirizações no Brasil, ainda que não representassem pura e simplesmente a contratação por interposta pessoa, sempre esteve associada à precarização das condições de trabalho. As evidências vinham tanto do Direito Coletivo do Trabalho, com a fragmentação das representações das categorias profissionais, com a redução da capacidade de barganha dos sindicatos, o esfriamento do ímpeto associativista, e a dificuldade de manutenção de conquistas históricas, como do sistema de proteção individual, cujas facetas mais vulneráveis eram, de fato, a terceirização do risco ocupacional e a ausência de garantias para o crédito salarial (ALEMÃO, 1997).
Mas o tipo ideal de empregador celetista: a empresa, não monopolizou o outsourcing da mão-de-obra no Brasil. Além de modelos contratuais sui generis, como o contrato de estágio e de aprendizagem, e da utilização sem justa medida do empresário individual, que de tão saliente tornou-se vernáculo: pejotização, formas associativas não empresariais passaram a ser utilizadas como elos da cadeia de subcontratações. Destaca-se, dentre todas, as sociedades cooperativas, nomeadamente as de trabalho ou mão-de-obra.
O objetivo deste ensaio é, enfim, examinar os fundamentos de uma relação que se faz amiúde, associando a atuação das cooperativas de trabalho, no particular, ao fenômeno da precarização do emprego no Brasil. Porém, espera-se fazer tal exame sem a exclusividade da perspectiva jurídica – algo com que Carelli (2002) já se ocupara, com sucesso – mas dentro de um contexto histórico e conceptual do próprio movimento cooperativista, do qual se fará menção desde Robert Owen e as experiências em New Lanark, sem prejuízo do seu exame sob o viés de uma ontologia dos mecanismos de defesa social frente à mercadorização dos fatores de produção, apoiado na tese da ficção da sociedade de mercado proposta por Karl Polanyi (1980).
A apreciação jurídica das cooperativas de trabalho será reintroduzida, ao final, para inserir as conclusões dessa análise preliminar ao contexto atual, inovado pela Lei 12.690/2012, a fim de especularmos sobre a presença germinal da parassubordinação no Brasil, e de um estrato ocupacional subalterno representativo da “dualização do salariato”, tal como decreta Supiot (2003).
2. O Caso do Cooperativismo de Trabalho com a Precarização do Emprego no Brasil
Embora se perceba atualmente uma relativa inflexão na trajetória da crítica ao cooperativismo de trabalho no Brasil, devido, certamente, à intensa expectativa pelo que ainda há de vir, após a publicação da Lei 12.690/2012[5], a literatura juslaboralista e sociológica vem há anos descrevendo os descaminhos das cooperativas de trabalho, como um dos principais fenômenos ilustrativos da precarização do emprego no Brasil.
A trajetória errática e contraditória da regulação do cooperativismo brasileiro, retratada em primeira mão por Luis Amaral (1938), bem que poderia justificar um certo mal de origem (ASSUMPÇÃO; ANDRADE, 2014), e o descompromisso com os princípios que nortearam os “Pioneiros de Rochdale” (HOLYOAKE, 1900) como a grande tônica da nossa experiência cooperativista.
Mas não se pode creditar exclusivamente à regulação geral em vigor (Lei 5.764/71) o grande erro de percurso cometido pelo cooperativismo de trabalho no Brasil, cuja guinada ocorrera ainda na primeira metade da década de noventa. Em verdade, o mérito recai sobre uma lei supostamente bem intencionada: 8.949/94, que criou uma ilha de exclusão no próprio estatuto de proteção do trabalhador brasileiro: a CLT.
O assunto que encabeçava o Projeto de Lei (PL) nº 3.383/92 era assim descrito: “Acrescenta parágrafo ao art. 442 da CLT para declarar a inexistência de vínculo empregatício entre as cooperativas e seus associados”, o que não condizia com a proposta de redação do tal parágrafo (único), que estendia a inexistência de vínculo empregatício também em face dos tomadores de serviço das cooperativas.
A propósito de corrigir um problema de técnica legislativa, foi formulada uma emenda substitutiva restringindo a exceção do vínculo empregatício apenas às cooperativas de trabalho. A alteração parecida fazer sentido, vez que somente as cooperativas de trabalho, ou mão-de-obra teriam como objeto a prestação de serviços. Contudo, limitações regimentais impediram que prevalecesse a emenda, tendo sido restaurada a proposta inicial, excluindo o vínculo empregatício dos cooperados com as sociedades cooperativas e seus tomadores de serviço, seja qual for o ramo de atuação.
Note-se que a exclusão do vínculo empregatício entre os cooperados e as sociedades cooperativas às quais pertençam já era prevista na chamada “lei geral” do cooperativismo brasileiro (Lei 5.764/71, art. 90). A novidade ficou por conta da extensão da “blindagem” também aos tomadores de serviço.
A justificativa do PL nº 3.383/92 declara que o país está imerso numa “crise econômico-social”, que aumenta a sensação de “insegurança dos trabalhadores”. Ele particulariza a situação de desemprego no campo, que contribuiria para o aumento da “legião de boias frias” e do “êxodo rural”.
O projeto também afirma que são muitas as opiniões entre empresários e empregados de que a TERCEIRIZAÇÃO (assim, em caixa alta), reconhecida como uma alternativa de flexibilização, seria sinônimo de “excelência empresarial”, e que a “substituição da mão-de-obra das empresas” seria a solução para a recessão instalada no país.
Mas o PL também reconhece que, “sob o ponto de vista do direito, a terceirização não consegue equacionar a questão da relação empregatícia”, problema cuja solução viria através da alteração proposta na CLT. Não obstante, a argumentação jurídica se limitou a reproduzir a situação de “trabalhador autônomo” dos associados de cooperativas de trabalho, conforme dispunha o Dec. nº 357, de 07/12/1991, que aprovava o Regulamento de Benefícios da Previdência Social.
O argumento jurídico apresentado no PL nº 3.383/92 também se estendeu à jurisprudência. A “extensa lista de julgados dos nossos tribunais”[6], representaria o entendimento dominante da Justiça do Trabalho, e nesse sentido o projeto de lei proporcionaria mais segurança jurídica, na medida em que tal entendimento estaria positivado em lei. O curioso é que nenhum dos excertos jurisprudenciais reunidos no PL se referia à hipótese de reconhecimento do vínculo empregatício entre cooperados e tomadores de serviços (de cooperativas), mas tão-só entre os cooperados e a própria cooperativa a que pertencem.
Não houve apresentação de emendas e, por conseguinte, os “debates” parlamentares foram praticamente inexistentes, limitando-se às comissões temáticas da Câmara dos Deputados, onde o projeto foi aprovado com extrema facilidade.
Decerto que o projeto que redundou na alteração da CLT faz associações importantes entre “terceirização”, “flexibilização” e “crise econômico-social”, além de reproduzir que a terceirização implicaria na “substituição da mão-de-obra interna das empresas”.
Mas apesar de o cenário reproduzido sugerir uma visão global da conjuntura econômica brasileira, o projeto foi proposto como solução para uma situação muito particular no meio rural.
Há um consenso na literatura jurídica de que a motivação política por trás do projeto era, de fato, o fortalecimento das ações em favor da reforma agrária, protagonizadas àquela altura pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Martins (2008) descreve que as cooperativas de produção patrocinadas pelo MST possuíam associados que prestavam serviço, por empreitada, para proprietários de terras vizinhas ao assentamento. Relata o autor que “após se desligarem da cooperativa, [os cooperados] ajuizavam ação na Justiça do Trabalho”, onde conseguiam lograr êxito na pretensão de terem o vínculo empregatício reconhecido com o MST (MARTINS, 2008, p. 31).
É provável que o cenário descrito por Martins dê conta apenas de parte do problema visualizado pelos propositores do PL nº 3.383/92. Em seus estudos do MST, Borges (2009) esclarece que o Sistema Cooperativista dos Assentados (SCA) tornou-se um projeto nacional, com a pretensão de se tornar um modelo de “empresa cooperativista” (BORGES, 2009, p. 6), com uma hierarquização funcional em vários níveis, com elevada especialização na divisão do trabalho, com sofisticada integração vertical, e que abrangeria não só produtores rurais assentados, como também os não assentados. Portanto, várias são as situações que podem ser projetadas a partir dessa perspectiva. Proprietários assentados que desistiam da sua gleba, mas que se mantinham na condição de cooperados, atuando em terras alienadas a outros assentados, ou até a adquirentes de fora do assentamento. Adesão de associados não proprietários, mas que se integravam ao esforço coletivo da produção. Adesão de associados não proprietários, e que atuavam noutras instâncias da cadeia que se estendia da produção ao comércio.
Tais hipóteses parecem consistentes com o mosaico de desvios possíveis, considerando que se trata de um cooperativismo de produção, que assume como pressuposto a propriedade da terra, mas que admite a possibilidade de associar indivíduos que não a possuam. Fazia, pois, todo sentido incluir no projeto de lei os vários tipos de sociedades cooperativas existentes, não se restringindo apenas às de trabalho, pois afinal de contas não era o caso das Cooperativas de Produção Agropecuária (CPAs).
A pergunta que se poderia fazer é a seguinte: por que não se alterou a lei geral do cooperativismo (5.764/71), em vez da CLT?
Porque seria muito mais significativo (e simbólico) criar uma exceção à proteção do emprego no próprio estatuto do empregado brasileiro, como ocorre com os trabalhadores domésticos (CLT, art. 7º), com os trabalhadores que laboram por empreitada para o “dono da obra” (CLT, art. 455 c/c OJ nº 191, TST), e de forma menos abrangente, mas talvez ainda mais significativa, com certos trabalhadores em face do sistema de proteção quanto à duração do trabalho (CLT, art. 62)[7].
Inserir um elemento de exceção justamente no capítulo destinado à contratualização da relação de emprego revela a tentativa de criar um óbice substancial à constituição desse contrato, na expectativa de se poder afastar, ainda que de forma parcial, a teoria especial das nulidades do Direito do Trabalho (GOMES; GOTTSCHALK, 2002).
A medida política, embora endereçada às relações de trabalho no campo, fora acolhida com alegria no meio urbano. A quantidade de cooperativas de trabalho criadas no país cresceu do dia para a noite. Muitas delas tiveram origem a partir da dissolução de sociedades empresárias, como se os empreendedores, “acometidos de uma epifania de solidariedade coletiva”, abrissem mão da ética capitalista individualista (ASSUMPÇÃO; ANDRADE, p. 161).
Não havia, de fato, forma mais barata e maciça de terceirização. As cooperativas se alojaram em todos os espaços em que era possível estabelecer uma relação de trabalho. Elas também se aninharam no setor público, sendo mesmo provável que tenha se tornado o terreno mais fértil em que poderiam se desenvolver. Diga-se isto porque a relação de prestação de serviços para a Administração Pública oferece uma dupla proteção. De um lado, a já mencionada exclusão celetista, de outro, a sólida posição da jurisprudência trabalhista em favor da gestão pública, que não reconhece a formação do vínculo empregatício, sem que a condição do concurso público seja satisfeita (Súmula nº 363 do TST).
Foram criadas cooperativas de trabalho tão variadas quanto é possível à imaginação humana conceber. Multifuncionais, regionais, nacionais e até internacionais. Em Resende, município do interior do Rio de Janeiro, havia uma cooperativa de serviços públicos que prestava serviços para a prefeitura, que no final da década de noventa contava com 1.500 “associados”, número que comparado à estatística de emprego mais recente, de janeiro de 2014, representa quase 5% da massa de trabalhadores formais contratados naquele município[8]. Se empresa fosse, tal cooperativa estaria entre as dez maiores empregadoras de toda região Sul-Fluminense do Rio de Janeiro.
Mesmo hoje, a decretação de ilicitude de um episódio de terceirização, seja no âmbito judicial, ou no campo de atuação da Inspeção do Trabalho, não é tarefa fácil. Mas diante da evidência do abuso que se observou Brasil afora, a reação não tardou a chegar; e ela veio do meio jurídico.
Os fundamentos jurídicos do PL nº 3.383/92 eram, de fato, pífios. O argumento normativo vinha de outra instância do nosso sistema de proteção social: a Previdência, que a despeito da importante interface com a regulação do trabalho, com ela não se confunde. O argumento jurisprudencial, cujo valor reside na tentativa de captar a tendência do sistema de justiça na apreciação, sob condições controladas, dos conflitos que emergem num determinado cenário de interações sócio-jurídicas, não eram compatíveis com a proposta legislativa.
Mas a estratégia fora bem traçada, pois o óbice “formal” ao reconhecimento do vínculo empregatício do trabalhador cooperado não se situava no aparato negocial da prestação de serviços. Era a própria condição de cooperado que excluía a relação de emprego protegida pela CLT.
Diga-se isto, porque as sociedades cooperativas pressupõem uma affectio societatis que é uma expressão superlativa do ânimo associativo presente nas formas empresariais de associação de pessoas. Basta se pensar numa empresa sem empregados, e que por isso os próprios donos, detentores de participações societárias idênticas, prestam serviço, pessoalmente, para uma determinada tomadora.
A condição de cooperado surge como um óbice formal porquanto seu status depende de atos jurídicos formais de volição, tanto individuais, de associação, quanto coletivos, de constituição societária. Mas uma vez superadas essas “formalidades”, seu novo status reconfigura o próprio sujeito-trabalhador, tornando-o substancialmente incapaz de polarizar uma relação de emprego. A condição de cooperado penetra na subjetividade do trabalhador, como a menoridade no jovem de 14 anos, que a despeito de poder dispor de animus e capacidade física para se apresentar laboriosamente para a sociedade, sua condição de trabalhador não pode, por ela, ser assimilada.
O caminho poderia ser o mesmo socorro tecnicista fornecido ao nosso jovem de 14 anos: a aplicação integral do regime geral de nulidades do Direito do Trabalho[9]. Contudo, a constituição da relação de emprego firmada com o associado de cooperativa não é obstada por nulidades, como seria o caso do trabalhador menor, ou do empregado público não concursado, hipóteses nas quais o trabalhador seria empurrado para uma espécie de limbo jurídico. Em vez disso, a idealização do trabalhador cooperado, verdadeiramente livre e capaz de superar os perversos termos de troca do valor-trabalho impostos pela sociedade capitalista, se sobrepõe ao trabalhador oprimido pelo poder empregatício mirado pela CLT. Por que socorrer esse trabalhador, concedendo-lhe o amparo de um estatuto de resistência individual, se ele dispõe do melhor modelo de resistência coletiva até então conhecido?
As perspectivas laborais traçadas por Supiot (2003) refletiam uma tendência preocupante de indeterminação do elo subordinativo, tão valioso para a relação de emprego. Demonstrava-se que a técnica do “feixe de indícios”, utilizada pelo Judiciário para decidir acerca da existência da subordinação, já não dava conta de iluminar com segurança a vasta “zona gris” representada pelas novas formas de trabalho. Supiot apontou para um vetor que representava, na prática, o retorno ao paradigma liberal clássico, na medida em que se reforçava o pressuposto da liberdade contratual como fundamento do seu caráter compromissório.
Previa-se a fragilização de um dos mais importantes princípios informadores do Direito do Trabalho: a primazia da realidade, pois a segurança jurídica, representada pela previsibilidade das decisões judiciais, dependia da preservação dos efeitos jurídicos previstos (e desejados) quando da formalização dos contratos.
Mas a crítica do sistema jurídico brasileiro à precarização do emprego, causada pela “geração espontânea” de cooperativas de trabalho pelo país, demonstrou o quão arraigados estavam os fundamentos do nosso Direito do Trabalho.
O princípio da primazia da realidade foi erguido como o principal fundamento de combate da tendência precarizante impulsionada pela proliferação de cooperativas de trabalho. Expressões como “fraudoperativas” ou “cooperfraudes” passaram a fazer parte do glossário jurídico brasileiro, não só entre os tratadistas, mas também nas decisões judiciais.
A resposta do meio jurídico foi interessante por duas razões. A primeira é que, numa rara experiência interdisciplinar aplicada, o Direito do Trabalho estendeu o emprego do princípio da primazia da realidade não apenas à dinâmica da relação de trabalho, espaço-tempo adequado ao uso da técnica do “feixe de indícios”, mas ao próprio fenômeno do associativismo. Embora reinterpretado a partir de categorias jurídicas ramificadas, o processo de formação das associações cooperativas precisou ser observado casuisticamente em sua dinâmica histórica. A observação constante do fenômeno permitiu a formação de certas hipóteses que se sustentavam em bases não jurídicas, mas que foram determinantes para a construção de teses que predominaram no âmbito da teoria da prova, no processo judicial trabalhista.
A segunda razão diz respeito à superação, ao menos circunstancial, das contradições epistemológicas do próprio direito. A resistência político-jurídica que surgiu do “tripé institucional de defesa do trabalhador” (PIRES, 2009), representado pela Justiça do Trabalho, Inspeção do Trabalho e Ministério Público do Trabalho, não se estruturou a partir de um “ativismo” de fundo ideológico, o que fundamentaria o conjunto decisório e propositivo em bases decisionistas (SCHMITT, apud AGUILLAR, 2001). De fato, ela veio do exercício de uma pretensão científica que, a despeito dos diversos matizes, surge de uma plataforma comum: a objetivação (e não transformação) de uma dada realidade social.
Se a precarização do emprego se mantém num gabarito de objetividade, a resistência também deveria se estruturar da mesma forma. Características remuneratórias, expressões do poder diretivo, distribuição do tempo do trabalho, por exemplo, ascenderam de seu status de simples indícios, tornando-se quase termos de uma cadeia de causalidade, requisitos de verossimilhança para a verificação objetiva da relação de trabalho, mediante subordinação direta com o tomador de serviços. Por outro lado, a autenticidade do fenômeno associativo foi submetida ao cumprimento objetivo dos princípios do cooperativismo, à oferta de provas cabais do acesso à informação por parte dos associados e, principalmente, da affectio societatis.
O estado da arte do debate acadêmico sobre os desvios do cooperativismo de Trabalho no Brasil, amplíssimo de trabalhos de boa estrutura, facilitou a criação de um roteiro comum, que balizou a atuação institucional de defesa do emprego. As cartilhas da Inspeção do Trabalho, como o “Manual de Cooperativas”, procurou padronizar a ação fiscalizadora do Estado, papel semelhante atribuído ao sistema de unificação jurisprudencial, da Justiça do Trabalho, e de uniformização das ações do Ministério Público do Trabalho.
O movimento institucional de resistência influenciou a forma pela qual os grupos de interesse empresarial abordavam o tema do cooperativismo. As federações de indústrias preconizavam alguma cautela, enquanto não viesse regulação mais sólida com relação ao tema das terceirizações. O Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), no intuito de impulsionar o cooperativismo empreendedor, produziu material com conteúdo teórico de tão boa qualidade, que chegou mesmo a ser usado como referência para treinamento da Auditoria-Fiscal do Trabalho.
Quase concomitantemente, vieram os primeiros indícios de uma mudança de concepção política, na forma de projetos de lei voltados à revogação do parágrafo único do art. 442, da CLT, dentro dos quais se destaca o de nº 142/2003, de autoria do Deputado Aloysio Nunes Ferreira, do PSDB, partido que se convertera no principal braço político do neoliberalismo no Brasil.
O movimento de resistência freou o ímpeto da precarização do emprego pela via das cooperativas de trabalho, na medida em que a ação institucional do Estado, através da Justiça do Trabalho, Inspeção do Trabalho e Ministério Público do Trabalho, conseguiu formular critérios objetivos tanto para identificar as relações de subordinação, no âmbito da terceirização, quanto para evidenciar o caráter empresarial de boa parte dessas sociedades cooperativas.
Contudo, o processo de criação dessa “frente de batalha” contra a precarização do emprego foi conduzido segundo a tese do desvio de finalidade das cooperativas de trabalho, e não de sua negação ontológica. Até hoje se preserva, no imaginário institucional que circunscreve o mundo do trabalho, a possibilidade – em tese – de haver uma cooperativa de trabalho que atue segundo os princípios do cooperativismo. Reconhece-se, todavia, que se trata de um evento raro, se comparado com outras expressões de organização cooperativista que tendem a ser mais “autênticas”, como seria o caso das cooperativas de crédito, de consumo e de produção.
Em verdade, em se tratando de uma resistência fundada no discurso jurídico, não se poderia negar, a priori, a possibilidade de se constituírem cooperativas de trabalho, até porque tal previsão vem disposta na nossa lei geral do cooperativismo. Por isso mesmo, a validade do discurso jurídico, a despeito de sua influência no âmbito da práxis da experiência cooperativista brasileira, não foi capaz de desconstruir a concepção teórica de que as cooperativas de trabalho representam possibilidades emancipatórias dos trabalhadores, consistindo, elas mesmas, em formas de resistência da classe trabalhadora.
As bases desse ideário também sustentam o discurso político. Da mesma forma que em 1992, um projeto de lei considerou as cooperativas de trabalho a “fórmula mágica” de combate ao desemprego, a tese salvacionista da sociedade do trabalho, a partir do cooperativismo de mão-de-obra poderia ser reintroduzida no futuro, inclusive dissociada de um contexto de crise.
Isto se deu, de fato, em 2012, num momento em que já se tinha a convicção de que as políticas econômicas anticíclicas adotadas pelo Brasil haviam desviado os efeitos da crise econômica mundial, deflagrada em 2008, e de que estávamos sustentando níveis de ocupação que nos aproximavam do pleno emprego. A Lei 12.690/12 veio se somar à lei geral do cooperativismo brasileiro, vindo a regular, com exclusividade, as cooperativas de trabalho, dando-lhes “nova vida”[10].