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Formação da propriedade: uma análise dos institutos urbanísticos à luz da função social da cidade e da favela

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Agenda 31/12/2016 às 15:58

3. Produção Desigual do Espaço Urbano

O preço da terra dificulta o desenvolvimento urbano sadio, na medida em que eleva a desigualdade econômica à critério de distribuição socioespacial, promovendo discriminação e isolamento entre classes. Em um primeiro passo, o preço da terra limita o acesso àqueles que possuem o capital suficiente para adquiri-la. Em um segundo passo, a distribuição desigual de instrumentos de mobilidade urbana, em contraposição à Lei 12.587/2012, importam em valorização de áreas da cidade em detrimento de outras, sem observância do princípio da afetação da mais-valia, melhor explanado em outro item deste trabalho.

Normalmente, as escolhas alocativas desses recursos já é feita pela classe política. Em um terceiro passo, assim como o dinheiro achará seu caminho como um fluxo intenso de um rio, as pessoas humildes encontrarão caminhos para “compartilhar” do acesso à cidade formal. Visto isso, a especulação imobiliária advinda de equipamentos públicos sem a contrapartida da instituição da contribuição de melhoria ou outros instrumentos urbanos de reinvestimentos em outras áreas da cidade reforça à desigualdade socioespacial, ao mesmo tempo em que incentiva o recrudescimento dos processos de favelização em áreas adjacentes.

Por outro lado, a tributação imobiliária na política urbana brasileira aumenta conforme o valor do imóvel, seu uso e localização, o que oportuniza argumentos de que a classe alta paga mais impostos e, portanto, merece usufruir dos melhores espaços da cidade. Essa concepção olvida a natureza não contraprestacional dos impostos, bem como o caráter social e democrático do Estado brasileiro, o que não recomenda sua disseminação na horda de jurista.

A tributação imobiliária possui um papel primordial como instrumento de política urbana brasileira, na medida em que poderá ser utilizado como incentivo à produtividade da terra, por exemplo. A título de exemplo, tem-se a edificação compulsória, preconizada no artigo 182, § 4º, da Lei Maior, a qual pode se aplicar a um imóvel já construído, que não observa, no entanto, o coeficiente de aproveitamento afeto à área pelo Plano Diretor, a ser melhor tratado no tópico “Direito de Construir e Intervenções Expropriativas”.

Examinado esse panorama, espera-se que os novos instrumentos inaugurados pelo Estatuto da Cidade contribuam para a transformação dos padrões de qualidade de vida nos centros urbanos, os quais vivenciam situações de engarrafamentos faraônicos, altos níveis de poluição, decorrentes da Economia Marrom[55], com as consequentes alergias e doenças respiratórias, altas estatísticas de violência urbana, superlotação dos serviços públicos mais básicos, inflação das redes de distribuição e seu consecutivo sucateamento.

Em uma perspectiva de sustentabilidade ambiental[56], o inchaço urbano demanda investimentos em cidades médias satélites e outras alternativas de desafogamento da malha infraestrutural das megalópoles. De todo modo, a Lei 10.257/01 aborda a gestão urbana democrática[57][58], a qual pode proporcionar o empoderamento da cidade informal[59], na razão de sua participação no processo decisório de construção de soluções e alternativas, feito no “asfalto”[60].

A redistribuição dos recursos orçamentários da cidade[61], com a participação de grupos marcados pela vulnerabilidade existencial, fortalecerá a demodiversidade e a articulação contra-hegemônica entre o global e o local. Essa participação democrática e o direito de acesso às políticas públicas vão ao encontro do projeto de cidade educadora explanado por Aparecida Luzia[62] , textualmente:

“O objetivo da Cidade Educadora é a melhor qualidade de vida da e na cidade, e para a qualidade de vida ter sentido é preciso potencializar os seus espaços educativos, a democratização do poder municipal e o desenvolvimento local, com base nos princípios ético, estéticos, comunicacionais, sociológicos e filosóficos transparentes entre o Estado e a sociedade civil. Cidade Educadora é um conjunto de cidades internacionais e nacionais que se articulam formando uma rede em torno dos princípios da Educação Cidadã e da Cidadania Planetária. O que isso significa? Significa que sobre este modelo de cidade incide a referência dos valores pedagógico, jurídico, filosófico e comunicativo”.

“(...) temos também o Direito Urbanístico que disciplina e/ou enuncia, com base na lição de Antonio Carceller Fernández: 1º - princípio de que o urbanismo é uma função pública, que fornece ao Direito Urbanístico sua característica de instrumento normativo, pelo qual o poder público atua no meio social e no domínio privado, para ordenar a realidade no interesse coletivo, sem prejuízo do princípio da legalidade; 2º - princípio da conformação da propriedade urbana pelas normas de ordenação urbanística, conexo, aliás, com o anterior; 3º - princípio da coesão dinâmica das normas urbanísticas (...), cuja eficácia assenta basicamente em conjuntos normativos (procedimentos), antes que em normas isoladas; 4º - princípio da afetação da mais-valias ao custo da urbanificação, segundo o qual os proprietários dos terrenos devem satisfazer os gastos da urbanificação, dentro dos limites do benefício dela decorrente para eles, como compensação pela melhoria das condições de edificabilidade que dela derivam para seus lotes; 5º - princípio da justa distribuição dos benefícios e ônus derivados da atuação urbanística.”

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Critica-se, portanto, a concentração em quantidade e qualidade dos equipamentos urbanos e investimentos públicos nas áreas nobres da cidade, em detrimento do planejamento orçamentário participativo e equidade do uso do espaço público na escolha da localização de instalações urbanas, o que nos remete para a inobservância do princípio da afetação da plus valia, preconizado no artigo 2º, inciso XI, da Lei 10.257/2001, explorado em tópico específico.

No ponto, pertinente aduzir que a associação de moradores da Rocinha[63] pleiteou alterar o nome da nova estação de metrô de “São Conrado” para “Rocinha”, com vistas a agregar visibilidade e inclusão da comunidade. Não só na Zona Sul, mas também nas áreas mais nobres da cidade vige uma “cegueira social” aos cordões anexos de concentração populacional com enorme disparidade de renda, de sorte a orientar uma mesma cidade com fronteiras invisíveis.

Sem juízos de valor, a contratação de serviços de porteiros, pedreiros, empregadas domésticas, babás, diaristas[64] exige dotação orçamentária urbana para otimizar a movimentação pendular diária[65], o que, quando não realizada, estimula a urbanização de baixos salários e o próprio recrudescimento das favelas no entorno desses bairros nobres. Constata-se, então, que a apropriação do espaço reflete e reproduz, simultaneamente, as contradições e as desigualdades, reafirmando a exclusão social.

Nessa discussão, adentra-se ao fechamento das linhas de ônibus que conectavam à Zona Norte à Zona Sul, com o fim das linhas no centro da cidade, tendo em vista a culpabilização de moradores de Favelas da Zona Norte pelos arrastões em praias da Zona Sul, notadamente a linha que ligava o Jacarezinho (Linha nº 474)[66].

Essas políticas “sanitaristas” de “melhoramento e embelezamento das cidades”[67][68], à custa de diversos direitos sociais, reafirma a política de esquecimento das massas humildes, à moda de Pereira Passos[69] e Carlos Lacerda. No ponto, cabe citar Maurício Mota e Emerson Moura[70]

“Tal reforma urbana ‘regeneração’ do Rio de Janeiro era formada pelo tripé saneamento – de afastamento de setores marginalizados das áreas centrais – embelezamento – tratamento estético e paisagístico que pressupunha a inexistência da pobreza e – segregação territorial – com a resolução do problema da propriedade urbana com a alocação da massa trabalhadora pobre para moradia em áreas afastadas. (...) A regulação urbanística da propriedade urbana demonstrou-se fracassada e as políticas públicas nas áreas metropolitanas brasileiras reiteraram a segregação espacial – com a produção e apropriação desigual do espaço urbano – a ampliação dos excludentes – com crescimento a população de rua e do comércio informal – e a setorialidade dos investimentos estatais – nas áreas valorizadas pelo mercado imobiliário.”

Ou seja, não se objetiva solucionar a questão social da pobreza. Pensa-se, como solução, o extermínio de toda uma camada populacional humilde da cidade, vista como a caixa da pandora dos problemas urbanos. De início, basta refletir que a renda da maior parte dos moradores de favelas[71] não é capaz de autofinanciar em termos estratosféricos a atividade de tráfico de estupefacientes em seu interior, cabendo ao leitor se perguntar, portanto, de onde advém esse consumo massivo de drogas mais “refinadas” ou recreativas.

A criminalização da pobreza prospera diante do “consenso” de que as favelas[72]  disseminam agentes criminógenos na sociedade e, portanto, representam risco social e  problemas urbanos. Explicamo-nos: pensa-se que ser pobre é sinônimo de ser “marginal”, de buscar o ilegal, esquecendo-se os males de reprodução das desigualdades sociais, causados pela quantidade de verbas públicas desviadas por políticos e empresários, em esquemas complexos orquestrados por pessoas com a educação nos melhores colégios que o dinheiro pode pagar.

3.1. Sociedade de Risco

Crucial essa constatação, pois como Ulrick Beck[73] já sustentou “(o) efeito social das definições de risco não depende portanto de sua solidez científica”. O autor declara que “os ricos (em termos de renda, poder, educação) podem comprar segurança e liberdade em relação ao risco”[74]. Vive-se na sociedade de risco urbano, o que não significa “la societé de la mort annoncé”[75].

Nesse rumo, a possibilidade privada de escape são vendidas por Incorporadoras nos condomínios isolados e gradeados da Barra da Tijuca, como mini-cidades. Apesar disso, reconhece-se que o smog afeta a todos, no sentido em que o efeito bumerangue dos riscos afetam tanto os ricos quanto os pobres, tendendo para a unidade entre o culpado e a vítima[76].

A título de exemplo, a constante poluição desvaloriza a propriedade, na medida em que retira suas propriedades ecológicas normais, como que desapropriando-a sorrateiramente. Sendo assim, Ulrick Beck conceitua que a desapropriação ecológica é a “desapropriação social e econômica com a manutenção da propriedade legal”[77]. Nas palavras de Enzo Bello[78], a cisão entre a natureza e o homem[79] impõe, segundo Boaventura de Souza Santos, um

“(...) reducionismo da natureza, transformando-a numa máquina, mesmo sendo ela algo vivo e autopoiético (que se cria e recria per si); e um reducionismo ao ser humano, concebendo-se que o indivíduo só se torna social num segundo momento, no qual realiza um movimento para fora (ou para cima) da natureza, por um lado permitindo o desenvolvimento tecnológico e humano, mas por outro destruindo a natureza e colocando a sobrevivência da espécie humana sob ameaça iminente. Em outras palavras, deixa-se de acreditar que o homem pertence à natureza e a natureza pertence ao homem.”

Adicionalmente, Ulrick Beck se preocupa com a canibalização mercantilizante dos riscos em disputas parciais de definição da extensão e grau dos riscos envolvidos. E arremata[80]

“A força motriz na sociedade de classes pode ser resumida na frase: tenho fome! O movimento desencadeado com a emergência da sociedade de risco, ao contrário, é expresso pela afirmação: tenho medo! A solidariedade da carência é substituída pela solidariedade do medo.”

De outro bordo, a pós-modernidade, já explicitada por Zygmund Bauman, reforça a fluidez e flexibilidade, retirando a subjetividade das geolocalidades. Nessa diretriz, Vanderlei Martins[81] elenca algumas modificações contemporâneas

“Surgimento de uma contracultura do direito inoficial. Abundância de leis que ‘não pegam’. Número excessivo de leis e decretos em vigor. Uso recorrente de um discurso jurídico-normativo ininteligível e inacessível. Excessiva dispersão normativa, como fruto de políticas públicas desorganizadas e de estruturas burocráticas mal distribuídas ou administradas. Erosão do judiciário. Ineficácia de decisões judiciais. Perda das referenciais socioinstitucionais e representativas de autoridade. Descrédito das instituições públicas. Pouca transparência do conteúdo das políticas institucionais. Falta de conscientização e de participação na discussão das leis. Cultura política favorável às epidemias carismáticas de poder. Uso de leis como medida política de negociação de interesses intra-partidários. Predominância de uma cultura do bureau (burocratismo). Emprego recorrente da ideia de segurança jurídica, em lugar da ideia da eficiência do sistema. Importação de leis e modelos normativos não condizentes com a realidade e com os regionalismos. Verticalismo da legislação brasileira. Confusa e conflituosa interação entre os poderes. Deficiência da máquina burocrática. Elevadas taxas e altos índices de corrupção. Impunidade e ineficiência do sistema normativo. Falta de planejamento na estruturação das políticas públicas. Falta de uma cultura de solução alternativa de litígios. Proliferação de CPIs. Aumento indiscriminado do uso de medidas provisórias.”

Complementarmente, nas palavras de Enzo Bello[82], o paradigma moderno resume-se em três perspectivas: a) ontológica, na medida em que todo ser é determinado; b) antropológica, pois o ser humano é um ser racional; c) epistemológica, já que o conhecimento advém da racionalidade. Nesse contexto, o autor aborda a teoria política do individualismo possessivo de Crawford Brough Macpherson[83] e a aplica à sociedade do mercado possessivo, senão vejamos:

“Na síntese de Macpherson, a teoria política do individualismo possessivo pode ser explicitada em sete proposições fundamentais: (i) O que confere aos seres o atributo de humanos é a liberdade de dependência da vontade alheia. (ii) A liberdade da dependência alheia significa liberdade de quaisquer relações com outros, menos as relações em que os indivíduos entram voluntariamente visando a seu próprio proveito. (iii) O indivíduo é essencialmente o proprietário de sua própria pessoa e de suas próprias capacidades, pelas quais ele não deve nada à sociedade. (iv) Se bem que o indivíduo não possa alienar a totalidade de sua propriedade de sua própria pessoa, ele pode alienar sua capacidade de trabalho. (v) A sociedade humana consiste de uma série de relações de mercado. (vi) Já que a liberdade das vontades dos outros é o que torna humano o indivíduo, a liberdade de cada indivíduo só pode ser legitimamente limitada pelos deveres e normas necessários para garantir a mesma liberdade aos outros. (vii) A sociedade política é um artifício humano para a proteção da propriedade individual da própria pessoa e dos próprios bens, e (portanto), para a manutenção das relações ordeiras de trocas entre os indivíduos, considerados como proprietários de si mesmos. (…) ‘sociedade de mercado possessivo’, estruturada nos seguintes postulados: (a) Não há uma divisão impositiva do trabalho; (b) Não há um suprimento impositivo de recompensas ao trabalho; (c) Há definição e obrigatoriedade impositivas para o cumprimento de contratos; (d) Todos os indivíduos procuram racionalmente maximizar seus proveitos; (e) A capacidade de trabalho de cada indivíduo é de sua propriedade e é alienável; (f) A terra e os recursos pertencem aos indivíduos são alienáveis; (g) Alguns indivíduos querem um nível maior de proveitos ou de poder do que já têm; (h) Alguns indivíduos têm mais energia, qualificação ou posses do que os outros”.

Sobre o autor
Lucas Medeiros Gomes

Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Especialista em Regulação na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Defensor Público Federal. Juiz Federal Substituto no Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Lucas Medeiros. Formação da propriedade: uma análise dos institutos urbanísticos à luz da função social da cidade e da favela. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4931, 31 dez. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/52613. Acesso em: 22 nov. 2024.

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