6. O Capital
Na sociedade pós-moderna, a propriedade é convertível em dinheiro, sendo patrimônio que enseja um poder de disposição econômico abstrato. Preambularmente, estipule-se que capital não se confunde com dinheiro, que é apenas uma das maneiras em que o capital circula. A esse respeito, Locke, como já analisado no início deste trabalho, entende que a invenção do dinheiro possibilitou o acúmulo de posses, por ser duradouro e imperecível[109].
Sendo assim, a corrente tradicional de interpretação de Locke entende que a criação do dinheiro representaria a concordância implícita da sociedade na desigualdade de partição de bens. Já a corrente comunitarista[110] entende que, para Locke, não se pode adquirir propriedade em montante além do que se possa efetivamente usar, tampouco privar terceiros do acesso à bens essenciais.
Em outro vértice, para Adam Smith, um grande mercado exige maior especialização e divisão do trabalho, o que proporciona maior eficiência econômica e comercialização de produtos. Nessa perspectiva, a riqueza das nações é possibilitada pela estocagem de capital. De seu turno, Hernando de Soto[111] entende que “o capital não é o estoque acumulado de ativos, mas o potencial que estes têm de desdobrarem-se em nova produção”.
Nessa linha de pensamento, Hernando nos ensina que a propriedade produz como efeitos como a fixação do potencial econômico dos ativos, a integração das informações dispersas em um único sistema, a responsabilização das pessoas, a transformação dos ativos em bens fungíveis, a integração das pessoas e a proteção das transações.
O autor entende que a integração do registro de transações de imóveis em escala nacional deslocou a legitimidade dos direitos da política das comunidades locais, por meio de acordos com a vizinhança para a impessoalidade da lei. Isso permitiu a extração de mais-valia dos ativos e acesso ao crédito, na medida em que os cidadãos são mais facilmente identificados pelo sistema.
Por medo de perder a propriedade formal, a tendência desses cidadãos é respeitar os contratos, o que confere mais segurança às transações comerciais e responsabilidade aos envolvidos, com a consequente redução de custos de obtenção de crédito e melhor mapeamento de riscos. Em geral, a rastreabilidade da documentação, com a representação legal do conceito econômico de propriedade, produz maior confiabilidade aos fluxos comerciais e garantem o adimplemento dos contratos.
7. Estatuto da Metrópole
O Estatuto da Metrópole objetivou melhorar a distribuição espacial da infraestrutura nos territórios conurbados, principalmente, por força de deslocamentos pendulares diários para o trabalho/estudo. A despeito disso, verifica-se uma baixa efetividade da Lei 13.089/15[112], em virtude da cooperação interfederativa ainda ser pautada por estratagemas competitivos e da não criação de um fundo de desenvolvimento[113].
O quadro de não fortalecimento institucional dos Municípios - que dependem das receitas do ICMS, do Fundo de Participação dos Municípios e das receitas tributárias próprias - incrementa essa situação-problema. Nesse tom, a análise de indicadores[114] aponta que
“a) as receitas tributárias tendem a se elevar na razão direta do crescimento das classes de tamanho populacional das cidades; b) que o FPM, a contrário, tende a diminuir com a progressão das classes de tamanho populacional; c) que o ICMS constitui a principal fonte de receita dos municípios de médio porte; c) que o ICMS constitui a principal fonte de receita dos municípios de médio porte; d) que os investimentos são maiores nas cidades menores do que nas maiores, sugerindo falta de relação entre maior autonomia financeira e alocação de fastos com investimentos; e) que as cidades com população inferior a 50 mil habitantes têm no FPM seu principal componente das receitas orçamentárias; e f) que as cidades com população superior a 100 mil habitantes têm no ICMS, principalmente, e nas receitas tributárias, secundariamente, suas principais fontes de receitas orçamentárias.”
Diante disso, a experiência da descentralização se resume à condição de participante da Federação trina, sem real formulação das políticas locais próprias, por conta das transferências orçamentárias federais de cunho retributivista (“era dos planos”). Ou melhor: a obtenção de recursos federais exige a obediência aos contornos do Estatuto da Metrópole, o que implica em intervenção e centralização indireta pela União.
Tal constatação é preocupante, dado que o empoderamento do poder local é condição necessária para o aprimoramento democrático, que não se confunde com descentralização ou municipalização. Assim, a gestão interfederativa[115] cria uma autarquia territorial, sem personalidade política, a qual não poderá alijar os Municípios dos processos decisórios, ainda que o mesmo tenha sido incluído contra sua vontade no arranjo institucional dado.
Portanto, a natureza jurídica dessa região metropolitana criada revela-se como associação compulsória de municípios. Essa gestão interfederativa engloba o Parlamento Metropolitano[116], que carece de regulamentação normativa, conforme Glauber de Lucena[117] explica
“Entende-se como Parlamento Metropolitano a entidade de natureza associativa, composta por membros do Poder Legislativo municipal que estejam situados em uma região metropolitana, assim reconhecida na forma do §3º do art. 25 da CF/88, criado para discutir os problemas e as ações em comum das edilidades, na tentativa de abrir um fórum positivo que gere o encontro de suas soluções, além de outras competências que lhe sejam outorgadas por meio de seus atos constitutivos, obedecendo aos limites e vedações dispostos no ordenamento jurídico nacional. Como entidade representativa, os Parlamentos Metropolitanos se destacam por permitirem a abertura de um campo de discussão integrado, que possibilita que os seus componentes possam trazer à tona as realidades existentes em suas edilidades, para que possam ser pensadas de forma coletiva e regionalizadas. Essas problemáticas comuns das cidades serão debatidas e publicizadas por aqueles agentes políticos que estão mais próximos e que conhecem, com profundidade, a realidade da população, os próprios vereadores.”
Nesse tom, apesar de a lógica da Lei ser de coordenação interfederativa, as relações entre os municípios permaneceram com viés competitivo, por conta dos orçamentos municipais, ao que se acrescenta a inexistência de fundo de desenvolvimento para o financiamento dos serviços públicos. Piorando essas deficiências exponencialmente, a capilaridade dos serviços de saúde e educação a serem financiados pelos municípios, retrai a capacidade financeira voltada para os programas urbanísticos.
8. Estatuto da Cidade
8.1. Da Exceção de Não Funcionalização Social do Domínio
O artigo 1.228, §§ 4º e 5º, do Código Civil inaugurou um novo instituto, cuja natureza jurídica é controversa na doutrina. Assim, já se caracterizou como (1) usucapião social; (2) desapropriação indireta ou expropriação judicial; (3) usucapião coletiva onerosa; (4) desapropriação privada ou judicial; (5) acessão invertida social; (6) direito potestativo a adquirir; (7) exceção de não funcionalização social do domínio.
Prefere-se, neste trabalho, adotar a última posição, tendo em conta que a usucapião é uma forma de aquisição gratuita pelo mero decurso do tempo. A mais, não se trata de desapropriação, porque não é efetuada pelo Poder Público, tampouco há procedimento administrativo. Por fim, não constitui acessão industrial imobiliária, pois não poderia ser exercitado a qualquer tempo.
Dito isso, percebe-se que ocorre um encobrimento do direito de propriedade[118] – em estado de apatia ou quiescência – pelos possuidores que cumprem a função social, sobressaindo o caráter de exceção material do instituto. Assim, caso não haja a demissão voluntária da posse, a posse funcionalizada impõe o encobrimento definitivo da propriedade, que restou em quiescência por tempo determinado, em analogia ao artigo 8º, § 2º, do Estatuto da Cidade.
Nesse tom, importa-nos consignar que a exceção material da posse coletiva qualificada só poderá ser exercida em eventual ação reivindicatória proposta pelo proprietário e a indenização, via de regra, corre por conta dos possuidores. Comenta-se, no entanto, que a indenização deverá sofrer redução, uma vez que a função social[119] integra o conteúdo da propriedade; portanto, a propriedade em quiescência apresenta valor menor. Para os moradores de baixo poder aquisitivo, a exceção resulta na ineficácia da ação, como no caso da favela do Pullman em São Paulo.
Quanto ao tema, carece transliterar o escólio de Marcos Alcino e Mauricio Mota[120]:
“Deste modo, a indenização devida em relação à propriedade que não cumpre a sua função social deve ser reduzida, aplicando-se, analogicamente, o que dispõe o art. 8º, § 2º, do Estatuto da Cidade, refletindo o valor de base do cálculo do IPTU, descontado deste o montante que os possuidores despenderam para proceder ao adequado aproveitamento do imóvel, consoante a sua função social. Esta será, sobretudo, uma solução para aqueles casos em que os possuidores não se dispuserem a esperar o tempo para usucapir e pretenderem adquirir logo a propriedade, até mesmo com financiamento, para aumentarem as suas chances de negociação social com a constituição do novo ativo. (...) Isso poderá ocorrer naquelas situações nas quais o Poder Público, reconhecendo a facticidade da posse coletiva, implanta no terreno desapossado ao proprietário, por si próprio ou através de suas concessionárias, equipamentos urbanos: água, iluminação pública e luz domiciliar. Ademais, estimula a implantação e ordenação da comunidade fornecendo material para o arruamento de vielas e realizando obras de asfaltamento e urbanização. Quando o município, por força da sua atuação positiva, como acima exposto, ou por força da sua atuação negativa, não coibindo o desenvolvimento de área de apropriação urbana ou rural irregular e deixando de reprimir o soerguimento de novas habitações irregulares, se torna também partícipe da posse coletiva do terreno particular, dando as condições para que o apossamento indevido prossiga (e até se desenvolva, em algumas situações), ele se torna passível de responsabilização e, portanto, de se constituir em sujeito passivo da indenização prevista no § 5º do art. 1.228 do Código Civil (nesse caso, por desapropriação indireta por fato próprio).”
De outro lado, Carlos Alberto Dabus Maluf[121] considera as disposições do artigo 1.228, §§ 4º e 5º inconstitucionais, na medida em que incentivam a invasão de terras rurais e urbanas, criando uma nova forma de perda do direito de propriedade, em detrimento do proprietário pagador de impostos.
8.2. Usucapião Coletiva
O artigo 10 da Lei 10.257/2001 inaugurou o instituto da usucapião especial coletiva. Tangencialmente ao instituto, cabe fazer uma breve exposição, por sua relação como um instituto de regulação do Direito das favelas. Exige-se, para a configuração da usucapião coletiva, a ocupação por população de baixa renda, com fins de moradia, de área urbana com mais de 250 m2, de modo ininterrupto e sem oposição.
Quanto ao critério de “baixa renda”, existem correntes que exigem, alternativamente (i) uma média abaixo de três salários mínimos; (ii) declaração dos autores; ou (iii) aferição da condição econômica do grupo e não de cada indivíduo. A mais, predomina que a destinação mista dos imóveis – comercial e residencial – não prejudica a incidência do instituto, em aplicação do princípio da proporcionalidade.
Após o reconhecimento judicial da usucapião, o Município necessita intervir no local para urbanizar e estruturá-lo conforme os ditames do Plano Diretor, como a abertura de ruas e praças. Quanto às vias públicas, há entendimento no sentido de que (i) passam automaticamente ao domínio municipal, (ii) constituem servidão legal no campo possessório, ou (iii) domínio particular comum, passível de doação para fins de urbanização ao Município.