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Sucessão legítima do companheiro e do cônjuge.

Análise comparativa e constitucional

Evolução histórica nos ordenamentos jurídicos da Roma Antiga, dentro do Direito Canônico e em território brasileiro através do Código Civil de 1916 bem como o de 2002.Análise da Constitucionalidade da separação das duas figuras no âmbito legal.

RESUMO

União Estável e casamento. Evolução histórica nos ordenamentos jurídicos da Roma Antiga, dentro do Direito Canônico e em território brasileiro através do Código Civil de 1916 bem como o de 2002. Comparação do tratamento jurídico dispensado a ambos os institutos no que concerne à sucessão. Análise da Constitucionalidade da separação das duas figuras no âmbito legal. Entendimento de tribunais e levantamento da questão no Supremo Tribunal Federal.

Palavras-chave: Direito Civil. Sucessão Legítima. Companheiro. Cônjuge. Constitucionalidade.

LEGITIMATE SUCCESSION OF COMPANION AND SPOUSE: COMPARATIVE AND CONSTITUTIONAL ANALYSIS

ABSTRACT

Common Law Marriage and marriage. Historical evolution in the scope of legal orders across the Ancient Rome, Canonic Law and in brazilian territory through Civil Codes of 1916 and 2002. Comparison between the approach of the two institutes concerning succession and heritage. Analysis regarding the constitutionality of the separated approach given to the two modalities. Judge-made law in Brazil and evoking of the matter in the Supreme Court.

Keywords: Civil Law. Legitimate Succession. Companion. Spouse. Constitutionality.

1 INTRODUÇÃO

 

O presente artigo tem como objetivo principal o estabelecimento de uma análise comparativa entre os institutos da união estável e do casamento no que diz respeito à sucessão relativa aos cônjuges, através de apresentação da evolução histórica do tema e de seu tratamento em outros sistemas jurídicos e épocas, iniciando-se na Roma antiga, percorrendo o direito canônico e o Código Civil brasileiro de 1916, até que se alcance o diploma vigente, o Código Civil de 2002.

Percorrer-se-á também a análise propriamente dita do funcionamento dos citados institutos, comparando a figura do cônjuge à do companheiro, suas semelhanças e diferenças no que concerne à sucessão. Já que são tratados distintamente dentro do ordenamento jurídico brasileiro, a herança do cônjuge guarda relação de dependência com o regime de bens adotado para o casamento e com a aquisição de bens via meação, enquanto que, em se tratando do companheiro em sede de união estável, não existem tais figuras, reservando a Lei tratamento e condições diferenciadas para este tipo de entidade familiar.

Faz-se também relevante questionamento à constitucionalidade deste tratamento diferenciado na sucessão entre cônjuges e companheiros, tema sobre o qual foi reconhecida a repercussão geral e em será em breve julgado pelo Supremo Tribunal de Federal em relação ao art. 226 da Constituição Federal de 1988, definindo pela constitucionalidade ou não do referido dispositivo. Apresenta-se argumentos favoráveis a ambas as correntes, destacando bem como defendendo prioritariamente os que prezam pela inconstitucionalidade do dispositivo, apontando-se para o direcionamento no sentido de equiparar a união estável ao casamento e conferir a esta uma variedade de efeitos outrora consagrados somente pelo matrimônio.

 

2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA UNIÃO ESTÁVEL

 

Até o advento da Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002, as relações afetivas entre homem e a mulher só seriam consideradas legítimas se tivessem tutelados pelo instituto do casamento. As relações afetivas que se davam sem o amparo deste instituto, eram consideradas ilegítimas e dava-se o nome de “concubinato”.

Diante de um retrospecto histórico, na Roma clássica, o concubinato (concubinatos – cun cubere – deitar-se com) era considerado uma forma de união de fato, porém sem a intenção de formar família. Mesmo conhecido por um tipo de relacionamento inferior, não era proibido e tampouco atentatório à moral, no entanto, os filhos oriundos desse relacionamento eram considerados ilegítimos permanecendo vinculados à família materna.

No Brasil, século XVI, em uma tentativa de reconhecer relações afetivas sem o atestado legal, as Ordenações Filipinas admitiam o concubinato puro – àquelas entre pessoas desimpedidas – como uma forma de casamento de fato, configurando-se quando uma mulher e um homem conviviam por um longo período juntos, com intuito de gerar uma família, o que daria direito à meação dos bens adquiridos na constância da relação, casos muito comuns na sociedade da época. Entretanto, não passaria de uma disposição morta, visto que, a formação e organização da família no Brasil eram reguladas exclusivamente pela Igreja Católica. Antes tolerante com o concubinato não adulterino (puro), o Direito Canônico conferia-lhes alguns efeitos, mesmo que limitado, pois visava preservar a monogamia e a família, porém sem nunca a institucionalizando. Por sua vez, após relatos de que os próprios integrantes da Igreja – inclusive Papas – passaram a ter concubinas, ocorreram variadas discussões que posteriormente resultaram na condenação total do concubinato com o surgimento do Concílio de Trento no ano de 1563, tornando obrigatória a celebração do casamento na sua forma legal, esta se dando na presença de um padre e testemunhas, com registro escrito.

Em 1890, iluminado pelo reflexo da Reforma Protestante – insatisfação contra os ditames da Igreja Católica – que trouxe a distinção entre o mundo secular e o espiritual possibilitando a separação entre Igreja e Estado ensejando que o casamento pudesse ser tutelado pelo último, no Brasil, através do Decreto 181, de 24 de janeiro daquele mesmo ano, foi instituído o casamento civil, formalizando-se a constituição da família, deixando de reconhecer efeitos jurídicos às relações familiares de fato, bem como ao casamento religioso e ao casamento por contrato particular.

No mesmo viés, entra em cena o Código Civil de 1916, que buscando resguardar o patrimônio da família regularmente constituída pelo casamento cerca de sanções o concubinato adulterino, tratando-se de impedir: doações do concubino casado ao seu “cúmplice”, podendo ser anuladas pelo outro cônjuge, ou pelos seus herdeiros necessários, até dois anos depois de dissolvida a sociedade conjugal (artigo 1.177); de vedar que o concubino fosse instituído beneficiário em seguro de vida (art. 1.474) e; de proibir que a concubina de testador casado fosse nomeada herdeira ou legatária (art. 1.719). Entretanto, o CC de 1916 ignora as uniões de fato por pessoas desimpedidas, colocando no mesmo bojo as relações afetivas que apesar de desimpedidas não optem pelo casamento, ou até mesmo iguala casamentos concebidos de forma legal no exterior aos relacionamentos considerados marginais. Nesse sentido, Edgard Moura Bittencourt, aduz:

A expressão concubinato, que em linguagem corrente é sinônima de união livre, à margem da lei e da moral, tem no campo jurídico mais amplo conteúdo. Para os efeitos legais, não apenas são concubinos os que mantem vida marital sem serem casados, senão também os que contraíram matrimônio não reconhecido legalmente, por mais respeitável que seja perante a consciência dos contraentes, como sucede com o casamento religioso; os que celebrarem validamente no estrangeiro um matrimonio não reconhecido pelas leis pátrias; e ainda os que vivem sob um casamento posteriormente declarado nulo e que não reunia as condições para ser putativo. (apud CARLOS R.GONÇALVES, 2011).

Foi a partir da legislação previdenciária que as uniões informais começam a ter reconhecimento, pois nesse âmbito não interessava questionar as regularidades da instituição familiar, e sim a dependência econômica. Tem destaque com o Decreto 24.627, de 10 de julho de 1934, que introduz ao ordenamento pátrio o termo “companheira” possibilitando que fosse indicada pelo trabalhador como dependente. Apesar da novidade, foi papel da jurisprudência lapidar as inovações que viriam no decorrer do tempo, a primeira importante lapidação foi a distinção entre concubina e companheira, que serviu para excluir esta última das proibições dos artigos 1.177, 1.424 e 1.719, III, do CC de 1916. Dessa forma, a concubina seria exclusivamente a mulher que se relacionasse com um homem casado, no âmbito do matrimônio, e por sua vez a companheira era a que mantinha relacionamento homem desimpedido ou, ao menos, separado de fato. A primeira integrava um concubinato impuro, enquanto a segunda compunha um concubinato puro. Corroborando, o Min. Antônio Nader, no julgamento do RE nº 83.930, assentou conhecido aresto do STF, assim:

A concubina seria aquela mulher com quem o cônjuge adúltero tem encontros periódicos fora do lar. A companheira seria aquela com quem o varão, separado de fato da esposa, ou mesmo de direito, mantém convivência ‘more uxorio’.

Outra lapidação importante foi a formulação da súmula 380 do STF, pois os juristas brasileiros passaram a perceber que a ruptura de um longo concubinato, unilateralmente ou de forma mútua, criava uma situação extremamente injusta para um dos concubinos, visto que, em alguns casos os bens adquiridos por esforço comum seriam de direito apenas do varão. Com isso, a súmula 380 cita: “Comprovada a existência da sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”.

Em meios as mudanças jurisprudenciais, adequações sociais em relação ao tema em questão, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, § 3º, regulamenta a união estável entre homem e mulher considerando-a uma entidade familiar devendo ser facilitada sua conversão em casamento. De modo sistemático, surgiram duas leis infraconstitucionais que tem como objetivo regulamentar a União Estável foram as Leis de nº 8.971/94 e a de nº 9.278/96, a primeira definiu como “companheiro” o homem e a mulher que mantenham união comprovada, na qualidade de solteiros, separadas judicialmente, divorciados ou viúvos, por mais de cinco anos, ou com prole (concubinato puro). A segunda, por sua vez, surge para reformular este conceito, e logo em seu artigo 1º considera-se entidade familiar a convivência à longo prazo, pública e continua, entre um homem e uma mulher, com intuito de constituir família. Nota-se, que esta lei inova o termo, antes “companheira”, agora conviventes.

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Ademais, o artigo 5º desta última lei abordava sobre a meação sobre os bens adquiridos durante o tempo da convivência, exaltando os frutos do trabalho e da colaboração em comum, salvo havendo estipulação em contrario por meio de contrato escrito. Destarte, presumindo a mútua colaboração dos conviventes na formação do patrimônio, cabendo a quem alegar a não participação do outro, provar.

Finalmente, o Código Civil de 2002 chamou a si a responsabilidade de regulamentar a união estável, e, ainda, em seu artigo 1.727 conceitua o concubinato diferenciando de forma mais concreta tais institutos.

3 ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE O DIREITO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002

 

Em que pesem as ponderações feitas acerca da concepção arcaica e atual da união estável, dentro do Direito Sucessório é possível concluir que ambos os institutos – união estável e casamento – não são vistos com equidade, para fins de sucessão legítima.

Em primeiro plano, versando sobre o cônjuge sobrevivente, o Código Civil o incluiu como herdeiro de primeira classe, isto é, nos termos do artigo 1.829, I, possui direitos sobre a herança em concorrência com os descendentes do de cujus. Aqui é importante ressaltar que os direitos de herdar do cônjuge dependem diretamente do regime de bens adotado. Herdam em concorrência com os descendentes aqueles casados em regime de comunhão de bens, no caso do falecido deixar bens particulares, os optantes pelo regime da participação final nos aquestos e pelo regime de separação convencional de bens. Em contrapartida, não figuram como herdeiros de primeira classe o marido ou esposa do regime de comunhão parcial de bens, não havendo bens particulares deixados pelo instituidor da herança, aqueles do regime de comunhão universal de bens e do regime da separação obrigatória de bens. Essa diferenciação representa, primordialmente, a preocupação do legislador em distinguir a meação da herança. Só possuem direito de herança o aquele que não adquire bens por meio da meação.

No que concerne à concorrência com os descendentes, o cônjuge sobrevivente possui direito ao quinhão igual ao cabível àqueles por cabeça; se, no entanto, os descendentes forem também filhos do cônjuge, a este é reservada quota não inferior à um quarto da herança (art. 1.832 do Código Civil). Segundo Carlos Roberto Gonçalves, sobre esse tema:

Se, por exemplo, o casal tinha três filhos, e falece o marido, a herança será dividida em partes iguais, entre a viúva e os filhos. Assim, o sobrevivente e cada um dos filhos receberá 25% da herança. Porém, o falecido deixou quatro ou mais filhos, e tendo de ser reservado um quarto da herança ao cônjuge sobrevivente, este receberá quinhão maior, repartindo-se os três quartos restantes entre os quatro ou mais filhos. (GONÇALVES, 2015. p. 176).

O doutrinador aponta ainda para a omissão da lei civil para os casos em que existem na concorrência hereditária tanto descendentes comuns ao de cujus e ao cônjuge quanto descendentes só do primeiro. Para tal impasse, parcela preponderante da doutrina converge para que, nesse caso, não seja feita a reserva ao cônjuge prevista no artigo 1.832 do Código Civil, pois este só teria direito à quota mínima de um quarto quando todos os descendentes forem comuns ao sobrevivente e ao falecido.

Em seguida na linha de vocação hereditária, prevê o artigo 1.829, II, que inexistindo descentes, têm direito à herança os ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente. Havendo cônjuge e ascendentes, a divisão da herança dar-se-á nos termos do artigo 1.837 da lei civil. Sobre o mencionado artigo, ponderou o estudioso Flávio Tartuce:

- Concorrendo o cônjuge com dois ascendentes de primeiro grau (pai ou mãe), terá direito a um terço da herança. Então, naquele primeiro exemplo, em que o falecido deixou os pais e a esposa, os três terão direitos sucessórios na mesma proporção, ou seja, em 1/3 da herança.

- Concorrendo o cônjuge somente com um ascendente de primeiro grau ou com outros ascendentes de graus diversos, terá direito à metade da herança. Primeiro exemplo: o falecido deixou a mãe e a esposa. Cada uma recebe a metade da herança. Segundo exemplo: o falecido deixou duas avós maternas e a esposa. A esposa recebe metade da herança. A outra metade é dividia entre as avós do falecido de forma igualitária. (TARTUCE, 2012. p. 1229).

A sequência da vocação hereditária estabelece que, não havendo ascendentes e descendentes, herda isoladamente o cônjuge sobrevivente (art. 1.829, III); e não existindo cônjuge, herdam os colaterais até o quarto grau. Por fim, sobre o direito sucessório do cônjuge, estabelece o artigo 1.830 do Código Civil que este só será reconhecido se ao tempo o óbito não estiver o sobrevivente separado judicialmente do falecido, nem separado de fato há mais de dois anos, salvo se comprovado        nesse último caso, que a convivência marital se tornou impossível por motivos que não foram culpa do cônjuge sobrevivente.

Feitos os apontamentos acima acerca do direito de herança ao marido ou esposa, é pertinente proceder com um comparativo destas em relação às previsões legais feitas ao companheiro(a), para fins de sucessão legítima. A primeira ressalva a ser feita é no que concerne à localização do artigo que versa sobre a sucessão do sobrevivente da união estável. O artigo 1.790 do Código Civil é situado nas disposições gerais do título referente ao direito das sucessões, e não no capítulo que versa da vocação hereditária – do qual se extrai a linha sequencial de herdeiros.

O caput do referido artigo aponta que “a companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável [...]” (BRASIL, 2002). Nota-se o primeiro aspecto de distinção entre os direitos sucessórios do companheiro e do cônjuge, uma vez que a lei estabelece como direito do primeiro herdar apenas os bens incorporados ao patrimônio do de cujus de forma onerosa. Isso porque, essa parcela dos bens a qual o companheiro tem direito é justamente aquela que é sua por meio da meação, uma vez que o artigo 1.725 do Código Civil designa à união estável os efeitos do regime de comunhão parcial de bens. Dessa forma, não são assegurados aos sobreviventes da união estável os mesmos direitos dos sobreviventes do matrimônio sob regime de comunhão parcial de bens, pois a esses últimos a lei garante o direito de herança sobre os bens particulares do falecido. Em contrapartida, Carlos Roberto Gonçalves exemplifica também uma possível situação de favorecimento do companheiro:

No sistema estabelecido, se o autor da herança, por exemplo, deixa um único bem adquirido onerosamente durante a convivência, um herdeiro filho e companheira, esta receberá 50% do bem pela meação e mais 25% pela concorrência na herança com o filho. Se o autor da herança fosse casado, nas mesmas condições, o cônjuge-viúvo teria direito apenas a 50% pela meação, restando igual porcentagem íntegra para o filho herdeiro. (GONÇALVES, 2015. p. 195).

Ademais, ainda sobre as disposições do caput do artigo 1.790, surge a discussão sobre o direito do companheiro a herdar bens adquiridos de forma gratuita pelo falecido – por meio de doação, exemplo. Não deixando esse último herdeiros além do companheiro, seria o caso desses bens serem transmitidos ao Estado? Flávio Tartuce filia-se ao entendimento de que, mesmo com a limitação dos bens direito sucessório do companheiro àqueles obtidos de forma onerosa, existindo bens adquiridos de forma gratuita e não havendo outros herdeiros, não devem esses ser transmitidos ao Estado, pois o artigo 1.844 é categórico ao estabelecer que os bens só serão conduzidos ao Estado se o falecido não deixar cônjuge, companheiro ou outro herdeiro. O segundo aspecto de tratamento diferenciado aos direitos do sobrevivente da união estável é que no artigo 1.790, I, que trata da concorrência deste com seus descendentes comuns com o falecido, não se preocupou o legislador com a reserva de no mínimo um quarto da herança, a exemplo do que é previsto ao cônjuge no artigo 1.832 do Código Civil.

O terceiro ponto de perceptível tratamento desigual à sucessão para a sucessão do companheiro infere-se da leitura do inciso II do artigo 1.790 do Código Civil, cujo texto diz que este “se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daquele.” (BRASIL, 2002). Além da diferenciação injustificada ao companheiro, esse último caso também deixa lacunas no que se refere à coexistência de descendentes comuns e híbridos na concorrência com o companheiro pela herança. Em tais casos, o entendimento majoritário é de que devem ser aplicadas as disposições do artigo 1.790, I, do Código Civil.

A lei civil ainda fez previsão à concorrência hereditária entre o companheiro e outros parentes sucessíveis (art. 1.790, III, CC) e só na inexistência desses, o companheiro herdará sozinho os bens (art. 1.790, IV, CC). Ao cônjuge também é prevista a concorrência com outros parentes – no caso, com os ascendentes do de cujus. Entretanto, o legislador sujeitou também o companheiro a concorrer com colaterais de até terceiro grau, sendo que nos demais casos, esses só são chamados à herança se não houver outros herdeiros.

Por fim, é importante ainda abordar que a lei deixou lacuna para uma possível concorrência entre cônjuge e companheiro. Isso porque o Código Civil pressupõe que os que convivam em união estável sejam solteiros, viúvos, separados de fato ou judicialmente. Além disso, estabelece ainda que os direitos sucessórios daqueles separados de fato só se excluem quando decorridos dois anos da separação. Assim, há a possibilidade de, alguém que era casado e esteja separado de fato a menos de dois anos e nesse intervalo constitua união estável. Sobrevindo sua morte, estariam aptos a herdar tanto o companheiro quando o cônjuge? Em tais casos, o entendimento jurisprudencial e majoritário na doutrina é que, herda o companheiro os bens adquiridos onerosamente no curso da união estável, como versa o artigo 1.790, caput; e o direito sucessório do cônjuge-viúvo ficará restrito aos bens anteriores à união estável, observando-se primeiramente o regime de bens adotado.

4 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1790, DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

 

Demonstradas as diferenças entre os regimes sucessórios adotados para o cônjuge supérstite e para o companheiro sobrevivente, merece especial atenção o polêmico tema da constitucionalidade ou inconstitucionalidade do tratamento diferenciado, previsto no Código Civil de 2002, dado aos institutos do casamento e da união estável. Neste sentido, faz-se necessário discutir a compreensão da ratio legis do art. 226, §3º, da Constituição Federal de 1988, o qual consagrou o reconhecimento da união estável como entidade familiar; bem como se este dispositivo constitucional determina ou não que seja dado tratamento paritário aos referidos institutos.

Pois bem. O referido dispositivo constitucional consagrou que, para efeito da proteção do estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. Esta norma não prescreve qualquer diferença entre a união estável e o casamento. Porém, para efeitos sucessórios, um questionamento subsiste: o reconhecimento da união estável como entidade familiar significa que a constituição federal previu que este instituto deve receber tratamento igualitário relativamente ao casamento?

As teses defensoras da inexistência de qualquer inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil necessariamente o respondem negativamente. A Constituição Federal, neste sentido, não teria equiparado os institutos da união estável e do casamento, mas tão somente reconhecido aquele como entidade familiar, de forma que o Código Civil não esbarraria na Constituição para resguardar prerrogativas ao cônjuge. Nesta senda, registra-se vasta jurisprudência:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. COMPANHEIRO SOBREVIVENTE. HERANÇA. PARTICIPAÇÃO. CONCORRÊNCIA COM DESCENDENTES. ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL. PRIVILÉGIO EM RELAÇÃO A CÔNJUGE SOBREVIVENTE. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. OFENSA AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA. INEXISTÊNCIA. A Constituição Federal não equiparou o instituto da união estável ao do casamento, tendo tão somente reconhecido aquele como entidade familiar (art. 226§ 3ºCF). Dessa forma, é possível verificar que a legislação civil buscou resguardar, de forma especial, o direito do cônjuge, o qual possui prerrogativas que não são asseguradas ao companheiro. Sendo assim, o tratamento diferenciado dado pelo Código Civil a esses institutos, especialmente no tocante ao direito sobre a participação na herança do companheiro ou cônjuge falecido, não ofende o princípio da isonomia, mesmo que, em determinados casos, como o dos presentes autos, possa parecer que o companheiro tenha sido privilegiado. O artigo 1.790 do Código Civil, portanto, é constitucional, pois não fere o princípio da isonomia. (TJDF; Rec. 2009.00.2.001862-2; Ac. 355.492; Primeira Turma Cível; Rel. Des. Natanael Caetano; DJDFTE 12/05/2009; Pág. 81) (Publicado no DVD Magister nº 27 - Repositório Autorizado do TST nº 31/2007)

UNIÃO ESTÁVEL. DIREITO SUCESSÓRIO VANTAGENS E DESVANTAGENS DOS CÔNJUGES E COMPANHEIROS SEGUNDO A DISCIPLINA DO NOVO CÓDIGO CIVIL. PARTICIPAÇÃO DO CÔNJUGE, EM CONCORRÊNCIA COM OS DESCENDENTES, NA SUCESSÃO DOS BENS PARTICULARES DO DE CUJUS E SUA EXCLUSÃO DA HERANÇA NO QUE TANGE AOS BENS COMUNS, DOS QUAIS RECEBE APENAS A MEAÇÃO QUE SEMPRE LHE PERTENCEU SITUAÇÃO EXATAMENTE INVERSA NA SUCESSÃO DO COMPANHEIRO. Regra do artigo 1790 do Código Civil que, entretanto, não se considera inconstitucional, pois, na comparação global dos direitos concedidos a uns e outros pelo novo Código Civil, a conclusão é a de que o cônjuge restou mais benefíciado, não havendo assim ofensa ao artigo 226, §3º da Carta Magna. Reconhecimento, no presente processo, do direito da agravante de concorrer com a filha do falecido na partilha da meação ideal pertencente ao mesmo no imóvel adquirido onerosamente durante a união estável. Direito real de habitação também reconhecido à agravante, em face da regra do artigo § único da Lei n. 9278/96 não revogada pelo novo estatuto de direito privado. Recurso provido em parte. (TJSP; AI 589.196.4/4; Ac. 3474069; Bragança Paulista; Segunda Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Morato de Andrade; Julg. 03/02/2009; DJESP 26/03/2009) (Publicado no DVD Magister nº 27 - Repositório Autorizado do TST nº 31/2007)

Esta corrente sustenta que o art. 226, §3º da CF, ao prever que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, demonstrou expressamente que o constituinte originário não intuiu equiparar os diferentes institutos. Sendo assim, não haveria que se falar em ofensa ao princípio da isonomia.

Entretanto, deve-se destacar o entendimento, o qual defendemos, de que a Constituição Federal não somente conferiu à união estável o caráter de entidade familiar, mas intuiu que este instituto recebesse o mesmo tratamento que recebe o casamento, eis que, diante da a evolução do conceito de família, o matrimônio deixou de ser condição necessária, surgindo o laço afetivo como a principal condição para sua constituição. Assim sendo, o art. 1790, sobretudo o inciso III, o qual equipara, para efeitos de sucessão, o companheiro a parentes longínquos, de quem o de cujos muitas vezes sequer conhecia, atenta diretamente aos princípios da dignidade da pessoa humana e, por afrontar o art. 226, º3º da Constituição Federal, ao princípio da isonomia.

Neste sentido, colacionam-se os seguintes julgados:

INVENTÁRIO. SUCESSÕES. DECISÃO QUE ESTIPULOU A INCIDÊNCIA DO ART. 1.790, INCISO III, DO CÓDIGO CIVIL, COM A DETERMINAÇÃO DE HABILITAÇÃO DOS PARENTES COLATERAIS DO AUTOR DA HERANÇA. EQUÍVOCO EVIDENCIADO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 1.829, INCISO III, E ART. 1.838, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL, A FIM DE VEDAR A DISTINÇÃO ENTRE CÔNJUGE E COMPANHEIRA SOBREVIVENTES PARA FINS SUCESSÓRIOS. INTELIGÊNCIA DO ART. 226, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Com a promulgação da Constituição de 1988 e a elevação da união estável à condição de entidade familiar para conferir-lhe maior proteção do Estado, pode-se falar que a família é gênero, de que são espécies o casamento e a união estável. A distinção aos direitos sucessórios dos companheiros - inciso III do art. 1.790 do Código Civil - viola o princípio constitucional da igualdade, uma vez que confere tratamento desigual àqueles que, casados ou não, mantiveram relação de afeto e companheirismo durante certo período de tempo, inclusive, contribuindo para o desenvolvimento econômico da entidade familiar. Os Tribunais pátrios têm admitido a aplicação do art. 1.829 do Código Civil não só para a cônjuge, mas, também, para a companheira, colocando-as em posição de igualdade na sucessão. RECURSO A QUE SE DÁ PROVIMENTO. (TJ-SC , Relator: Gilberto Gomes de Oliveira, Data de Julgamento: 11/06/2014, Segunda Câmara de Direito Civil Julgado)

Considera-se, portanto, que a família corresponde a um gênero, do qual casamento e união estável são espécies diferentes, porém estabelecidas no mesmo patamar hierárquico, não devendo uma espécie obter prerrogativas relativamente à outra. Ambas as relações jurídicas possuem a mesma natureza, pois são uniões públicas, contínuas e duradouras, que devem ser baseadas no companheirismo e no laço afetivo. Nesse sentido, cita-se Pablo Stolze Gagliano:

Em vez de buscar uma equiparação que respeitasse a dinâmica constitucional – vez que diferença não deve haver entre viuvez de uma esposa (ou de um marido) e a de uma companheira (ou companheiro), pois ambas mantinham com o falecido um núcleo de afeto –, o legislador, em franca violação do princípio constitucional da vedação de retrocesso, minimizou – e sob certos aspectos aniquilou – o direito hereditário do companheiro(a) viúvo(a). (GAGLIANO, 2015. p. 238).

Dessa forma, não se deve concluir que a Constituição Federal estabeleceu diferentes graus de hierarquia entre os referidos institutos ao determinar o dever do estado de facilitar a conversão da união estável em casamento, mas colocá-los na mesma configuração de família. Assim, as regras do direito sucessório deveriam ser as mesmas, tanto para o cônjuge supérstite quanto para o companheiro sobrevivente.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Conforme apresentado, o tema da sucessão dos cônjuges e companheiros e a forma diferenciada como são tratados dentro do ordenamento jurídico brasileiro traduzem grande relevância, provocando discussões nas diferentes instâncias jurisdicionais, chegando a ter sua repercussão geral reconhecida pelo STF, de quem ainda carece decisão na interpretação conforme a Constituição.

Como se pode ver, o instituto da união estável percorreu um longo caminho até receber o nome e tratamento jurídico que tem hoje, desde seu surgimento como o concubinato, visto como relação ilegítima de onde os filhos resultantes não teriam direito à herança produzida, passando pelo tratamento igualitário aos filhos produzidos dentro e fora do casamento até o reconhecimento da união estável como núcleo familiar legítimo, que produz diversos efeitos, inclusive análogos ou mesmo iguais a alguns produzidos pelo matrimônio de fato. Vale ressaltar que a união estável pode ser convertida em casamento de forma célere.

O Código Civil prevê diversas modalidades de sucessão tanto do companheiro quanto do cônjuge, devidamente explicitadas na forma de concorrência com herdeiros legítimos e possiblidade de quinhão ficar reservado ao companheiro ou cônjuge, conforme se apresentar a situação fática.

A constitucionalidade deste tratamento diferenciado é um tanto quanto duvidosa, visto que se defende que o reconhecimento da união estável como instituto de núcleo familiar incorreria na real equiparação deste tipo de união ao matrimônio propriamente dito, e que portanto, em matéria de sucessão deveria o legislador tratar de unificar o tratamento conferido aos dois institutos.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Código Civil. Lei n° 3.071 de 1° de janeiro de 1916. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/>. Acesso em 13 de maio de 2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Especial nº 83.930. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/principal/principal.asp.> Acesso em 15 de maio de 2015.

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Sobre os autores
João Vitor de Paiva Muniz Ferreira

Aluno do 2º período, graduandos em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

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