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O direito à vida e o aborto do anencéfalo

Agenda 15/10/2016 às 11:07

Uma análise jurídica da possibilidade de aborto do feto anencéfalo, à luz do direito à vida, dos direitos do nascituro e da decisão mais atual sobre o tema, prolatada pelo Supremo Tribunal Federal.

1. O direito à vida

Indubitavelmente, a vida é o mais valioso bem que nós, seres humanos, possuímos. Nem se precisa estudar renomados filósofos ou analisar-se a fundo os entendimentos dados ao tema pelo meio jurídico, basta viver para que se saiba que nada supera este bem. Mais do que isso, a vida é pressuposto incondicional para o exercício de qualquer outra atividade que o ser humano queira, ou seja, sem a vida, não há possibilidade de existir qualquer outro direito.

Por ser um tema de tamanha relevância, os entendimentos sobre ele são diversos, complexos e, tão díspares, que cada uma das correntes existentes é acolhida (e muitas vezes carregada como uma bandeira) por uma boa parcela da população mundial. Como exemplo, temos a visão dos cientistas, a da igreja e a dos juristas. Entretanto, visto a infindável discussão sobre o tema e os objetivos aqui existentes, este trabalho, ater-se-á, tão somente, à análise dos aspectos jurídicos do tema, utilizando-se os conceitos científicos, quando cabível e necessário.

A vida é, por excelência, o maior bem da existência, sendo um direito primário, personalíssimo, essencial, absoluto, irrenunciável, inviolável, imprescritível, indisponível e intangível. Segundo o princípio do primado do direito à vida, este se sobrepõe a qualquer outro, na ocorrência de conflito e é o ponto de partida para o surgimento de todos os outros direitos e deveres do ser humano. No direito pátrio, a vida é protegida por cláusula pétrea constitucional (artigo 5º, caput, da Constituição Federal)

Tendo em vista esses conceitos, faz-se mister a determinação do momento em que se inicia o direito à vida, para ter-se um marco de quando suas implicações passarão a surtir efeito. Pela visão genética, a vida humana começa na fertilização, quando o espermatozoide e o óvulo se encontram e combinam seus genes para formar um indivíduo com um conjunto genético único (esta é a mesma visão oficialmente aceita pela Igreja Católica); na visão da embriologia, a vida começa somente na 3ª semana de gravidez, que é quando é estabelecida a individualidade humana, visto que até 12 dias após a fecundação, o embrião ainda pode dividir-se e dar origem a duas ou mais pessoas; sob a visão neurológica, a vida inicia-se quando inicia-se a atividade elétrica cerebral (esse critério é pouco aceito, pois não há um consenso de quando inicia-se esta atividade, havendo discrepância relevante entre os entendimentos dos cientistas); na visão ecológica, somente após a capacidade de viver fora do útero que inicia-se a vida; e, por fim, a visão de muitos médicos é de que a vida só se concretiza quando os pulmões estão prontos, o que acontece entre a 20ª e a 24ª semana de gestação.

O fato é que nosso sistema jurídico não acolhe as teorias natalistas, já que no artigo 2º do Código Civil, estabelece que o nascituro (aquele que ainda não nasceu) recebe proteção dos seus direitos, desde a concepção e, mais do que isso, nosso ordenamento não delimita o estágio de desenvolvimento do nascituro, que se subentende ser aquele desde a união do espermatozoide e do óvulo, de modo que a proteção é bastante ampla.

Além do artigo 2º do Código Civil, há outros diplomas que reiteram a ampla proteção recebida pelo nascituro. É o que podemos observar no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, que versa sobre a dignidade da pessoa humana, sem fazer distinção alguma sobre o estágio de desenvolvimento desta, no artigo 3º, IV, que promove o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outra forma de discriminação, no artigo 4º também da Magna Carta que privilegia os direitos humanos e, por fim, o já citado artigo 5º da CF, que eleva o direito à vida ao patamar de cláusula pétrea.

2. O nascituro anencéfalo

Antes de examinar as consequências fáticas e jurídicas da anencefalia, cumpre de início, realizar uma análise acerca do que consiste este problema e quais seus desencadeamentos. Ressalte-se que a polêmica quanto a possibilidade de aborto do anencéfalo é recente, visto que somente graças aos equipamentos modernos de acompanhamento gestacional, a condição passou a ser identificada com antecedência, antes do nascimento.

A anencefalia consiste numa má-formação congênita, ou seja, adquirida antes do nascimento, resultante de defeito de fechamento do tubo neural, que é uma estrutura embriológica antecedente à formação do Sistema Nervoso Central, que por sua vez, é o aquele responsável por toda interface funcional capaz de gerar interações do indivíduo com tudo que o cerca. Este “defeito” surge entre o 16º e 26º dia após a concepção, porém, o diagnóstico só consegue ser feito a partir do terceiro mês de gestação, através da realização de ultrassonografias.

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O feto acometido por tal má-formação, em razão do não fechamento por completo do tubo neural, poderá desenvolver graves anormalidades, tanto no encéfalo (onde encontra-se o cérebro), quanto na medula espinhal (tronco cerebral), que são a anencefalia em si, entretanto, este não é o único quadro clínico possível quando do não fechamento do tubo neural, visto que só ocorrerá caso o defeito atinja a parte distal do tubo neural. Se o defeito acontecer na extensão do tubo neural, decorrerá outro mal, denominado de espinha bífida.

Devido a esta condição atingir especialmente o cérebro, tem-se que o anencéfalo possui uma enorme limitação em diversos âmbitos essenciais para o convívio em sociedade e para a própria efetivação completa do direito à vida. O acometido pela anencefalia terá inexistentes a consciência, a cognição, a vida relacional, a comunicação, a afetividade e a emotividade, restando apenas as funções nervosas inferiores que são as inconscientes, como a respiração e as funções vasomotoras.

Ademais, não bastasse o desenvolvimento encefálico totalmente prejudicado, o anencéfalo possui uma característica única, que é a não presença dos ossos do crânio, o que resulta numa cabeça com formação não arredondada. Tal fator é o responsável pela possibilidade da identificação da condição ainda durante a gravidez, pois a deformação do crânio pode ser observada a partir do terceiro mês de gestação através do exame de ultrassom. Ainda o nascituro acometido pela anencefalia muitas vezes possui o cérebro exposto ou coberto por uma fina camada de pele e olhos saltados para fora das órbitas, devido a não possuírem o encaixe na fenda ocular, que inexiste.

A questão é muito polêmica para o direito pois de um lado se coloca toda a proteção legal dada ao nascituro, que deve ser preservada, ainda mais quando falamos do mais importante direito de um ser humano que é o direito à vida e, principalmente, quando consideramos que o feto anencéfalo, normalmente não é natimorto, não podendo se considerar que o mesmo nasce com morte encefálica, já que para tal, é necessária o total comprometimento do encéfalo e o mesmo nasce com comprometimento total apenas do cérebro, possuindo o cerebelo e o tronco cerebral apenas pequenas lesões. Porém, por outro lado, temos que, na prática, o anencéfalo não tem chances de vida “normal”, nascendo sem perspectiva de longevidade, o que já foi admitido até pelo Conselho Federal de Medicina, em sua Resolução nº 1949/2010 que reconhece sua “inviabilidade vital”, afastando inclusive, a necessidade de caracterização da supramencionada morte encefálica. Não bastasse o destino desta nascituro já estar praticamente decidido, com uma breve morte, deve-se levar em consideração, sobretudo, o que esta gravidez representa para a gestante: é um peso muito grande saber que se está gerando alguém que não tem perspectiva alguma de vida. Quando do nascimento, enquanto as outras mães estão indo para um momento de felicidade e realização, com o surgimento de um novo membro para suas famílias, uma verdadeira parte delas fora do corpo, a gestante do anencéfalo está prestes a assistir o velório do próprio filho. O abalo psicológico causado é enorme, e não é o único. A gestação dos acometidos por esta má-formação, tende a se prolongar por período acima do normal, além de ser comum o aumento da pressão arterial e do líquido aminiótico, sendo que este último pode causar dificuldades de respiração e no funcionamento do coração, podendo levar a gestante à morte.

3. A ADPF 54 e a disciplina do tema

Em 2004 a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº54, na qual foi discutida a possibilidade de interrupção terapêutica da gravidez de feto anencéfalo. O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal ocorreu somente em 2012 e terminou com a aprovação de tal medida, com um placar de 8 votos a 2.

A decisão não descriminalizou o aborto, bem como não criou nenhuma exceção ao ato criminoso previsto no Código Penal, entendendo, entretanto, que a interrupção terapêutica induzida da gravidez de um feto anencéfalo não deve ser considerada como aborto.

O julgamento desta ADPF trouxe, após muito tempo, uma segurança jurídica com relação ao tema, já que devido à enorme polêmica envolvida e pela relevância e abundância de direitos em jogo, sendo as duas possibilidades (poder abortar ou não) bastante justificáveis e passíveis de fundamentação jurídica, a decisão ficava a cargo de cada juiz individual, sendo que muitos optavam por liberar o aborto (foram mais de 3000 decisões nesse sentido, só até o ano de 2005), enquanto outros, determinavam a sequência da gestação, mesmo sabendo-se que dar-se-ia a luz a um natimorto.

4. Conclusão e relação com o voto do Ministro Marco Aurélio Mello (na ADPF 54)

Pela análise de todo o material disponível, concluo que a gestante deve ter o direito de interromper sua gravidez quando for comprovado que o feto é acometido pela anencefalia.  Trata-se de situação absolutamente peculiar, diferindo substancialmente do aborto, que é corretamente proibido pela legislação brasileira. Visto sua enorme especificidade, o tema demanda um tratamento jurídico igualmente específico, afinal, o direito que deve se adequar às demandas fáticas e não ao contrário.

O tema é deveras complexo e ambos os posicionamentos possuem amplo respaldo, seja no âmbito jurídico, no religioso ou no científico. De fato, o nascituro deve ter seus direitos respeitados, entretanto não se pode considerar que o anencéfalo é um ser vivo em potencial, como é, via de regra, o nascituro. Mais do que isso, se for considerado o risco que a gestante enfrenta ao levar adiante tal gestação, que é comprovadamente alto, mesmo que considere-se que o anencéfalo tem vida, vem à tona um conflito de dois direitos fundamentais, quais sejam, a vida do feto e a vida dela própria. Uma vez que a vida do feto está fadada ao insucesso, parece-me bastante lógico que deva ser preservada a vida da gestante, que tem a possibilidade de gozar efetivamente do seu direito à vida e, inclusive, de gerar outras vidas saudáveis.

Nas sábias palavras do Ministro Marco Aurélio Mello: “aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível. O feto anencéfalo é biologicamente vivo, por ser formado por células vivas, e juridicamente morto, não gozando de proteção estatal.” e "O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura.".

Ora, se a tecnologia surgiu e hoje está integrada à vida das pessoas, ela deve ser utilizada para trazer o bem. Se hoje há a possibilidade de diagnóstico e de serem realizadas as devidas providências para evitar um sofrimento desnecessário, principalmente da mãe, mas não só dela por uma causa perdida.

Quando se fala sobre o tema, se discute muito sobre a existência ou não de eugenia, que é a escolha dos mais aptos mental e fisicamente para a vida, buscando selecionar somente os melhores e criar uma raça humana fortalecida, onde só os melhores deveriam sobreviver. Não foi diferente na discussão da ADPF 54, onde o tema surgiu e foi, oportunamente, rechaçado, visto que a eugenia tem um caráter político e ideológico claro. Ela foi fundamento para todas as atrocidades nazistas das décadas de 30 e 40 e não há o menor cabimento ou semelhança entre as situações, sendo que naquele caso se falava do descarte de indivíduos aptos a exercer plenamente seu direito a vida, que apenas não eram considerados os melhores e aqui se fala de uma vida que não possui potencial algum de prosperar e ainda traz malefícios físicos e psicológicos diversos à gestante e à sua família.

Acerca deste tema em particular, meu pensamento também é similar ao do Ministro Marco Aurélio, que disse:

“Cumpre rechaçar a assertiva de que a interrupção da gestação do feto anencéfalo consubstancia aborto eugênico, aqui entendido no sentido negativo em referência a práticas nazistas. O anencéfalo é um natimorto. Não há vida em potencial. Logo não se pode cogitar de aborto eugênico, o qual pressupõe a vida extrauterina de seres que discrepem de padrões imoralmente eleitos. Nesta arguição de descumprimento de preceito fundamental, não se trata de feto ou criança com lábio leporino, ausência de membros, pés tortos, sexo dúbio, Síndrome de Down, extrofia de bexiga, cardiopatias congênitas, comunicação interauricular ou inversões viscerais, enfim, não se trata de feto portador de deficiência grave que permita sobrevida extrauterina. Cuida-se tão somente de anencefalia. Na expressão da Dra. Lia Zanotta Machado, “deficiência é uma situação onde é possível estar no mundo; anencefalia, não”[52].  De fato, a anencefalia”

           

Em síntese, de todo o exposto, tem-se que a mulher não pode ser responsabilizada criminalmente, visto que não há vida possível, que é o objetivo da tutela do artigo 124 do Código Penal brasileiro. Mais do que isso, como consta de informação do próprio acórdão, numa pesquisa realizada, 60% das mulheres gestantes de anencéfalos “não só experimentaram sentimento negativo – choque, angústia, tristeza, resignação, destruição de planos, revolta, medo, vergonha, inutilidade, incapacidade de ser mãe, indignação e insegurança – como também diriam a outra mulher, em idêntica situação, para interromper a gestação”.

Visto a inexistência de conduta violadora do sistema penal brasileiro, da total falta de potencialidade vital do feto anencéfalo, da enorme carga negativa psicológica gerada à gestante tão somente por ter seu melhor sonho, o de gerar uma vida, tornado num pesadelo que é gerar um natimorto, nos danos psicológicos ainda maiores que podem ser causados ao se obrigar a mulher a seguir com a gestação, do abalo da família e do risco real ao direito à vida efetivo ao qual a gestante é submetida por um feto que sabidamente não viverá, considero que a interrupção da gestação é uma medida necessária e que recebeu o devido entendimento no julgamento da ADPF nº 54.

5. Bibliografia

-                        MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de Bioética e Biodireito,  2ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2013.

-                         BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Bioética e início da vida. Dignidade da vida humana. Curitiba: 2010.

- http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI221398,51045-Marco+Aurelio+Mello+Decisao+historica+do+STF+permite+aborto+de+feto, acessado em 02/12/2015 às 11:35

Sobre o autor
Filipe Jorf

Acadêmico de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Estagiário na área Trabalhista.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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