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Estudo sociojurídico relativo à implementação de políticas de ação afirmativa e seus mecanismos para negros no Brasil:

aspectos legislativo, doutrinário, jurisprudencial e comparado

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Agenda 14/06/2004 às 00:00

A análise das políticas de ação afirmativa e seus mecanismos para afro-descendentes no Brasil leva-nos a esboçar respostas jurídicas ao desafio de criar-se uma sociedade mais justa, solidária, tolerante e igualitária.

Sumário: Introdução; Ações Afirmativas e Seus Mecanismos: Aspectos Sociopolíticos; Ações Afirmativas e seus Mecanismos: Aspectos Sociojuridicos; Ações Afirmativas e seus Mecanismos: Histórico, Origem e Experiência Comparada no Cenário Internacional; Ações Afirmativas e seus Mecanismos à Luz das Normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos; Ações Afirmativas e seus Mecanismos à Luz do Direito Interno: Análise das Normas Constitucionais e Infraconstitucionais; Ações Afirmativas e seus Mecanismos à Luz da Doutrina e da Jurisprudência Brasileiras; Ações Afirmativas e seus Mecanismos: Exemplos de Iniciativas Político-Administrativas; Ações Afirmativas e seus Mecanismos: O Princípio da Igualdade à Luz da Doutrina e do Direito Constitucional Comparado; Principais Debates Acerca de Políticas Ação Afirmativa e seus Mecanismos em Vigor; Conclusão; Bibliografia; Anexos (Leis, Decretos, Portarias e Sentença Judicial).


"Em todo o mundo... Minorias étnicas continuam a ser desproporcionalmente pobres, desproporcionalmente afetadas pelo desemprego e desproporcionalmente menos escolarizadas que os grupos dominantes. Estão sub-representadas nas estruturas políticas e super-representadas nas prisões. Têm menos acesso a serviços de saúde de qualidade e, conseqüentemente, menor expectativa de vida. Estas, e outras formas de injustiça racial, são a cruel realidade do nosso tempo; mas não precisam ser inevitáveis no nosso futuro".
(Kofi Annan, Secretário Geral da ONU, março, 2001).


Introdução

A análise dos aspectos jurídicos e constitucionais das políticas de ação afirmativa e seus mecanismos para afro-descendentes no Brasil leva-nos a esboçar algumas respostas jurídicas ao inadiável desafio de criar-se uma sociedade mais justa, solidária, tolerante, integrada e igualitária. [1]

Com efeito, o referido tema, notadamente no campo da educação pública superior, recolocou na pauta dos debates públicos do Brasil contemporâneo a questão racial e a luta anti-racista e vem suscitando vigorosas divergências jurídicas sobre a constitucionalidade dessas políticas. [2] O tema ganhou maior relevância no ano de 2001, durante a III Conferência Mundial Contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, na África do Sul. Naquele instante, o Brasil comprometeu-se a adotar, oficialmente, após assinar a Declaração de Durban [3], medidas para eliminar o racismo, o preconceito, a discriminação e a falta de oportunidades para afro-brasileiros.

Mas o auge das divergências deu-se em meados de 2003, quando foram ajuizados mais de 200 mandados de segurança individual, três representações de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e uma ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal contra as leis estaduais editadas pelo Estado do Rio de Janeiro. Tais leis estabeleceram reserva de vagas (ou cotas) para estudantes "negros" e pardos na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e na Universidade do Norte Fluminense – UENF [4]. Não bastasse isso, outra novidade trazida pela discussão do assunto foi o último debate havido entre os candidatos à Presidência da República em 2002. Todos os principais postulantes foram obrigados a manifestar sua posição a respeito dos problemas do racismo, da discriminação e da desigualdade racial. O Programa de Governo do atual Presidente da República dedica um espaço às políticas de ação afirmativa.

A criação de políticas públicas promocionais é antiga reivindicação dos afro-descendentes brasileiros. Ao Movimento Negro nacional, contudo, deve ser tributada recente iniciativa do Estado em criar algumas políticas de ação afirmativa, após ter incluído a questão racial no centro da agenda nacional de direitos humanos [5]. Para tal movimento, em fins dos anos 70, a grande bandeira

"era desmascarar o mito da democracia racial, e para tanto elegiam como luta prioritária a construção da identidade negra na sociedade brasileira, no final dos anos 80 a escolha recaiu na continuidade do desmascaramento da cordialidade do racismo brasileiro e pela visibilidade das condições socioeconômicas da população negra". [6]

As opções políticas feitas até este momento pelo legislador brasileiro em favor dos afro-descendentes, porém, não tem sido satisfatoriamente acolhida por alguns setores da sociedade. Esta, sem se aprofundar nas necessárias informações e conhecimentos sobre os mecanismos históricos e sociais de exclusão dos negros, ainda não se engajou eticamente a favor de iniciativas capazes superar o quadro [7]. Em última instância, tais políticas apenas permitiriam que esse expressivo segmento populacional concretizasse direitos de ordem humana e cultural, econômica e social. Tais direitos, consignados nos instrumentos internacionais de proteção de direitos humanos fundamentais ratificados pelo Brasil, encontram-se também presentes em nosso ordenamento jurídico. Conclui-se, assim, tratar-se do humaníssimo "direito a ter direitos" proclamado pela filósofa Hannah Arendt.

É oportuno lembrar que os pretos e pardos no Brasil constituem quase a metade de nossa população. O último Censo realizado pelo Ibge, constatou formarem cerca de 43,5% dos brasileiros, perfazendo algo em torno de 76 milhões de pessoas, ou seja, a maior população negra fora da África. Tal percentual é a segunda maior população negra do mundo, só inferior numericamente à Nigéria, o mais numeroso país africano.

Acrescente-se a isso tudo, o complexo cenário das relações étnicas e raciais existentes no Brasil, envolvido por valores ideológicos que nos levam a uma continuada afirmação de cordial convívio entre os principais grupos étnicos e raciais formadores do processo civilizatório brasileiro [8] (o indígena, o africano e o europeu), conhecido como "mito da democracia racial". Ricardo Henriques, no entanto, denuncia a falsidade dessa afirmação, enfatizando que a "democracia racial" é um mito

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"que sobrevive como representação idealizada de nossa sociedade, sinalizando com a construção de uma sociedade tolerante e inclusiva. Mito que exercita, no cotidiano, o engano e a mentira escondendo, de forma perversa e sutil, a enorme desigualdade racial do país. Infelizmente, o poder de ocultamento desse mito enraizou-se em nosso senso comum e, desavisados, negamos desigualdade e o racismo". [9]

Essa construção ideológica, o mito da democracia racial, torna comum a discriminação racial, ao estabelecer uma falsa consciência sobre as relações étnicas e raciais no Brasil. Impede ainda o avanço de estudos acadêmicos, [10] de diversas propostas e ações anti-racistas empreendidas pela sociedade civil organizada, também pelo próprio aparelho de Estado. [11] Aquela construção dissemina mitos que dificultam legitimar-se a criação de políticas promocionais específicas para os negros [12].

A situação deficitária de acesso à educação e ao trabalho dos negros tem raízes que remontam ao colonialismo e à escravidão [13], produzindo ainda hoje nefastos resultados. Como a discriminação racial está presente na área educacional o desenvolvimento e a especialização dos afro-descendentes ficam prejudicados, discriminados que são duplamente pela condição racial e socioeconômica, culminando na dificuldade de êxito escolar e de acesso a posições melhor remuneradas no mercado de trabalho. Esse quadro gera um círculo vicioso de pobreza, insucesso escolar e marginalização social. [14]

Com efeito, a exclusão dos negros brasileiros tem sido confirmada em estudos provenientes de diversas áreas do conhecimento, ratificando apenas o que já era sabido. Indicadores socioeconômicos elaborados por instituições de pesquisa, tais como, o Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas - Ipea, Ibge, Organização das Nações Unidas - ONU etc., descrevem a clara inferioridade dos negros no mercado de trabalho e na educação.

As estatísticas sobre a desigualdade racial do país são assustadoras. Ricardo Henriques, analisando alguns dos números apurados, denuncia que as diferenças existentes entre brancos e negros persistem há pelo menos três gerações, e se mantém como linhas paralelas:

"No Brasil, o processo de modernização excludente atravessa a história e arquiteta instituições que produzem mais de 55 milhões de pobres, dos quais 24 milhões em condição de pobreza extrema. Além da vergonha que esses valores representam, será que a pobreza está "democraticamente" distribuída em termos raciais, preservando um perfil socioeconômico sem viés racial? Não. Os negros representam 45% da população brasileira, mas correspondem a cerca de 65% da população pobre e 70% da população em extrema pobreza. Os brancos, por sua vez, são 54% da população total, mas somente 35% dos pobres e 30% dos extremamente pobres. Os diversos indicadores de renda e riqueza confirmam que nascer negro no Brasil implica maior probabilidade de crescer pobre. (...).

(...). Apesar da melhoria nos níveis médios de escolaridade da população brasileira ao longo do século XX, o padrão de discriminação racial, expresso pelo diferencial na escolaridade entre brancos e negros, mantém-se perversamente estável entre as gerações. De fato, a escolaridade média de um jovem negro com 25 anos de idade gira em torno de 6,1 anos de estudo; um jovem branco da mesma idade tem cerca de 8,4 anos de estudo. O diferencial é de 2,3 anos. Apesar da escolaridade de brancos e negros crescer de forma contínua no século XX, 2,3 anos de estudo é a diferença observada na escolaridade média dos pais desses jovens. E, de forma assustadoramente natural, encontra-se a mesma diferença entre os avós desses jovens. Assim, brancos e negros olham um para o outro durante um século e, do ponto de vista relativo, situam-se estritamente na mesma posição. Como paralelas mergulhadas na inércia da eternidade brancos e negros não se encontram". [15]

As diferenças havidas entre brancos e negros se mantém em diversos campos, abaixo exemplificados:

- o negro no Brasil entra mais precocemente no mercado de trabalho urbano, e permanece um período ainda maior nas áreas rurais;

- a escolaridade do brasileiro, para 63,8%, é de em média 6 anos, de 4 a 7 para 31,2%, e pouco mais de 16% tenham completado o primeiro grau, tais taxas são mais aviltantes quando se referem a população negra. Apenas a título de comparação, enquanto aproximadamente 24,6% dos negros têm menos de um ano de escolaridade, a mesma situação envolve 9,3% dos brancos;

- em 1995 na cidade de São Paulo, a maior metrópole brasileira, 48,2% dos desempregados eram mulheres. Em 2000 esta taxa subiu para 52,4% trazendo consigo uma assimetria junto a população economicamente ativa negra na ordem de 14,3% em relação à população total, em um quadro numérico de desempregados na grande São Paulo na ordem 20,3%;

- para endossar esta preocupante situação estrutural, os negros em sua maioria, freqüentam com mais assiduidade os postos informais de trabalho. Neste ramo de trabalho completamente desprovido de benefícios para os trabalhadores, como, por exemplo, um sistema de segurança nacional, as diferenças raciais são mais expressivas do que as diferenças de gênero. Aproximadamente 67,4% dos negros na grande São Paulo não contribuem papara a seguridade social; 13,95% dos negros passam pelo menos um período do ano sem renda, dependendo do sustento de algum membro da família. Para rigorosamente a mesma situação, entre os brancos o universo é de 7,4%;

- estudos do IPEA demonstram um crescimento da concentração de renda no Brasil, aumentando o fosso entre ricos e pobres. Enquanto a elite econômica é composta basicamente por brancos, a excessiva pobreza atinge majoritariamente os negros;

- no campo da saúde no Brasil a alta incidência de mortalidade infantil é mais expressiva entre as populações indígenas e negras, indo de encontro a implementação procedimental dos direitos humanos e sociais.

- no Brasil a defasagem qualitativa de residências é da ordem de 5 milhões, enquanto quantitativamente se aproxima de 9 milhões. Entre os fatores explicativos para o déficit de moradias, principalmente em grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, estão os crescimentos desenfreados das favelas no primeiro caso, e das periferias no segundo. Ainda que o período compreendido entre 1992 e 1999, cujos dados são expressivamente atuais, ofereceu um crescimento do número de domicílios de 36 para 43 milhões, e que 90% da população urbana no Brasil tenha água potável, o quadro das desigualdades, principalmente entre brancos e negros, está longe de desaparecer. O crescimento de uma infra-estrutura de serviços urbanos não é acompanhada por uma melhora homóloga nas áreas rurais. Quando comparadas, as condições de moradias entre brancos e negros são bem distintas. Mais da metade dos brancos vivem em condições adequadas, contra menos de 30% dos negros. Apenas um em cada quatro negros vivem em moradias consideradas dignas;

- o trabalho infantil constitui outra importante variável para demonstrar as diferenças entre as populações branca e negra no Brasil. No período de 1992 a 1999, criança negras entre 3 e 9 anos representam 3,035 da força de trabalho infantil, enquanto entre crianças brancas o percentual é de 1,84%. Vinte por cento das crianças negras entre 10 e 14 anos estão nos postos de trabalho, para 13% das crianças brancas;

De acordo com todos estes dados, algumas conclusões sobre as condições socioeconômicas e culturais da população negra podem ser tiradas. A população negra brasileira ocupa a base da pirâmide social em todas as variáveis do Índice de Desenvolvimento Humano - IDH, bem como de indicadores tais como saúde, educação, trabalho, gênero, moradia, bem – estar individual, proteção à criança e ao adolescente e à alimentação.

Ao assumirmos a seriedade de uma amostragem bem feita sobre as condições de vida da população brasileira, podemos constatar, indubitavelmente, que as políticas públicas feitas hoje em dia no Brasil não incorporam em termos quantitativos e qualitativos a população negra brasileira.

Nosso modelo de sociedade não consagrou os valores meritocráticos tão caros à formação de outras sociedades, como a européia e a norte-americana. Nas raízes de nossa colonização até os dias de hoje, as problemáticas que compõem o pensamento social brasileiro, revelaram um modelo social de país que incorpora simultaneamente, por um lado uma modernização centralizada e pelo outro preserva os fundamentos, entre eles o racismo e a discriminação, que a história procurou sepultar.

A Abolição da Escravatura [16], a Proclamação da República e a fase de industrialização do país não foram capazes de melhorar as condições de vida dessas pessoas. Isto leva-nos a crer que o princípio de igualdade formal eregido há mais de 300 anos pela Revolução Francesa, continua, ainda, revolucionário no Brasil.


Ações Afirmativas e Seus Mecanismos: Aspectos Sociopolíticos

As políticas de ação afirmativa são, antes de tudo, políticas sociais compensatórias. Quando designamos políticas sociais queremos dizer "intervenções do Estado que garantem, ou que ‘dão substância’, aos direitos sociais". [17] Já políticas compensatórias, por sua vez, abrangem "programas sociais que remedeiam problemas gerados em larga medida por ineficientes políticas preventivas anteriores ou por políticas contemporâneas que são prima facie socialmente não dependentes". [18] Mas não podemos olvidar que a sociedade civil também vem encampando a idéia de ação afirmativa, especialmente, as empresas que perceberam a diversidade como fator de desenvolvimento de negócios na era da globalização, notadamente, em países pluriétnicos e multiculturais.

Portanto, as políticas de ação afirmativa, apresentam-se como importante mecanismo ético-pedagógico dos diferentes grupos sociais para o respeito às diversidades, sejam raciais, étnicas, culturais, de classe, de gênero ou de orientação sexual etc. Essa percepção do direito à diferença, leva em conta que a realidade das políticas denominadas universalistas – ou no caso das políticas raciais "cegas em relação à cor" - não atendem às especificidades dos grupos ou indivíduos vulneráveis, permitindo a perpetuação da desigualdade de direitos e de oportunidades. Disso emerge a idéia de adoção de políticas compensatórias focalistas (ou particularistas) que, atendendo ao direito à diferença, percebem os grupos ou indivíduos como sujeitos concretos, historicamente situados, que possuem cor, raça, etnia, deficiências, transtornos emocionais, orientação sexual, origem e religião diversas etc. É a superação da idéia filosófica Moderna, que encarava o ser humano como uma unidade homogênea, pela idéia pós-moderna dos seres humanos possuindo as especificidades relatadas.

O objetivo da "ação afirmativa" é superar essas contingências e promover a igualdade entre os diferentes grupos que compõem uma sociedade. Como resultado, espera-se o aperfeiçoamento da cidadania dos afro-brasileiros, e que estes tenham a possibilidade de pleitearem, por exemplo, o acesso às carreiras, às promoções, à ascensão funcional, revigorando, assim, o incentivo à formação e à capacitação profissional permanentes.

No plano político, os programas de ação afirmativa resultam da compreensão cada vez maior de que a busca de uma igualdade concreta não deve ser mais realizada apenas com a aplicação geral das mesmas regras de direito para todos. Tal igualdade precisa materializar-se também através de medidas específicas que considerem as situações particulares de minorias e de membros pertencentes a grupos em desvantagem. Considera-se que a referência a um indivíduo abstrato, percebido como universal e reconhecido como cidadão, digno de igual respeito e consideração, deve ter a preeminência na formulação de políticas públicas. Observe-se, ao mesmo tempo, que tal referência torna-se insuficiente para combater o preconceito, racismo, sexismo etc. permanentes na sociedade impedindo o total reconhecimento da dignidade da pessoa [19].

No plano moral, tal perspectiva conduz-nos à busca de uma dimensão mais exigente da igualdade e implica assumir-mos racionalmente, no terreno de políticas públicas, o caráter dialógico da pessoa humana. Esta possui uma dignidade inerente igual a todo ser humano e uma identidade individual portadora de culturas construídas parcialmente por diálogos coletivos. Devemos ainda reconhecer que, implicitamente, a pessoa é um indivíduo insubstituível e, ao mesmo tempo, um membro de uma comunidade [20].

O pesquisador Carlos Alberto Medeiros formula elucidativa metáfora que muito bem traduz o conceito, os objetivos e o alcance das ações afirmativas:

"Imaginem dois corredores, um amarrado e o outro solto. É claro que o corredor solto ganha sempre. Mas um dia a platéia dessa competição imaginária chega à conclusão de que essa situação é injusta. À custa de muita pressão, consegue-se convencer os organizadores a cortar as cordas que prendiam um dos corredores. Só que ele continua perdendo. Motivo: seus músculos estão atrofiados pela falta de treinamento. Se tudo continuar como está, a tendência é de que ele perca sempre. Que fazer para promover a igualdade de condições entre os dois corredores? Alguns sugerem que se dê um treinamento especial ao corredor que estava amarrado. Pelo menos durante algum tempo. Outros defendem uma medida mais radical: por que não lhe dar uma vantagem de dez metros em cada corrida? Logo se ouvem vozes denunciando que isso seria discriminação. Mas há quem defenda: discriminação, sim, mas positiva porque visa promover a igualdade, pois tratar igualmente os desiguais é perpetuar a desigualdade. Essa história ilustra muito bem o conceito de ‘ação afirmativa’ e o debate que o tema desperta na sociedade. Podemos dizer que os negros, as mulheres e outros grupos discriminados são como o corredor amarrado: por muito tempo estiveram presos pelas cordas do racismo e da discriminação, por vezes traduzidos até mesmo em leis. Não podem ganhar a corrida. Mesmo depois de ‘soltos’, continuam perdendo. Isso porque a discriminação, mesmo que ilegal, prossegue funcionando de forma disfarçada. No caso dos negros, há também a desvantagem histórica. Seus pais e avós sofreram a discriminação aberta e por causa disso não puderam acumular e transmitir riqueza. O objetivo da ‘ação afirmativa’ é superar essas desvantagens e promover a igualdade entre os diferentes grupos que compõem uma sociedade. Isso pode ser feito de várias maneiras. Proporcionar bolsas de estudos e promover cursos de qualificação para membros desses grupos é como dar um treinamento especial para o corredor que estava amarrado. Reservar-lhes um determinado número de vagas, ou ‘cotas’, nas universidades ou em certas áreas do mercado de trabalho é como colocar aquele corredor alguns metros à frente". [21]

Nesse mesmo caminho, a política de ação afirmativa, segundo Bárbara Resnick, busca prevenir a discriminação e incluiu ampla série de mecanismos formulados para criar oportunidades iguais, reduzir o racismo, e promover as vítimas de discriminação [22].

As ações afirmativas configuram-se como um dos elementos fundamentais na tentativa de assegurar-se maior igualdade de direitos entre as diferentes etnias que compõem o perfil populacional brasileiro. Elas podem vir a ser instrumento capaz promover a superação das desigualdades históricas que acompanham o Brasil desde seu o descobrimento.

Sobre o autor
Luiz Fernando Martins da Silva

advogado, ex-diretor e assessor jurídico do Instituto de Pesquisa e Culturas Negras e do Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Luiz Fernando Martins. Estudo sociojurídico relativo à implementação de políticas de ação afirmativa e seus mecanismos para negros no Brasil:: aspectos legislativo, doutrinário, jurisprudencial e comparado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 342, 14 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5302. Acesso em: 2 nov. 2024.

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