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Estudo sociojurídico relativo à implementação de políticas de ação afirmativa e seus mecanismos para negros no Brasil:

aspectos legislativo, doutrinário, jurisprudencial e comparado

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Agenda 14/06/2004 às 00:00

Ações Afirmativas e seus Mecanismos: O Princípio da Igualdade à Luz da Doutrina e do Direito Constitucional Comparado

Outro ponto importante a ser analisado sobre tema em comento, é o princípio da igualdade sob o ângulo do Direito Constitucional Comparado. O pressuposto de imperatividade da isonomia material, numa sociedade democrática inclusiva, é o núcleo duro de toda a problemática da efetividade dos direitos humanos de cunho social. Por conseguinte, e ainda numa perspectiva global, a igualdade substancial representa em relação à igualdade formal uma clivagem essencial no entendimento do conceito de igualdade que, como é óbvio, está longe de ser indiferente para apreciação e interpretação do sistema jurídico no seu conjunto e das respectivas normas.

A remoção dos obstáculos de fato ao exercício dos direitos fundamentais é a afirmação do princípio de igualdade concretizado através critérios legais de tratamento diferenciador dos indivíduos, em função de parâmetros definidores da sua situação concreta. Melhor explicando, podemos afirmar "que à intervenção estatal hão-de presidir critérios de justiça distributiva conformando-se aquela pela medida e natureza das reais desigualdades fácticas existentes". [46] O princípio da igualdade contém diretiva essencial dirigida ao próprio legislador: Tratar por igual aquilo que é essencialmente igual, por desigual aquilo que é essencialmente desigual. A qualificação das várias situações como iguais ou desiguais depende do caráter idêntico ou distinto dos seus elementos essenciais. [47]

O Direito Constitucional Comparado tem contribuído de forma substancial para o aprimoramento da implementação das políticas de ação afirmativa ou na denominada discriminação positiva:

"O princípio da discriminação positiva, assim como a ação afirmativa, não contrariam o princípio da igualdade. É o reconhecimento do direito à diferença, a pedra de toque da discriminação positiva". [48]

À guisa de contribuição, conforme apontamos anteriormente, a Constituição da República da África do Sul, de 1996, pós apartheid, adotou políticas de ação afirmativa:

"Bill of Rights(2) Equality includes the full and equal enjoyment of rights and freedoms. To promote the achievement of equality, legislative and other measures designed to protect or advance persons, or categories of persons disadvantaged by unfair discrimination in any be taken".

A Constituição Canadense – em 1982 –, também já referida, adotou a Affirmative action programs:

"(4) Subsections (2) "and (3) do not any law, program or activity that has as its object the amelioration in a province of conditions of individuals in that province who are socially or economically disadvantaged if the rate or employment in that providence is below the rate of employment in Canada".

O Tribunal Constitucional Espanhol vem entendendo que cabe ao Estado promover condições reais e efetivas quanto à igualdade de indivíduos e grupos:

"(...) ne peuvent pas être considérées comme contraires au príncipe d’égalité, alors même qu’elles impliquent um traitement plus favorable, les mesures qui ont pour objet de remédier aux situations désavantageuses dans lesquelles se trouvent certains groupes sociaux déterminés et, concrètement, de remédier à la situation traditionnelle d’infériorité de la femme dans la vie sociale et sur le marché du travail". [49]

A Corte Constitucional Alemã declarou, em 28 de janeiro de 1992, uma discriminação positiva favorável às mulheres proibindo o trabalho noturno com fundamento no artigo e, alínea 2 da Lei Fundamental: "(.. .) vise à l’égalisation des situations matérielles", ou seja, "(...) les désavantages factuels qui touchent en règle générale les femmes puissent être compensées par des normes qui leur accordent certains avantages".

É importante destacar que a idéia de igualdade material sob a perspectiva acima esposada se alinha ao pensamento de Pietro Barcellona [50], quando ele afirma que os novos direitos:

"São atribuídos pela lei ao sujeito já não individualmente considerado (como homem ou cidadão), mas na base da pertença a determinadas categorias e classes sociais. Ao lado do direito abstrato – igual para todos (aplicável, portanto, a toda a actividade humana) – viria assim a estabelecer-se toda uma série de direitos especiais atribuídos de modo desigual na base de particulares critérios de conexão (...)". [51] (tradução nossa).

Pressuposto para a referência de tais direitos ao indivíduo seria o papel e a posição que lhes dizem respeito no contexto social. Continua o referido jurista:

"A exigência de sociabilidade e de justiça realizar-se-ia assim – através da introdução de formas de tutela desiguais – reequilibrando a posição de inferioridade que impede algumas categorias de sujeitos de um efetivo exercício da liberdade garantida, através do direito abstrato, a todos os cidadãos. O status social – entendido, porém, em sentido não rígido (a mesma pessoa, de fato, pode pertencer a classes ou categorias diversas, de acordo com o tipo de relação) – seria, portanto, o ponto de atração das novas formas de direito desigual que caracteriza a sociedade contemporânea; o direito desigual exprime iria, pois, no plano do ordenamento as tensões e a conflitualidade que emergem das relações sociais e confirmaria a ‘ruptura’ definitiva da categoria unificante do direito subjetivo e do sujeito jurídico. À abstrata unificação da subjetividade ir-se-ia contrapondo de forma cada vez mais visível uma pluralidade de regimes e estatutos correspondentes à estratificação social". (tradução nossa).

Encontramos ainda a proteção particularizada das populações vulneráveis nos seguintes textos Constitucionais Europeus: a) Finlândia : art. 50, in fine; b) Suécia: cap.1 art. 2 in fine e cpa 2; arts. 14 e 15, in fine; c) Alemanha: arts. 6 (5); 20 (1); d) Bulgária: arts. 35(4), 65; e) Polônia : arts. 67(2), 81; f) Romênia; art. 17; g) Tchecoslováquia : art. 20(2); h) Áustria: art. 8º, Lei Fundamental 21.12.1867; art. 19; Tratado de Saint Germain; arts. 62 a 68; Tratado Internacional de 15.5. 1955; arts. 7, 26; j) Iugoslávia: Princípios Fundamentais inc. VII, parágrafo 2º (4º item), arts. 170, 171, 245 a 248.

A Constituição da República Federativa do Brasil preconiza que as relações internacionais são regidas pelo princípio da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, destacando que o Estado Brasileiro buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando a formação de uma comunidade latino-americana de nações.

A Constituição da Nação Argentina de 22 de agosto de 1994 no capítulo quarto – Atribuições do Congresso – dispõe no art. 23:

"Legislar e promover medidas de ação positiva que garantam a igualdade real de oportunidades e de trato e pleno gozo e exercício dos direitos reconhecidos por esta Constituição e por tratados internacionais vigentes sobre direitos humanos, em particular das crianças, mulheres, anciãos e pessoas com incapacidade" (tradução nossa).

Nesse mesmo sentido, a Constituição Política da Colômbia de1991, com a Reforma de 1997, em diversos artigos, determina que:

"Art. 7. El Estado reconoce y protege la diversidad étnica y cultural de la Nación colombiana".

Art. 13. Todas las personas nacen libres e iguales ante la ley, recibirán la misma protección y trato de las autoridades y gozarán de los mismos derechos, libertades y oportunidades sin ninguna discriminación por razones de sexo, raza, origen nacional o familiar, lengua, religión, opinión política o filosófica.

El Estado promoverá las condiciones para que la igualdad sea real y efeciva y adoptará medidas en favor de grupos discriminados o marginados".

Seguindo o mesmo princípio, a Constituição da República do Paraguai de 1992 adotou o princípio de igualdade das pessoas no artigo 46 com a seguinte redação:

"Todos os habitantes da República do Paraguai são iguais em dignidade e direitos. Não se admite discriminações. O Estado removerá os obstáculos e impedirá os fatores que os mantêm ou propiciam" (tradução nossa).

Ora, se o aludido parágrafo único do art. 4º da Constituição Brasileira tem por princípio e objetivo a integração latino-americana, vimos que as Constituições integrantes do chamado Cone Sul buscam a proteção das pessoas ou grupamentos vulneráveis transbordando os limites da igualdade formal na direção da igualdade real, superando os obstáculos que inviabilizam ou dificultam o exercício da igualdade substancial ou material daqueles que se encontram em desvantagem.

Assim, o conceito de ação afirmativa adotado pelos legisladores, vem viabilizar o princípio da dignidade da pessoa humana que exige uma igualdade em sentido axiológico-jurídico material. As políticas de ação afirmativas de caráter étnico-racial têm por objetivo estabelecer critérios de diferenciação para se compensar a desigualdade factual de oportunidades, promovendo a superação de obstáculos. A realização da igualdade, enfim, exige diferenciações, discriminações positivas, e isso postula uma intervenção e concretização diferenciadas por parte do legislador.


Principais Debates Acerca de Políticas Ação Afirmativa e seus Mecanismos em Vigor

Por fim, cumpre-nos fazer algumas observações a respeito das principais teses que vêm sendo defendidas contra as ações afirmativas e seus mecanismos. São elas:

I. Violação do princípio da igualdade. A intenção de dar-se um tratamento mais favorável a quem está em situação de desvantagem, em razão de serem grupos débeis econômica e socialmente, não caracteriza arbítrio ou violação do princípio da igualdade, pelo contrário, pretende viabilizar a isonomia material.

Comentando o entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello, acerca do conteúdo jurídico do princípio da igualdade, em célebre estudo de todos conhecido, Marcelo Neves aduz que [52]:

"Numa perspectiva rigorosamente positivista, Bandeira de Mello enfatiza que o princípio constitucional da isonomia envolve discriminações legais de pessoas, coisas, fatos e situações. Discute, então, quando discrímenes se justificam sem que o princípio vetor seja deturpado. E aponta três exigências: a presença de traços diferenciais nas pessoas, coisas, situações ou fatos; correlação lógica entre fator discrímen e desequiparação procedida; consonância da discriminação com os interesses e valores protegidos na Constituição".

Marcelo Neves segue, então, esses parâmetros para verificar que [53]:

"quanto mais se sedimenta historicamente e se efetiva a discriminação social negativa contra grupos étnico-raciais específicos, principalmente quando elas impliquem obstáculos relevantes ao exercício de direitos, tanto mais se justifica a discriminação jurídica positiva em favor dos seus membros, pressupondo-se que esta se oriente no sentido da integração igualitária de todos no Estado e na sociedade"

e conclui, que: [54]

"as discriminações legais positivas em favor da integração de negros e índios estão em consonância com os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, estabelecidos nos incisos III e IV do seu artigo 3º".

Nesse mesmo sentido temos a manifestação do jurista Hédio Silva Jr: [55]

"Salvo engano, é certo que a Constituição de 1988, implícita e explicitamente, não apenas admitiu como prescreveu discriminações, a exemplo da proteção do mercado de trabalho da mulher (artigo 7º., XX) e da previsão de cotas para portadores de deficiência (artigo 37, VIII), donde se conclui que a noção de igualdade circunscrita ao significado estrito de não-discriminação foi contrapesada com uma nova modalidade de discriminação, visto como, sob o ângulo material, substancial, o princípio da igualdade admite sim a discriminação, desde que o discrímen seja empregado com a finalidade de promover a igualização."

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No mesmo passo, Carlos Roberto de Siqueira Castro, ratificando lições doutrinárias anteriores, professa que:

"(...) Tal contexto de estatísticas sociais desfavoráveis para aqueles contingentes humanos inferiorizados da sociedade, a persistência nas generalizações legislativas, com adoção de normas simplistas, genéricas e iguais para todos, independentemente das notórias diferenças sociais e econômicas que são fruto, por exemplo, do escravismo e da cultura machista, não propicia a mobilidade e a emancipação social desses grupos discriminados e, até mesmo, aprofunda e reproduz os condenáveis preconceitos histórica e culturalmente enquistados no organismo social. Nesse campo de questões, que bem exprime as relações sempre tensas entre o Direito e a sociedade, a caracterizar o fenômeno a que designamos de constitucionalismo de resultado, percebe-se nitidamente o abandono do classicismo isonômico e a busca de instrumentos de aplicação e interpretação da Constituição capazes de enfrentar o imobilismo conservador e de prestigiar as políticas públicas mudancistas e de transformação social. Em tal ordem de convicções, as ações positivas despontam como um mecanismo da justiça distributiva, destinado a compensar inferioridades sociais, econômicas e culturais associadas a dados da natureza e ao nascimento dos indivíduos, como raça e sexo. (...) A adoção de cotas para ingresso de estudantes negros em universidades brasileiras afigura-nos como uma necessária medida para solucionar o desproporcional quadro do ensino superior em nosso País." [56]

Assim, a intenção de se dar um tratamento mais favorável a quem está em situação de desvantagem, em razão de serem grupos débeis econômica e socialmente, não caracteriza arbítrio ou violação do princípio da igualdade, pelo contrário, pretende viabilizar a isonomia material.

II.A ação afirmativa destrói o princípio do mérito. Nos EUA, mais ainda no Brasil, o mérito tem sido usado como ideologia para impedir o adensamento de medidas compensatórias a favor da população afro-descendente. Podemos melhor refletir dizendo que a ação afirmativa contrariaria um princípio universalista básico, qual seja: a lei aplica-se aos indivíduos, independentemente de suas pertenças sociais e de suas características naturais. Ora, no caso da educação pública superior no Brasil, onde a existe uma rede pública de excelente qualidade, e, ao mesmo tempo, uma pequena proporção de negros, mormente nos cursos de Medicina e de Direito, faz sentido falar em estabelecer metas que privilegiem a matrícula.

Do ponto de vista normativo, não se questiona que o mérito e os dotes intelectuais estejam sendo empanados por desigualdades raciais e de classe que podem ser corrigidas por políticas compensatórias. A controvérsia nos EUA sobre este tema não é pouca. Tal critério tem sido muito utilizado na implementação de ação afirmativa. Vale ressaltar que, neste país, o mérito consignado pelas melhores notas não é o único passaporte para o ingresso nas universidades, pois concorre com: ser filho de benfeitores ou de membro do alumni; ser residente regional; ter habilidades esportivas; estar numa certa faixa de idade; demonstrar (por meio de entrevistas) habilidades específicas para algumas áreas do saber etc.

Ronald Dworkin, no seu livro Questão de Princípio, define a especificidade das discriminações raciais por terem

"sido, historicamente, motivadas não por um cálculo instrumental qualquer, como no caso da inteligência, idade, distribuição regional, ou habilidade atlética, mas por causa do próprio desprezo pela raça ou religião excluídas. Exclusão por raça era, em si mesmo, um insulto porque era gerada por desprezo e o revelava". (...) "Não há nenhuma combinação de habilidades e qualidades e traços que constitua ´mérito´ em abstrato".

Peter Singer, em sua obra Ética Prática, ratifica essa posição [57]:

"Como já afirmei antes, a maior inteligência não traz consigo nenhuma pretensão correta ou justificável a um maior desfrute das coisas boas que a nossa sociedade tem a oferecer. Se uma universidade admite alunos de maior inteligência, ela não o faz em consideração ao maior interesses que eles têm em ser admitidos, nem em reconhecimento ao seu direito de ser admitidos, mas porque, com isso, favorece objetivos que, acredita, serão propiciados por esse processo de admissão. Portanto, se essa mesma universidade resolver adotar novos objetivos e usar a ação afirmativa para fomentá-los, os candidatos que teriam sido admitidos pelo processo anterior não poderão reclamar que a nova maneira de agir viola os seus direitos a ser admitidos, ou dispensa-lhes menos respeito que aos outros. Para começar, não tinham nenhum reclamo especial para ser admitidos; eram felizes beneficiários da velha política da universidade. Agora que essa política mudou, outros se beneficiam, não eles. Se isso parece injusto, é só porque estávamos habituados à velha política".

O mesmo filósofo continua:

"Outra maneira de defender uma decisão de aceitar um aluno vindo da minoria em detrimento de um aluno do grupo majoritário que se saiu melhor no exame de admissão seria afirmar que os testes padrão não oferecem uma indicação precisa da aptidão quando um aluno foi seriamente desfavorecido. Isso está de acordo com a questão levantada na seção anterior, quando nos referimos à impossibilidade de chegar à igualdade de oportunidades. A educação e os antecedentes familiares provavelmente influenciam os resultados obtidos em testes. Um aluno com um histórico de privações que obtenha 55% num exame de admissão pode ter melhores perspectivas de se formar em pouco tempo do que um aluno mais privilegiado, que tenha obtido 70%. O ajuste, com base nisso, dos pontos obtidos em testes não significaria admitir alunos de grupos minoritários e desfavorecidos em detrimento de alunos com melhor qualificação. Refletiria uma decisão de que os alunos desfavorecidos tinham, de fato, melhor qualificação do que outros. Isso não configuraria nenhum tipo de discriminação racial."

Por fim, o citado autor concluiu, que [58]:

"Dentro do objetivo geral da igualdade social, a maior representatividade das minorias em profissões como a advocacia e a medicina é desejável por várias razões. Os membros de grupos minoritários são os mais propensos a trabalhar junto aos seus iguais do que os que vêm dos grupos étnicos dominantes, e isso pode ajudar a superar a escassez de médicos e advogados que se verifica nas comunidades pobres, onde vive a maior parte dos membros das minorias menos favorecidas. Eles também podem compreender os problemas dos pobres melhor que os que provêm de famílias abastadas. Médicas e advogadas, bem como estes profissionais oriundos de minorias, podem servir de modelo para outros membros de grupos minoritários e para as mulheres, rompendo as barreiras mentais inconscientes contra a aspiração ao exercício de tais profissões. Por fim, a existência de grupos diferentes de estudantes ajudará os membros do grupo étnico dominante a aprender mais sobre as atitudes dos afro-americanos e das mulheres, o que lhes dará melhores condições de servir a comunidade enquanto médicos e advogados".

III.Cotas para negros equivalem a combater uma injustiça criando outra, pois o combate às diferenças socioeconômicas entre brancos e negros não pode levar à suspensão, ainda que temporária, do sistema de ingresso na universidade baseado no mérito do candidato. O primeiro equívoco de tal argumento é considerar que o atual vestibular tenha a capacidade de medir o "mérito do candidato". Em verdade, o atual exame vestibular mede, mais freqüentemente, a qualidade do ensino oferecido aos candidatos, as condições de estudo e vida dos mesmos. Mais do que o mérito do candidato, o nosso vestibular mede o mérito do sistema escolar, do sistema social e a desigualdade de oportunidades. Não por acaso, o vestibular das universidades públicas seleciona os estudantes que vieram de escolas privadas e das classes mais abastadas.

Se a preocupação de muitos é a necessidade de manutenção de um processo competitivo, a proposta de cotas não abole a competição: a proposta de cotas, ao reconhecer as profundas desigualdades de oportunidade, estabelece que a competição deve acontecer entre candidatos com igualdade de condições, para que, de fato, se possa medir o mérito dos candidatos e não o mérito dos diferentes sistemas escolares. Não se pode dar um Fusca para um piloto, uma BMW para outro, e achar que nessa corrida vai-se medir o mérito dos pilotos.

IV. A Violação do princípio da diferença na igualdade inserto no art. 208, inciso V, da Constituição da República Federativa do Brasil. Faz-se importante ressaltar, a partir da Conferência de Direitos Humanos, realizada em Viena, de 1993, que as populações vulneráveis merecem proteção particularizada dos Estados, entendendo-se que a vulnerabilidade não deve ser confundida com inferioridade, mas com as pessoas ou grupamentos humanos reconhecidamente alvo de violações quanto a seus direitos humanos. Nesse sentido, cabe ao órgão legiferante e aos demais Poderes, inclusive o Judiciário, conformarem-se à ordem jurídica interna presidida pelo texto Constitucional, bem como aos princípios consagrados pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Nesse sentido, o § 3º, do artigo 1º, da Carta das Nações Unidas evidencia a promoção dos Direitos Humanos. Por sua vez, em consonância com esse dispositivo, o Programa de Ação da Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena (item 24), insta os Estados a criar e a manter mecanismos nacionais adequados, particularmente nas áreas de educação, saúde e apoio social, para promover e proteger os direitos de setores vulneráveis de suas populações e garantir a participação de pessoas desses setores na busca de soluções para seus problemas.

Mais recentemente, a Conferência Mundial de Direitos Humanos sobre Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Outras Formas de Intolerância, realizada em Durban, África do Sul, em 2001, na Declaração e Programa de Ação, incentiva os Estados a desenvolverem e elaborarem planos de ação nacionais para promoverem a diversidade, igualdade, eqüidade, justiça social, igualdade de oportunidades e participação para todos. Tudo isso através, dentre outras coisas, de ações e de estratégias afirmativas ou positivas; tais planos devem visar à criação de condições necessárias para a participação efetiva de todos nas tomadas de decisão e o exercício dos direitos civis, culturais, econômicos, políticos e sociais em todas as esferas da vida com base na não-discriminação (item 99).

No campo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a problemática que envolve a dualidade inclusão/exclusão, sob a perspectiva racial, é o cerne das iniqüidades que violam a idéia de universalidade, indivisibilidade e interdependência. A educação está inserida nos direitos sociais econômicos e culturais, não podendo ser dissociada dos direitos civis e políticos, dado o caráter de universalidade, interdependência e indivisibilidade.

A Carta Federal de 1988, já em seu Preâmbulo, coloca o Brasil como uma sociedade multicultural e pluralista [59]:

"O conceito de democracia pluralista envolve toda a substância da Constituição, e seus princípios informam como sua provisões devem ser interpretadas. Devido ao princípio da unidade da Constituição, o intérprete tem de considerar as normas constitucionais em seu conjunto, globalmente, conciliando as tensões existentes".

É nesse sentido o nosso texto Fundamental de 1988, multicultural e pluriétnico, consagra, especialmente, nos artigos 215 e 216, a proteção étnico-cultural dos grupamentos formadores do processo civilizatório nacional, com proteção particular às populações afro-brasileiras.

Desnecessário o tour de force hermenêutico, uma vez que os princípios da Constituição Federal são informadores da igualdade material e substancial. Não cabe dúvida: o conceito de cidadania visa à superação da dualidade inclusão/exclusão.

Vale destacar a Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no Campo do Ensino, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 40, de 1967 (DOU de 17.11.67), bem como a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, adotada pela Resolução nº 2.106, da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 21. 12. 1965. O último instrumento retro mencionado, no item 4 do artigo 1º dispõe que:

"Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou técnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos de igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos".

Ao analisar o parágrafo 4º, do artigo 1º, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, Lindgren Alves, assevera que esse dispositivo abriu caminho para a ação afirmativa em defesa de grupos ou indivíduos que se encontrem em situação de vulnerabilidade dentro das sociedades nacionais, dizendo que ele

"estipula que não serão consideradas discriminatórias ‘as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais e étnicos ou de indivíduos que necessitam de proteção’ para que possam ter o gozo efetivo de seus direitos humanos, ‘contando que tais medidas não conduzem, em conseqüência, a manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais’ e não prossigam após terem sido alcançados os níveis eqüitativos que se têm em mira para a função dos direitos fundamentais". [60]

Nesse mesmo sentido, Piovesan e Guimarães dizem que [61],

"(...). No mesmo artigo 1º da Convenção, o § 4º adverte que não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados seus objetivos. Neste sentido, as medidas especiais e temporárias voltadas a acelerar o processo de construção da igualdade não são consideradas discriminação racial. É o caso das chamadas ações afirmativas, que são medidas positivas adotadas para aliviar e remediar as condições resultantes de um passado discriminatório".

Seguindo a mesma esteira jurídico-ideológica temos a Declaração dos Princípios Acerca da Tolerância, proclamada e assinada em 16 de novembro de 1995, com a seguinte dicção:

"Enfatizando as responsabilidades dos Estados Membros no desenvolvimento e encorajamento do respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais para todos sem discriminação de raça, gênero, língua, origem, religião ou deficiência, e no combate à intolerância".

A Constituição da República Federativa do Brasil assegura como fundamentos da República:

I – (...); II cidadania; III - dignidade da pessoa humana; IV – (...); V – (...). Constituindo objetivos fundamentais da RFB: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – (...); III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Nas relações internacionais rege-se pelos seguintes princípios: I – (...); II - prevalência dos direitos humanos; III – (...); IV – (...); V – (...); VI – (...); VII – (...); VIII- repúdio ao terrorismo e ao racismo; (...).

O inciso LXXVII, § 2º do artigo 5º, da CRFB dispõe que:

"Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais que a República Federativa do Brasil seja parte".

Tal dispositivo integra tratados e convenções de direitos humanos no cardápio de direitos fundamentais, a exemplo da Constituição Portuguesa 1976 (art. 16, I), do Texto Francês de 1958 e do norte-americano (1791, Emenda IX).

Coube ao legislador infraconstitucional, portanto, a elaboração de norma que atendesse ao disposto no item 4, do artigo 1º, da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e demais instrumentos jurídicos internacionais versando sobre a matéria os quais o Brasil ratificou. Nesse sentido, a ausência de norma infraconstitucional regulando a matéria implicaria na inconstitucionalidade por omissão.

O artigo 208 da Carta da República brasileira dispõe que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia do inciso V: acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um. José Carlos Gal, [62] leciona que:

"O direito à educação faz-se um direito de todos, porque a educação já não é um processo de especialização de alguns para certas funções na sociedade, mas a formação de cada um e de todos para a sua contribuição à sociedade nacional, que quer construir com a modificação do tipo de trabalho e do tipo de relações humanas".

Prossegue o mesmo autor [63]:

"Uma análise mais profunda mostra, no entanto, que parte extremamente importante das desigualdades na distribuição dos rendimentos, na sociedade moderna deriva não do fato de o patrimônio ser distribuído desigualmente, mas do fato de que alguns gozam da felicidade de ter acesso ao ensino e outros não. Aqueles que têm a oportunidade de acesso ao ensino conseguiram instrumentalizar-se de tal forma, que constroem uma diferencial de rentabilidade que perdura por toda a vida. É evidente, em estudos empíricos muito cuidadosos, que parte extremamente importante da desigualdade na distribuição de rendimentos é devido ao nível de escolaridade e à diferença da taxa de retorno da educação, mais do que qualquer outra variável".

A hermenêutica constitucional coloca como raison d’être do Estado Democrático de Direito, conforme visto nos dispositivos constitucionais citados, a justiça, a solidariedade, o pluralismo e o combate às desigualdades sociais e regionais. Portanto, a retórica liberal da igualdade formal, não pertence mais aos objetivos do Estado brasileiro.

É fácil verificar que a articulação desses direitos constitucionalmente consagrados, ao revés do passado, visa à superação dos obstáculos que pessoas e grupamentos étnico-raciais vítimas do colonialismo escravista. A meritocracia nada mais é do que a perpetração das desigualdades. Devemos repetir ser dever do Estado "garantir a todos o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um".

A Universidade como Instituição, ressaltamos, deve obedecer aos princípios do Texto Fundamental. O ingresso de grupamentos de étnico-culturais na universidade garante a pluralidade própria da diversidade propalada pelo texto maior. O fruto da diferença étnico-cultural eleva a qualidade da produção acadêmica que deve ser vista não a partir de uma perspectiva individualisto-meritocrática, inibidora da participação de outros seguimentos da sociedade na produção intelectual.

Contrário senso, além da concentração racial da riqueza haverá, também, a concentração etnocêntrica da produção acadêmica. Aferir a capacidade de cada um é levar em conta a sua história, o seu passado e as suas habilidades. Não há de haver hegemonia de valores étnico-raciais como critério de ingresso na universidade. O mérito nesse sentido seria a preservação de valores mantenedores da exclusão. Devolver para o meio social conhecimentos construídos na diversidade é sumamente relevante. A diversidade de acordo com o Texto Maior está nas formas de expressão, nos modos de criar, fazer e viver, bem como nas criações científicas, artísticas e tecnológicas.

V. Falta de base objetiva ou científica para definir o conceito de raça e critério de definição para se identificar os beneficiários das ações afirmativas ou de seus mecanismos.

Trata-se de uma questão importante, haja vista que vem sendo utilizada para obstaculizar a concretização das poucas ações afirmativas implementadas até a esse momento em nosso país. As alegações utilizadas são várias. Por exemplo, consideram que não há base ‘objetiva’ ou ‘cientifica’ para sabermos quem são os ‘negros’ em nosso país, ou, pelos mesmos motivos, impugnam o critério de auto-declaração como sendo um modo adequado para se identificar os ‘negros’ beneficiários das políticas instituídas.

Esses dois argumentos, por exemplo, foram empregados em todas as ações judiciais [64] promovidas contra as leis promulgadas no Estado do Rio de Janeiro que criaram cotas na UERJ e na UENF. O mais expressivo exemplo do que foi exposto acima, haja vista que foi ajuizada diretamente no Supremo Tribunal Federal - STF, foi o da Adin nº 2.858/03, proposta pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – CONFENEN, que depois acabou sendo arquivada pelo STF, ao final do ano 2003, por falta de objeto, em face da edição de nova lei de ‘cotas’. Com efeito, a parte final do item 86 da petição inicial, subscrita pela CONFENEN, impugna a referida lei estadual alegando que:

"(...) o critério de cota racial adotado pela Lei estadual nº 3.708/01 carece de base científica capaz de justificar uma "ação afirmativa" dessa magnitude e que, por definição, discrimina parcelas ponderáveis de outras minorias étnicas e sociais".

O Poder Judiciário ainda não enfrentou definitivamente a questão em tela, mas já existem decisões proferidas por órgãos jurisdicionais de primeira instância, que albergaram a tese de falta de critérios "objetivos" ou "científicos" para identificar os afro-descendentes beneficiários das ações afirmativas no Brasil. Podemos citar, por exemplo, a sentença proferida nos autos do mandado de segurança individual nº 2003.001.004932-5, que teve curso na 5º Vara de Fazenda Pública da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, também impetrado contra a Lei nº 3.708/01 acima referida.

No caso sob exame, a juíza deferiu a segurança requerida por um candidato ao Exame Vestibular da UERJ, que foi preterido por outro candidato beneficiário do sistema de cotas, fundando o seu juízo em que a lei não seguiu nenhum "critério científico" para o preenchimento das vagas nas universidades:

"No que se refere a lei nº 3.708/01, que estabeleceu o sistema de cotas para negros e pardos, viola a regra do art. 206, I, da Constituição Federal, bem como os princípios da isonomia e da razoabilidade, já que a reserva não segue nenhum critério científico e, desta forma, se torna passível de fraude, uma vez que basta a simples declaração firmada pelo candidato (art. 5º, caput, do Decreto nº 30.766/02), não sendo possível aferir, antes do resultado, a veracidade de tal afirmação".

No entanto, as convicções esposadas pela CONFENEN e pelo MM. juízo cedem diante de argumentos como, por exemplo, se levarmos em conta que sendo o conceito de raça humana, estabelecido sócio-culturalmente e não biologicamente, não pode ser determinado por nenhum critério considerado "científico".

O âmbito acadêmico, por seu turno, também ainda não consolidou uma posição sobre o tema em discussão. Mas a evolução dos estudos realizados no campo das relações étnicas e raciais parece que vêm se pacificando nessas divergências. A socióloga Rosana Heringer, a esse respeito, alinhava que:

"Lentamente, começou-se a desfazer também o mito de que não se sabe quem é negro no Brasil. Embora a questão da classificação étnico-racial seja controversa aqui, ou em qualquer lugar do mundo, o critério comumente utilizado é o da autoclassificação. Existe a percepção de que certo grau de arbitrariedade está presente nesta opção, algo inerente a qualquer tentativa de classificar. Porém, as classificações são necessárias para fazer escolhas e definir políticas e, se as utilizamos socialmente para discriminar negativamente, podemos também utilizá-las para reduzir injustiças históricas, apesar de suas imperfeições". [65]

Retomando outros pontos deste artigo, deve ser levado em consideração ainda, para o debate de idéias que envolve a controvérsia, que a idéia de que o Brasil vive uma democracia racial continua sendo um fator importante para que haja um falso juízo de que não existem critérios harmônicos para o estabelecimento de critérios que objetivem saber quem é "negro", para o fim de implementação da ação afirmativa ou de seus mecanismos. Com o mito da democracia racial, que cumpre um papel ideológico, há uma recusa de se reconhecerem "raças" no Brasil.

Segundo Joaze Bernardino, em Ação afirmativa e a rediscussão do mito da democracia racial, trata-se de

"uma recusa estratégica que ocorre somente em momentos de conceder eventuais benefícios àqueles que são identificados como membros do grupo de menor status. A não separação de raças do ponto de vista biológico tampouco significa que elas não estejam separadas, do ponto de vista social, da concessão de privilégios e de distribuição de punições morais, econômicas e judiciais. Neste sentido, contrariando a interpretação racial hegemônica no Brasil e respaldado nos diversos estudos da Unesco, advogamos que a raça existe, não como uma categoria biológica, mas como uma categoria social". [66]

Na verdade, o termo "raça" refere-se ao uso de diferenças fenotípicas como símbolos de distinção social. Significados raciais são, nesse sentido, culturalmente e não biologicamente construídos, distinguindo-se, a partir da inserção nestas categorias, lugares sociais dominantes e dominados. Raça é, assim,

"síntese de diferenças fenotípicas, mas também de status, de classe, de diferenças, em suma, políticas, portanto, podemos dizer que relações de raça são relações de poder. A partir deste ambiente, constituído por ‘relações raciais’, modos de ‘consciência racial’ emergem; tal consciência é definida como o resultado dialético do antagonismo entre grupos sociais justamente definidos como raças no curso de um processo histórico." [67]

Nesse sentido, em consonância com os argumentos antes mencionados, em inolvidável decisão proferida nos autos do habeas corpus (HC 82424), em que figurava como paciente o editor Siegfried Ellwanger, o Supremo Tribunal Federal, na Sessão Plenária realizada em 17 de setembro de 2003, decidiu por maioria de sete votos a três, negar o recurso interposto pelo editor. A Excelsa Corte manteve a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul condenando o editor por crime de racismo. Os fundamentos dos votos, principalmente os do Exmº Ministro Gilmar Ferreira Mendes e demais Ministros, que por maioria decidiram pela condenação, estavam baseados na conceituação de raça, que em muito já superou as limitações conceituais biológicas para dar lugar ao pertencimento étnico-racial trazido pela antropologia, sociologia e demais ramos das ciências sociais [68].

Também vale a pena referir, que para fins de criação de políticas de ação afirmativa, o emprego de critérios universalizantes, como "nacionalidade" (por exemplo, o termo brasileiro), não atende aos fins almejados. Esses critérios ocultam a discriminação, haja vista referirem-se a que brancos, pardos, pretos são todos brasileiros. Desse modo, se a categoria "nacionalidade" não é suficiente para medir as discriminações, é preciso definir outras categorias sociais supostamente em desvantagem, tais como: "idoso", "adolescente", "pessoa portadora de deficiência" etc.

Assim, é necessário do ponto de vista da prática sociológica e política, detectar outras categorias para termos como medir, por exemplo, a discriminação de que um brasileiro idoso é vítima. Nesse caso, percebe-se a necessidade de agregar ao termo "brasileiro" um qualificativo que possa ajudar a averiguar uma possível discriminação cujo "idoso" é vítima. Desse modo, para averiguar outros tipos de discriminação, cujo brasileiro é vítima, é imperativo, eleger outras categorias, como gênero (sexo), religião (crença), orientação sexual, raça, cor, etnia etc.

No caso da população afro-descendente, devemos falar, então, de discriminação racial, pois, os resultados de pesquisas acadêmicas e outros relatórios governamentais destes vinte últimos anos, até mesmo relatórios da ONU, atestam a realidade de uma discriminação em referência à cor, à etnia ou à raça.

É importante frisar, para reforço do acima exposto, que a própria Constituição da República, em diversos dispositivos refere-se às categorias cor (artigo 3º, inciso IV), etnia (artigo 242, § 1º), raça (artigo 3º, inciso IV), idoso (artigo 77, § 1º), adolescente (artigo 203, inciso II), sexo (artigo 3º, inciso IV), origem (artigo 3º, inciso IV), crença (artigo 5º, inciso VI), idade (artigo 3º, inciso IV) etc. Adicione-se a tudo isso a expressão "quaisquer outras formas de discriminação" que permite notável abertura material da norma constitucional protetiva (artigo 3º, inciso IV).

Há de se chamar atenção, ratificando o que foi dito anteriormente, que o qualificativo racial não pressupõe a existência de raças biológicas, mas indica que diferenças fundamentadas na cor de pele, na aparência e demais fenótipos serve a classificá-los para detectar possíveis discriminações de que os afro-brasileiros possam ser vítimas [69].

É certo dizer que outras sociedades tiveram menos dificuldades nesse ponto para adotar políticas de ação afirmativa. Por exemplo, se por um lado os EUA passaram pela cruel realidade da segregação racial, por outro lado, tal fato permitiu que essa sociedade tivesse maior clareza sobre as relações étnicas e raciais, não mascarando essa realidade como no Brasil. Lá, pura e simplesmente, ‘brancos’ são ‘brancos’ e ‘negros’ são ‘negros’, independentemente de fenótipos ou outros artifícios ideológicos.

A Pesquisadora norte-americana Lynn Huntley, comentando a classificação racial adotada nos EUA, enuncia que:

"Nos Estados Unidos, embora as idéias de classificação racial tenham mudado um pouco com o decorrer do tempo, a idéia-chave que governa a identidade racial é o princípio da ‘hipodescendência’ ou a ‘regra de uma gota’, um padrão de linhagem sangüínea. De acordo com esse critério, qualquer pessoa que tenha um grau pequeno ou mensurável de herança africana é por lei (e no entendimento comum) considerada afro-americana ou "negra", independente da sua aparência de fato" [70].

Sobre o autor
Luiz Fernando Martins da Silva

advogado, ex-diretor e assessor jurídico do Instituto de Pesquisa e Culturas Negras e do Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Luiz Fernando Martins. Estudo sociojurídico relativo à implementação de políticas de ação afirmativa e seus mecanismos para negros no Brasil:: aspectos legislativo, doutrinário, jurisprudencial e comparado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 342, 14 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5302. Acesso em: 22 nov. 2024.

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