Sumário: 1. Direito como Fenômeno Social e Universal – 2. Multiplicidade Conceitual do Fenômeno Jurídico: 2.1. Alguns Conceitos Primordiais – 2.2 Ampliando a Plurisignificação Conceitual: Uma Aproximação Lingüística – 2.3. Dimensões Fundamentais do Direito: Ainda em Torno da Pluralidade Definitória – 3. As Grandes Divisões do Direito: 3.1. Direito Natural e Direito Positivo; 3.2. Direito Objetivo e Direito Subjetivo; 3.3. Direito Público e Direito Privado; 3.4. Direito Material e Direito Processual – 4. Os Diferentes Enfoques acerca do Direito: Dogmática e Zetética – 5. Direito e Justiça: Breve Nota Preliminar – 6. Referências.
1. Direito como Fenômeno Social e Universal
Direito, justiça e lei são termos obrigatórios no terreno dos juristas. Mas o que referem ou podem referir tais vocábulos não comporta um único significado ou sentido, necessitando, pois, de uma mais destacada contextualização para tornar adequado o enfoque utilizado. Partindo dessa premissa, alertamos, em primeiro lugar, para a dificuldade de conceituação do fenômeno jurídico [1].
Se, em certa medida, a noção primordial de direito sugere a idéia de "lei", de "um conjunto de normas que regula o convívio dos indivíduos de uma sociedade" [2], por outro ângulo, é facilmente perceptível que outras idéias podem acoplar-se ao termo comentado, tais como a inferência de que "se algo é direito", o é por uma questão de "justiça".
Mas se supormos que uma certa lei é aprovada para determinar que os trabalhadores brasileiros perderão o direito às suas aposentadorias, respeitando-se os limites da Constituição e das leis em geral, isso não quer dizer que a referida lei possa se considerar justa, ou seja, conforme um critério aparente de justiça. Caso alguém se sinta prejudicado e venha contestar esse ato legislativo, poderá requerer judicialmente, isto é, perante o Poder Judiciário, através de uma ação que se desenvolverá como um processo formalizado, assegurando-se às partes os direitos reconhecidos como válidos pelo sistema estatal.
Ao cabo do processo acima referido, a sentença consente que, apesar da lei ser injusta, o trabalhador que acionou a Justiça (o Judiciário) não faz jus ao benefício da aposentadoria, o que o motiva a recorrer da decisão. O direito constitucional, a proteção aos direitos adquiridos, enfim, nada disso, é bastante para anular a questão de direito trazida pela lei injusta.
É possível visualizar-se que, em um caso como esse – que é hipotético, necessitar-se-ia de muitos outros temperamentos e informações necessários para formar uma opinião. Mas reflete, no espectro dos conceitos aprioristicamente percebidos que direito e justiça são duas realidades que aparentemente se tocam, mas não se contêm e, tampouco, se exaurem.
Assim temos, em um sentido, que o direito é aquilo que emana das leis vigentes. De outra banda, o direito é aquilo que se afirma como expressão de justiça.
No entanto, essas são apenas duas das possíveis definições de direito que podemos assinalar, existindo uma gama de acepções diversas e, até mesmo, implicações que o vocábulo "direito" pode suscitar, como veremos adiante [3]. Decifrar o que vem a ser o direito é, nas palavras singelas de Herkenhoff, "uma dificuldade aparente que se torna uma questão instigante". [4]
O problema maior radica na possibilidade de idéias que, à primeira vista, perfilam-se contraditórias, ocasionando odiosas falácias e reducionismos, bastante comuns nas opiniões mais desatentas de alguns observadores cotidianos e, até mesmo, de uns certos profissionais da área jurídica.
Daí a importância de uma base sólida para avançar nos terrenos do saber jurídico, pois a fonte de questionamentos é inesgotável: a articulação de vários temas interdependentes reclama especial atenção e dedicação intensa.
Para compreender bem a ciência jurídica, faz-se necessária uma gradativa captação de dados relativos à filosofia, à ética, à sociabilidade humana, ao Estado e, por conseguinte, à ciência política, ao ambiente científico etc.
É imperioso frisar: direito e sociedade são indissociáveis. A relação jurídica é, em si, uma relação social, isto é, provém de relações intersubjetivas [5]. É que toda e qualquer forma de contato do homem entre seus semelhantes pode resultar em uma situação repleta de desdobramentos relativos ao campo do direito. Teremos uma melhor noção do que isso representa quando estudarmos o problema da norma jurídica e das normas de conduta em geral.
Em primeiro plano, cumpre esclarecer, com Ehrlich, que o termo sociedade deve representar o conjunto das organizações ou associações humanas inter-relacionadas; é da ordem interna das sociedades humanas que surge o direito. Por isso, diz ele: "Para explicar as origens, o desenvolvimento e a essência do direito, deve-se pesquisar sobretudo a ordem das associações". [6]
Para que uma organização social possua a coexistência harmoniosa de seus membros, o primado de regras de conduta deve ser obrigatório para evitar colapsos, intrigas, desavenças eventuais. Quando surgem os conflitos intersubjetivos, isto é, o choque entre interesses antagônicos de dois ou mais indivíduos, movidos pela busca incessante dos bens da vida prática, devem ser assinaladas normas que permitam o desate da questão turbulenta, da disputa, enfim, que não se conseguiu evitar se outras formas. Afinal, nem sempre a conciliação é possível, máxime nas relações mais complexas, onde a resistência ao interesse alheio é produto da multiplicidade cultural, ideológica etc. Com efeito, o direito corresponde à exigência de "uma convivência ordenada, pois nenhuma sociedade poderia subsistir sem um mínimo de ordem, de direção e de solidariedade". [7]
Conforme acentua o Professor Reale, de "experiência jurídica", só podemos falar onde e quando se formam as relações entre os homens, por isso denominadas relações intersubjetivas, pois envolvem sempre dois ou mais sujeitos. Assim, temos a "sempre nova lição de um antigo brocardo": ubi societas, ibi jus (onde está a sociedade está o direito). Ressalte-se, ainda, que a recíproca também é verdadeira: ubi jus, ibi societas, "não se podendo conceber qualquer atividade social desprovida de forma e garantia jurídicas, nem qualquer regra jurídica que não se refira à sociedade". [8]
2. Multiplicidade conceitual do fenômeno jurídico
A importância em se conceituar o que vem a ser o direito é tamanha e, também – por mais paradoxal que possa parecer – vã; é proporcional à aspiração em compreender de maneira absoluta o próprio fenômeno jurídico e, ao mesmo tempo, totalmente desnecessária quando já podemos identificá-lo (o direito), sem que isso implique no exaurimento de sua explicação.
As condições para que se possibilite uma noção definitiva de direito não podem ser realizadas em um primeiro e único momento, devendo ser laboradas gradativamente até a concreção de uma linha definitória mais ampla; no presente momento, permitiremos apenas uma pequena aproximação com o conceito de direito: um conjunto de noções primeiras, pontuais e que será visualizado a partir de uma breve e superficial incursão pelos autores clássicos que já mentalizaram arrojadamente o sentido do fenômeno "direito".
2.1. Alguns Conceitos Primordiais
Com base em definições propostas por diversos filósofos e juristas, apresentamos, à guisa de ilustração, algumas formas de enxergar-se o direito. O elenco de definições, apesar de selecionado, é apenas uma pequena amostra de concepções possíveis, podendo-se encetar uma quantidade bem maior, tal como faz Dimitri Dimoulis ao invocar visões 18 (dezoito) diferentes pensadores acerca do fenômeno "direito".
a)Sócrates, Platão e Aristóteles (viveram entre 400-320 a.C.): "Respeitar mesmo as leis injustas para que os maus, tomando isso como exemplo, respeitem as leis justas", eis o sentimento de direito e justiça em Sócrates que, condenado à morte, cumpriu sua sentença conscientemente. Platão também conecta o direito à justiça (a regra que indica o justo). Aristóteles também implica direito e justiça, mas essas possui modalidades distintas (justiça comutativa ou aritmética e justiça distributiva).
b)Celso (viveu entre os séculos I e II d.C) e Ulpiano (assassinado por volta de 223 d.C.): São conhecidos jurisconsultos romanos, ou seja, peritos na arte de "dizer o direito", de proferir julgamentos. Como se sabe, o direito romano é uma referência histórica do pensamento jurídico de brilho inobliterável. Esses dois representantes produziram clássicas definições do fenômeno direito, tal como a idéia de que o direito é atribuir a cada um o que é seu, vivendo honestamente e sem prejudicar ninguém (Ulpiano) e a expressão "ius esta ars boni et aequi"(o direito é a arte do bem e do justo), atribuída a Celso.
c)Immanuel Kant (1724-1804): Atribuía à liberdade o centro de um sistema jurídico, fundamentando a obrigatoriedade do direito em um conceito moral universal, o qual nominou de "imperativo categórico", que consiste na premissa de respeito aos direitos do outro indivíduo, na construção de uma liberdade geral.
d)Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) [9]: Para esse filósofo alemão, o direito consiste na plena liberdade e moralidade definidas pelo Estado. Hegel afirma que não existe uma única definição para o direito, mas considera imperioso visualizá-lo como primazia do Estado.
e)Friedrich Karl von Savigny e Rudof von Ihering: Dois grandes vultos da filosofia jurídica do século 19. Produziram vastíssimo conhecimento jurídico. Savigny é representante da escola pandecista, responsável pela recepção moderna do direito romano na Alemanha da época, criando assim uma visão sistêmica e científica de aplicação do direito. Infere, assim, a idéia de que o direito é uma ciência, com forte apelo interpretativo. Ihering preconiza a existência da força e do equilíbrio do direito, exortando o lado retórico da ciência jurídica. Defende a idéia de coercitividade e finalidade do direito.
f)Eugen Ehrlich (1862-1922): Para o jurista austríaco, a efetividade social é que delineia o direito. Dito assim, Ehrlich, representante da Escola do Direito Livre (ou direito vivo) reputa que o direito não depende só do Estado, mas do reconhecimento social de certas normas. Isso faz com que seja conhecido como um dos pais da sociologia jurídica.
g)Hans Kelsen (1881-1973): Um dos mais proeminentes nomes da cultura jurídica de todos os tempos e certamente o mais referido contemporaneamente, Kelsen reduz – de maneira científica e clara – o fenômeno jurídico à investigação das normas e ordenamento jurídico. Por isso é o grande representante do positivismo normativista e da preconizada ciência do direito (dogmática jurídica).
h)Robert Alexy (1945-): Professor da Universidade de Kiel (AL), é um dos mais expressivos filósofos do direito da atualidade, tendo expressivo destaque no campo de estudos da argumentação jurídica. Com especial enfoque na principiologia jurídica, defende a conexão do direito com preceitos morais, na construção de um direito discursivamente racional.
2.2. Ampliando a plurisignificação conceitual: uma aproximação linguística
Em sentido etimológico, "direito" origina-se de derectum do baixo latim, Derivado de dirigere, surgiu na Idade Média, aproximadamente século IX. Derivam dessa matriz, os vocábulos "direito" (português), "derecho" (espanhol), "diritto" (italiano) e "droit" (francês).
Significaria o direito aquilo que é reto (rectum), que não contém curvatura. O vocábulo "rectum", inclusive, deu origem a outras formas, tais como "right" (inglês) e "recht" (alemão).
Os romanos referiam-se a jus (lícito) e injuria (ilícito). De jus derivam os termos jurisdição, jurista, jurídico etc. Já lex é a representação da própria lei.
Na Grécia antiga, Diké, figura mitológica – filha de Zeus e Themis – que ostentava uma espada em sua mão direita e uma balança na esquerda – a indicar o que era "correto" – acoplava-se a um conceito primordial do que é justo, derivando o termo dikaion (aquilo que é devido). As normas de conduta, mais associadas geralmente a uma idéia de "sistema de direito", eram identificadas pela palavra nómos.
Isso ocorre também com o idioma inglês, que identifica o conjunto de normas, isto é o próprio direito, nessa particular acepção, com a representação "law", que significa simplesmente "lei".
2.3. Dimensões do Direito: ainda em torno da pluralidade definitória
Compreender "o que é o direito" é, no dizer Herkenhoff, "uma dificuldade aparente que se torna uma questão instigante" [10].
É possível repetir hodiernamente, como afirma Washington de Barros, o que foi dito por Kant sobre a incessante busca dos juristas pelo conceito de direito: enquanto não se apropriam de uma definição do que é o "direito", identificam, não raro, o que é "juridico" (o que é relativo ao "direito"). [11]
Na opinião de Alexandre Araújo Costa, os conceitos jurídicos desafiam um discurso linear, na medida em que ele faz referências a noções que se contêm e se condicionam mutuamente [12].
As condições para que se possibilite uma noção definitiva de direito não podem ser realizadas em um primeiro e único momento, devendo ser laboradas até a concreção de uma linha definitória mais ampla.
Como razão de ordem, propomos dois critérios básicos:
a) o nominal: procura dizer o que a palavra significa;
b) o real ou lógico: busca descobrir a essência do objeto definido (a realidade do direito).
Podemos subdividir, ainda, o critério nominal em definição etimológica (origem do vocábulo "direito"), tal como analisamos no item anterior e definição semântica. Com cuidado a esta última, trata-se da simples busca pelo significado da palavra "direito", em sua significação lingüística, os diversos sentidos que a palavra teve, através dos tempos, ou seja, os sentidos do vocábulo no curso de seu desenvolvimento [13]. Em termos semânticos, temos que o direito pode assumir o significado de "a qualidade do que está conforme a reta"; "aquilo que está conforme a lei"; "a própria lei"; "conjunto de leis"; "a ciência que estuda as leis" [14].
No que pertine ao critério real ou lógico, trata-se da busca do significado do vocábulo que, como sabemos, possui diferentes acepções, conduzindo, assim, à percepção do direito como fenômeno multifacetado.
Autores diversos, como Flóscolo da Nóbrega e Franco Montoro, destacam algumas dimensões particulares do objeto em análise. O primeiro identifica o direito em quatro planos distintos: o direito como princípio; como norma; como poder; e como garantia [15].
Utilizaremos, apenas para inferir uma linha conceitual básica, cinco definições concebidas por Franco Montoro [16] para identificar o fenômeno "direito":
- como lei ou norma (direito em sentido objetivo)
- como faculdade ou poder (direito em sentido subjetivo)
- como acepção de justo (direito como valor que implica a justiça)
- como ciência (direito como objeto do conhecimento)
- como fato social (direito em sentido sociológico)
A idéia mais comumente associada ao nosso objeto de estudo é a de "conjunto de normas que regulam uma sociedade". Direito, em sentido objetivo, assume o papel de norma de conduta impositiva; é a regra social obrigatória; é a norma jurídica reguladora da conduta social humana (norma agendi).
Nesse significado, identifica, também, o conjunto de normas de um ramo dogmático (Ex.: Direito Civil, Direito Penal, Direito Constitucional, Direito Processual, Direito Tributário,Direito Comercial, Direito do Consumidor etc.).
Referível, igualmente, ao conjunto de normas relacionadas a um instituto jurídico (Ex.: Direito falimentar - refere-se às normas jurídicas pertinentes à falência e à concordata).
Ainda pode ser empregado para destacar o conjunto de normas jurídicas vigentes em determinado país – um ordenamento jurídico nacional – como, por exemplo, o Direito norte-americano, o Direito brasileiro, e, também, uma família ou sistema jurídico, no tocante ao seu modelo, à guisa dos dois principais modelos, o direito anglo-americano ("Common Law") e o direito de tradição romano-germânico ("Civil Law").
Por seu turno, o direito enquanto faculdade (direito subjetivo) é o poder de uma pessoa, em relação a determinado objeto jurídico. Vale dizer, o direito subjetivo diante de alguma situação jurídica.
No tirocínio de Eduardo Rabenhorst, trata-se de faculdade, poder, prerrogativa, imunidade ou privilégio (direito subjetivo), e pode ser assim compreendido: "se alguem tem um determinado direito, isso significa que este alguém possui uma prerrogativa de exigir a obrigação correspondente a essa direito. Por exemplo, se o comprador tem a obrigação de efetuar o pagamento daquilo que comprou, o vendedor, por sua vez, tem o direito de exigir o pagamento devido" [17].
Outra maneira de enxergar o direito é acoplando o seu conceito ao sentimento de justiça e aos valores inerentes à essa aspiração. Assim, as idéias de justiça, igualdade e correção são bem próprias do direito. Consistente na valoração de uma situação jurídica, constitui um campo de estudos à parte, chamada axiologia jurídica.
Atribuir a cada um o que seu é o fundamento da justiça, segundo Ulpiano: "Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi" [18]. Na ótica de Santo Tomás de Aquino, o direito é o que é devido a outrem, segundo uma igualdade".
O direito enquanto ciência refere-se ao campo de estudos que o reflete como objeto do conhecimento. Inclui, sobretudo, a chamada dogmática jurídica. Consubstancia-se no estudo metódico do fenômeno jurídico e a sistematização que decorre desse estudo, que recebe o nome de epistemologia jurídica [19]. Mas o problema da cientificidade do direito é mais complexa, não podendo desprezar-se as ciências auxiliares do fenômeno jurídico, tais como as disciplinas descritivas aludidas no tópico 1.
Finalmente, algumas linhas sobre a concepção de direito como fato social. Como já foi caracterizado no item 1 supra, o direito é um fenômeno social. Para o sociólogo, sobretudo, como ensina Lévy-Bruhl, propondo a seguinte definição de direito: "O direito é o conjunto das normas obrigatórias que determinam as relações sociais impostas a todo momento pelo grupo ao qual se pertence". [20] Já afirmou Ehrlich que o centro de gravidade do direito não está na legislação, nem na ciência jurídica, tampouco na jurisprudência, mas sim na sociedade mesma.
Desse ponto de vista, direito constitui-se como objeto da sociologia jurídica, importando fazer-se tanto uma leitura jurídica do social (a resposta do direito aos problemas sociais), quanto uma leitura social do jurídico (a resposta da sociedade à realidade jurídica).