RESUMO: A responsabilidade civil fundada na violação do dever conjugal de fidelidade pode ser admitida sob determinadas condições, nomeadamente como último recurso, sem recorrer a meios de obtenção absolutamente interditos, face a um dano significativo, restringindo a publicidade do processo civil, respeitando uma ponderação de interesses e não aplicando o disposto no n.º 8 do artigo 32.º da Constituição. Este estudo tem como propósito perceber em que medida a prova ilícita na ação de responsabilidade civil na República Portuguesa.
Palavras-chave: prova ilícita; dever conjugal de fidelidade; responsabilidade civil; proporcionalidade;
Sumário: 1. Formulação do problema. 2. Admissibilidade da prova ilícita à luz do problema. 3. Inadmissibilidade da prova ilícita à luz do problema. 4. Posição adotada: o princípio da proporcionalidade. 5. Enquadramento jurisprudencial. 6. Conclusões.
1 – Formulação do problema
O presente estudo ocupa-se do problema da prova ilícita na ação de responsabilidade civil por violação do dever de fidelidade conjugal [1].
Estamos assim especialmente focados no âmbito do direito processual civil, mas não prescindiremos de cuidar, ainda que superficialmente, de outras matérias relacionadas com o direito da família, a responsabilidade civil, o direito penal e o direito constitucional, convocadas pelo objeto de estudo. Tudo no espaço do ordenamento jurídico português [2].
É importante começar por ter presente que a pretensão indenizatória parte do disposto no n.º1 do artigo 1792.º do Código Civil (CC): “O cônjuge lesado tem o direito de pedir a reparação dos danos causados pelo outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil e nos tribunais comuns”. A propósito, poderíamos estranhar o fato de um dos cônjuges pretender obter uma indenização do outro na constância do matrimônio, sem estar em causa uma ação de divórcio. Teremos então que considerar duas questões interligadas.
A primeira parte de uma separação entre os danos resultantes da ruptura da relação matrimonial e os danos que na constância do casamento que resultam da preterição dos deveres conjugais [3][4]. Nós só iremos tratar destes últimos.
A segunda parte do “novo” regime do divórcio no Código Civil português que deixou de fazer referências ao “cônjuge declarado único ou principal culpado”, aos “danos não patrimoniais” ou à obrigação de um pedido de indenização na própria ação de divórcio [5]. Daí acompanharmos as palavras de Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira: “Pensamos hoje, até, que o artigo 483.º não exclui a possibilidade de, independentemente de ter sido requerido o divórcio ou a separação de pessoas e bens, se deduzir pedido de indemnização dos danos patrimoniais ou não patrimoniais causados pela violação dos deveres do art. 1672.º...” [6].
Uma outra questão de interesse a este respeito é o fato de no passado, particularmente no direito americano, se falar no princípio da imunidade interconjugal (“interspousal immunity rule”) baseado na proteção da paz e harmonia entre marido e mulher e do patrimônio da própria família, o que impedia a propositura de ações de responsabilidade civil entre cônjuges [7].
Hoje em dia sabemos contudo que as coisas já não se passam assim. Não é por duas pessoas celebrarem um contrato de casamento que significa deixar de responder pelos danos causados [8], no caso, pela violação do dever conjugal de fidelidade.
Com efeito, os cônjuges estão reciprocamente vinculados ao dever de fidelidade nos termos do artigo 1672.º do CC. Sendo assim, é legítimo que o cônjuge lesado ponha mão na ação de responsabilidade civil por ofensa a um direito familiar de carácter pessoal. Mas já não sabemos se é legítima a utilização de uma prova ilícita, obtida pelo próprio cônjuge lesado, para fazer valer a sua pretensão indenizatória. Sendo esse o problema objeto de estudo, passemos a delimitá-lo com mais precisão.
Por um lado, o cônjuge lesado instaura uma ação de responsabilidade civil fundada na violação do dever conjugal de fidelidade tendo já um meio de prova da infidelidade obtido de forma ilícita. Ou seja, está em discussão uma prova pré-constituída, obtida por um particular, que pressupõe a violação de direitos materiais substantivos do outro cônjuge (lesante) [9]. Este meio de prova irá traduzir-se substancialmente em documentos, por exemplo, e-mails, cartas, fotografias ou gravações audiovisuais que façam prova da infidelidade.
Por outro lado, o cônjuge lesante poderá alegar, enquanto réu, a inadmissibilidade desse meio de prova da infidelidade por se tratar de uma obtenção de prova que implicou a ofensa dos seus direitos fundamentais. Desde logo, o direito à reserva da vida privada, o direito à imagem, o direito à palavra ou o direito à inviolabilidade da correspondência, todos previstos na Constituição da República Portuguesa (CRP) [10]. Considerando que estamos a falar de direitos, liberdades e garantias que são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas [11].
Neste diapasão, temos um problema que nos remete para a relação entre a verdade e o processo civil. E nessa medida vamos começar por procurar argumentos a favor da admissibilidade da prova ilícita no processo civil com vista a favorecer a verdade dos fatos; passando, depois, em sentido contrário, à procura de argumentos a favor da sua inadmissibilidade, na medida dos limites à descoberta da verdade; de forma, por fim, a tomar uma posição sobre o problema e concluir pela solução que nos pareça mais justa e materialmente adequada.
2. Admissibilidade da prova ilícita à luz do problema
São vários os argumentos que podemos colher a favor da admissibilidade da prova ilícita da violação dos deveres conjugais de fidelidade.
Em primeiro lugar, o argumento da dificuldade em obter provas diretas do adultério. É notório que o cônjuge lesante irá procurar agir da forma mais cuidadosa possível não deixando assim quaisquer indícios da prática do fato.
Nesse sentido, não se espera uma confissão, de forma livre e voluntária, em juízo, da violação dos deveres de fidelidade. No Código de Processo Civil (CPC) português é importantíssima a norma do n.º 3 do artigo 417.º, “dever de cooperação para a descoberta da verdade”, na qual é legítima a recusa na colaboração no processo se importar, nomeadamente, a violação da integridade moral ou da intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
Significa isto que pouco adiantam mecanismos processuais que visem determinar a comparência do cônjuge lesante para a prestação de depoimento, informações ou esclarecimentos sobre fatos que interessem à decisão da causa, quando, realmente, poderá implicar a violação de um daqueles direitos e uma recusa legítima [12]. Embora não possamos descartar totalmente uma eventual confissão e, nesse caso, de acordo com Luiz Marinoni e Sérgio Arenhart, “nada impede que o fato constatado através de uma prova ilícita seja reconhecido pelo juiz quando admitido ou confessado em juízo, desde que, como é óbvio, essa confissão seja voluntária” [13].
Esta recusa legítima na colaboração para a descoberta na verdade, por parte do cônjuge lesante, poderá estender-se à recusa da entrega de um documento (por exemplo, uma carta) mesmo quando o cônjuge lesado alegue uma dificuldade séria em o obter [14].
A dificuldade em obter provas diretas do adultério também se poderá associar à prova testemunhal. Ainda que o dever de fidelidade possa ser entendido, hoje em dia, com uma matriz afetiva, e não só sexual, dificilmente alguém terá oportunidade de testemunhar as concretas condutas danosas do cônjuge lesante [15]. De outro modo, mesmo para produzir prova dos indícios da prática do fato, o círculo de pessoas mais próximo que poderá ter algum conhecimento do que ocorre na intimidade do lar pode recusar-se legitimamente a depor como testemunhas [16].
Sendo assim, não é para nós surpresa que diante a dificuldade em obter prova direta da infidelidade, face a um grau de suspeita elevado, o cônjuge lesado procure obter um meio de prova sem o consentimento do outro cônjuge.
Em segundo lugar, e como indispensável argumento, a posição doutrinal que entende não se aplicar o disposto no n.º 8 do artigo 32.º da CRP ao processo civil português. Esta posição é assumida designadamente por Salazar Casanova, entendendo que ocorre uma diferenciação de regimes no que respeita à prova no processo penal e no processo civil [17]. Aquela é de fato uma disposição relacionada com as “garantias de processo criminal”: “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”. A não aplicação deste preceito parece ser um argumento forte porque permite separar os limites à intervenção do Estado na investigação criminal, de interesse iminentemente público e com proteção constitucional, dos limites em processo civil, infraconstitucionais, presentes no n.º3 do artigo 417.º do CPC, relacionados com interesses privados. E como não falamos da repressão da criminalidade mas apenas da tutela e proteção de direitos privados, particularmente a reparação de um dano no espaço da responsabilidade civil, poderá fazer sentido uma outra flexibilidade na admissão da prova ilícita.
A mesma ideia parece também resultar da diferença que nos é dada pelos penalistas portugueses entre a verdade material e a verdade formal, dado que uma há-de ser antes de tudo uma “verdade judicial” enquanto a outra da “auto-responsabilidade probatória das partes” [18].
A não aplicação do n.º 8 do artigo 32.º da CRP ao processo civil é, porém, uma posição doutrinal controversa, como notaremos mais adiante.
Em terceiro lugar, considerando ainda o mesmo preceito constitucional, poderá mais facilmente admitir-se uma prova ilícita mediante intromissão na vida privada, na correspondência ou nas telecomunicações, sem o conhecimento e consentimento do visado, do que mediante tortura, coação ou ofensa à integridade física. A este respeito, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira classificam as primeiras como interdições relativas ao passo que as segundas como interdições absolutas [19]. Por exemplo, uma declaração confessória escrita extorquida por tortura ou uma gravação obtida por intermédio de um sequestro deverão estar completamente afastadas e interditas; mas já a recolha de um documento obtido através da violação da correspondência ou do domicílio ocasional, sem conhecimento e consentimento, em determinados casos, poderia ser admitido.
Como teremos oportunidade de defender, deverá obedecer a uma ponderação dos interesses do cônjuge lesante em confronto com os interesses do cônjuge lesado. E repare-se que este último poderá sofrer não só danos patrimoniais como também danos não patrimoniais. O sofrimento, o desgosto, a humilhação e o vexame, enquanto danos não patrimoniais, em princípio, são tutelados através do direito ao desenvolvimento da personalidade [20], direito de natureza constitucional [21], pelo que se encontra em confronto com os direitos constitucionais do outro cônjuge lesante. Mas também podemos falar dos próprios direitos de personalidade, os mais variados, que não deixam de subsistir por causa do vínculo do casamento. No estudo de Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, damos conta: “Também no casamento, quer enquanto acto quer como estado, os cônjuges não alienam nas relações entre si a generalidade dos seus direitos de personalidade, pelo que, para além da inquestionável tutela civilística de bens essenciais como a vida e a integridade física nas relações entre os cônjuges, nos parecem ressarcíveis mesmo os danos não patrimoniais, desde que significativos, causados ao outro cônjuge com a violação de outros bens da personalidade, v.g. a honra, a reputação, o bom nome, a liberdade e mesmo a intimidade pessoal, verificados durante a vigência do casamento, que não apenas pela dissolução do casamento”[22].
Fica patente a importância de estarem em causa danos significativos, que comprometam a vida em comum, pela sua gravidade ou reiteração [23].
Em quarto lugar, com a prova da infidelidade há danos que ficam por tutelar pela ordem jurídico-civil e que ficam dependentes de uma tutela jurisdicional efetiva [24]. Será justo recusar o direito de reparação dos danos causados ao cônjuge lesado devido à prova ilícita que foi obtida sem o consentimento do cônjuge lesante?
E são danos facilmente comprováveis. O cônjuge lesado demonstra que o sofrimento e a humilhação foram a causa adequada da depressão, recorrendo assim a consultas e acompanhamento médico, tomando os medicamentos antidepressivos prescritos, num conjunto de danos patrimoniais e não patrimoniais a descrever na ação de responsabilidade civil. Jorge Pinheiro até nos diz ser indenizável o “choque psíquico” sofrido com a descoberta do adultério e a frustração dos “naturais anseios sexuais” [25].
O problema está, de outro modo, em demonstrar a ação ilícita e culposa do cônjuge lesante. Particularmente em relação à culpa, faz todo o sentido discutir aqui se estamos em sede de responsabilidade contratual ou extracontratual. É sabido que os regimes têm importantes e diferentes efeitos jurídicos, por exemplo, a nível do ônus probatório e da prescrição do direito [26]. Então, se considerarmos que a violação dos deveres conjugais decorre de uma violação de uma obrigação contratual, presume-se a culpa do cônjuge réu; caso contrário, deverá o cônjuge lesado alegar e provar a violação culposa dos deveres conjugais. Segundo Pereira Coelho, a alegação e prova da violação objetiva dos deveres conjugais, no que diz respeito à ilicitude, por si só fará presumir de acordo com as regras da experiência que o cônjuge réu procedeu com culpa [27]. Porém, neste tipo de ação de indenização, concorda que a lei possa presumir a culpa do cônjuge infrator. Em sentido contrário, Mafalda Miranda Barbosa concluiu que dificilmente nos podemos enquadrar no âmbito da responsabilidade civil contratual quando está em causa a natureza pessoalíssima de deveres que podem não ser classificados como deveres de carácter obrigacional [28]. Pensamos que é esse o caso dos deveres de fidelidade conjugal, “núcleo intangível da comunhão conjugal”. E, sendo assim, incumbe ao cônjuge-autor provar que a culpa, apreciada pela diligência de um bom pai de família, é do cônjuge-réu[29].
De qualquer forma, voltamos ao mesmos problema: como se faz prova da ação ilícita? Dificilmente a obtenção da prova terá o consentimento do cônjuge infrator, resultando eventualmente na prova ilícita que temos vindo a discutir. Fica a certeza de que a prova ilícita pode muito bem ser a única forma de se conseguir uma indenização pelo danos causados com a infidelidade – considerando, também, que a reconstituição natural não é possível e que são danos “irreversíveis”.
Como último argumento a favor da admissibilidade da prova ilícita da violação dos deveres conjugais de fidelidade, não podemos ignorar que existem normativos legais adequados que vedam a publicitação dos elementos de prova em processo civil. De acordo com o disposto no artigo 164.º do CPC, o acesso aos autos pode ser limitado nos casos em que a divulgação do seu conteúdo possa causar dano à dignidade das pessoas e à intimidade da vida privada ou familiar. Se estão previstos nesta disposição legal processos como a anulação do casamento, o divórcio, a separação de bens e pessoas, o estabelecimento ou impugnação de paternidade, a que apenas podem ter acesso as partes e os seus mandatários, também a responsabilidade civil por violação dos deveres conjugais de fidelidade deverá preencher os pressupostos. Logo, com as restrições à publicidade do processo, não parece haver uma "intolerável lesão" em relação ao direito à reserva da vida privada, direito à imagem, direito à palavra ou direito à inviolabilidade da correspondência do cônjuge lesante, mantendo-se como uma restrição proporcional [30].
São estes alguns dos argumentos importantes em sentido positivo à admissibilidade da prova ilícita que consideraremos nas nossas conclusões.