3. Inadmissibilidade da prova ilícita à luz do problema
Por outro lado, a exclusão da prova ilícita poderá ter sentido uma vez que o cônjuge lesante também tem direitos constitucionais e civis que devem ser respeitados e tutelados pelo ordem jurídica.
Nesse caso, num juízo de ponderação, os seus direitos poderão eventualmente prevalecer sempre que esteja em causa uma prova ilícita da sua ação antijurídica e censurável. Por exemplo, não se justificaria, no caso concreto, que o cônjuge lesado violasse um domicílio não conjugal, como um quarto de hotel, para a recolha de elementos probatórios [31]. Mas já se justificaria caso estivesse em causa o livre acesso ao local, como sucede na casa da morada da família. Ou seja, nem tudo é legítimo ou há limites para a descoberta da verdade em processo civil que devem ser cuidadosamente respeitados. O que nos remete para a posição doutrinária majoritária no ordenamento jurídico português: a inadmissibilidade da prova material ilícita.
Como representantes desta tese em Portugal, entre outros, elevamos Isabel Alexandre e Capelo de Sousa. Ambos expressamente defendem ser aplicável ao processo civil, por analogia, o disposto no n.º 8 do artigo 32.º da CRP [32].
Trata-se, pois, de uma garantia e reforço de proteção de direitos, liberdades e garantias do cônjuge lesante, não se admitindo, nesse caso, uma recolha de prova sem o seu consentimento, através do acesso a e-mails, cartas, fotografias, escutas telefónicas ou gravações audiovisuais. Isto porque é na vida privada ou no “ser do homem para si mesmo que reside uma maior eficácia da reserva, originando um crivo muito mais apertado de eventuais causas de justificação da ilicitude a tais bens”, pelo que só em locais de livre acesso ou em locais em que se demonstre haver livre acesso é que se deverá justificar a recolha de elementos probatórios da infidelidade [33].
Diga-se ainda que esta tese restritiva poderá impedir a utilização em juízo da prova ilícita que ponha em causa qualquer outro direito fundamental, não necessariamente enquadrável no artigo 32.º, n.º 8 da CRP [34]
Não podemos deixar de dizer que esta é também uma posição assumida em geral pelo ordenamento jurídico brasileiro. Desde logo, na Constituição da República Federativa do Brasil, expressamente prevendo, o artigo 5.º, LVI, “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”[35]. O que nos leva a crer que prevalecem os direitos materiais substantivos do cônjuge lesante em prejuízo da verdade e dos danos causados ao cônjuge lesado com a infidelidade. Autores como Antonio Cintra, Ada Grinover e Cândido Dinamarco parecem não questionar aquele preceito constitucional, precisamente para impedir que tais provas venham ao processo civil ou nele permaneçam, pondo cobro à discussão [36]. Por seu turno, Fredie Didier Jr, Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria entendem existir um direito fundamental a não ter contra si uma prova produzida ilicitamente, em particular, quando está em causa o direito fundamental à vida íntima da pessoa [37]. O exemplo dado é precisamente a diferença entre a captação de imagens em via pública da captação num local privado: “Já se a captação de imagens é feita dentro do quarto de um motel, ou dentro do apartamento do amante, ou em qualquer outro local resguardado à privacidade do casal, poderá ser inadmitida, porque ilícita”.
Outro argumento a favor da inadmissibilidade da prova ilícita em processo civil parte do fato de as condutas do cônjuge lesado poderem consubstanciar crime. As gravações e fotografias ilícitas, a violação de correspondência ou de telecomunicações e a devassa por meio de informática, entre outros, são crimes previstos no Código Penal português [38]. Isto é, o cônjuge lesado ao recolher a prova sem o consentimento do outro estaria, em princípio, a violar esses bens jurídico-penais [39]. E, muito embora se afigurem crimes semi-públicos, dependentes de queixa, seria estranho que o juiz em processo civil admitisse provas recolhidas através de condutas criminalmente censuráveis.
Duas notas mais são importantes neste contexto. A primeira sobre a teoria da descontaminação do julgado e a segunda sobre a teoria dos frutos da árvore venenosa, não se confundindo uma com a outra.
A teoria da descontaminação do julgado está relacionada com a decisão do tribunal superior que classifica a prova como ilícita e afasta-a do processo, remetendo o processo de novo para primeira instância; o problema está em saber, sendo o juiz de primeira instância o mesmo, se este fica ou não influenciado pelo conhecimento que obteve da prova ilícita e que fundamentou a sua própria sentença [40]. Entendem Luiz Marinoni e Sérgio Arenhart que esse mesmo juiz procurará uma sentença de procedência a todo o custo, mesmo que inexistam provas válidas, pois dificilmente deixará de estar “contaminado” com o conhecimento factual que adveio da prova ilícita. A solução, segundo os mesmos autores, passa por um diferente juiz de primeira instância, não aquele que pronunciou a anterior sentença, mas alguém competente para substituir o juiz afastado, respeitando, assim, o princípio do juiz natural. De outro modo, não sabemos até que ponto não poderá o próprio cônjuge lesante opor suspeição ao juiz por entender ocorrer motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade [41].
Uma questão relacionada com esta última prende-se com o momento em que a prova é admitida no processo. Tudo leva a pensar, uma vez que estamos a falar de provas pré-constituídas (pelo cônjuge lesado), que o tribunal se irá pronunciar sobre a sua admissibilidade logo após a audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas, tal como consta na lei: “relativamente às provas pré-constituídas, deve facultar-se à parte a impugnação, tanto da respectiva admissão como da sua força probatória” [42]. Como estamos a falar de documentos (e-mails, cartas, fotografias ou gravações audiovisuais, etc.), poderíamos pôr mão no disposto no artigo 443.º do CPC: “(...) o juiz, logo que o processo lhe seja concluso, se não tiver ordenado a junção e verificar que os documentos são impertinentes ou desnecessários, manda retirá-los do processo e restitui-os ao apresentante, condenando este ao pagamento de multa nos termos do Regulamento das Custas Processuais”. Porém, alerta Isabel Alexandre para o fato de ser necessário, nos termos gerais, provar a própria obtenção ilícita da prova – no nosso caso, que o cônjuge abusivamente intrometeu-se na vida privada, no domicílio ocasional, na correspondência ou nas telecomunicações – o que nos remete, em princípio, para a “audiência prévia” ou, não havendo lugar a esta, para a “audiência final”[43]. Não se confundindo com a fase da valoração das provas na decisão, quando o juiz forma o seu convencimento quanto às mesmas.
Sendo assim, caso o juiz de primeira instância admita e valore a prova ilícita poderá surgir aquele problema da descontaminação do julgado, face a um recurso e a uma decisão de inadmissibilidade da prova do tribunal superior.
A segunda nota prende-se com a contaminação das provas vinculadas à prova ilícita, relacionada com a conhecida teoria dos frutos da árvore venenosa (“fruit of the poisonous tree doctrine”). Pelo menos a maioria da doutrina e dos tribunais brasileiros não aceitam as provas produzidas a partir de outra ilicitamente obtida [44]. As exceções normalmente apontadas referem-se à inexistência de nexo causalidade entre ambas, à descoberta inevitável e ao descobrimento provavelmente independente. O problema no ordenamento jurídico português parece resolver-se através do disposto no n.º2 do artigo 195.º do CPC, sobre o “efeito-à-distância”: “Quando um acto deva ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente”.
Significa isto que adotando a tese restritiva e aplicando analogicamente o disposto no artigo 32.º, n.º8, da CRP, toda a prova obtida direta ou indiretamente com base nos meios de obtenção ilícitos serão inadmissíveis. No enquadramento jurisprudencial, mais adiante, veremos exemplos.
São estes, muito resumidamente, alguns dos argumentos mais importantes a favor da inadmissibilidade da prova ilícita.
4. Posição adotada: o princípio da proporcionalidade
Temos muitas dúvidas que aplicação integral dos argumentos da tese restritiva, com vista à inadmissibilidade da prova ilícita, possam primar sempre a favor da justiça do caso concreto. Parece-nos até que no âmbito do nosso problema poderá ser extremo decidir sempre nesse sentido.
Se é certo que a circunstância de estarmos perante pessoas unidas matrimonialmente não esvazia os direitos de personalidade ou o direito à reserva da intimidade da vida privada, também não deixa de ser verdade, pela própria natureza das coisas, que esses direitos são atenuados na sua intensidade com a relação interconjugal. Por isso, no âmbito do processo civil, impõe-se uma ponderação dos interesses sobretudo se a descoberta da verdade não puder ocorrer através de nenhuma outra prova que não a prova ilícita. É o critério que os autores brasileiros costumam denominar de imprescindibilidade [45]. Ou seja, se o cônjuge lesado procurou obter licitamente a prova da infidelidade sem sucesso, acabando por recorrer, em último caso, a uma recolha probatória sem o consentimento do outro cônjuge, somos da opinião que a prova ilícita deve ser admitida. Trata-se de um recurso probatório insubstituível em ordem à demonstração dos fatos a que se destina pois, sem o mesmo, o direito à reparação e à tutela jurisdicional efetiva seriam postos em causa [46]. Por outras palavras: a ilicitude da obtenção da prova pode ser justificada sempre que o cônjuge lesado dificilmente poderia comprovar a realidade dos fatos de outra forma [47]. Assim asseguramos o direito à indenização dos danos causados com a violação do dever conjugal de fidelidade.
É verdade que tudo poderá depender de uma apreciação ponderada dos interesses em causa no pressuposto de que a proteção concedida não limita intoleravelmente outros direitos, obedecendo a um princípio da proporcionalidade em sentido amplo [48]. Mas, pelo menos, afastamo-nos da posição daqueles que não admitem em hipótese alguma a prova ilícita ou daqueles que a admitem sempre. Portanto, no processo civil “o uso da prova ilícita poderá ser admitido, segundo a lógica da regra da proporcionalidade e como acontece quando há colisão entre princípios, conforme as circunstâncias do caso concreto” [49].
Quais interesses em colisão? Os direitos constitucionais do cônjuge lesado à tutela jurisdicional efetiva, ao livre desenvolvimento da personalidade e até à integridade moral, em confronto com os direitos do cônjuge lesante à reserva da vida intimida privada, à imagem, à palavra, à correspondência, etc., consoante o caso concreto.
E tudo isto ficará dependente da motivação ou fundamentação do juiz. Nas palavras do ilustre doutrinador Barbosa Moreira: “Fala-se, ao propósito, de um ‘princípio de proporcionalidade’, invocando, por exemplo, acerca do problema da admissibilidade das provas ilicitamente obtidas. Não se trata, contudo, de uma fórmula, mas de mera diretriz. Como aplicá-la bem, diante do caso concreto, é questão que só à consciência do juiz é dado resolver, naquele instante, dramático entre todos, em que lhe cumpre vencer quaisquer hesitações e fazer a final opção, sem auxílio exterior suscetível de atenuar-lhe a responsabilidade pessoal. Esse é o seu apanágio; e nada retrata com tão vívidas cores a miséria e a grandeza da função de julgar.” [50]. Pelo que, de acordo com esta perspectiva, dependerá de um sistema de convencimento motivado do juiz, muito bem explicado no disposto no n.º 4 do artigo 607.º do CPC português: “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção ...”.
Vamos ver então qual o sentido de algumas decisões proferidas sobre o assunto nos tribunais em Portugal.