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O Juízo Final, o servidor público, o Tribunal de Contas e o purgatório

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Agenda 20/06/2004 às 00:00

5.Summa jus, summa injuria

– "Supremo direito, suprema injustiça"

Neste ponto trazemos a esta discussão elementos de Direito Constitucional.

Existem, na temática constitucional, valores e princípios a serem perseguidos pelo nosso Estado Democrático de Direito.

Presentes no preâmbulo da Carta Maior, destacamos três valores:

1.Da Proteção à Dignidade da Pessoa Humana;

2.Da Segurança Jurídica;

3.Da Garantia a um Ordenamento Jurídico Justo.

Estes valores permeiam o nosso ordenamento jurídico e a atividade estatal.

Os princípios constitucionais, norteadores da atividade do Estado, buscam, nos valores acima, os seus fundamentos de validade e incidência. Sempre que um princípio estiver em conflito com um valor, este último deve prevalecer.

É o que ocorre no caso presente. O Princípio da Legalidade Administrativa, deve ceder espaço para o valor Segurança Jurídica, até porque, um ordenamento jurídico que não possui segurança, não pode ser considerado justo. Estabelecer que não há prazo decadencial para a atuação do TCE, é desrespeitar dois valores fundamentais: o da segurança jurídica e o direito a um ordenamento jurídico justo.

Lição importante traz o Exmo. Ministro do STF, Gilmar Mendes, em voto proferido em ação cautelar, nº 2.900 – RS, citando expoentes do nosso direito, assim como do direito comparado:

"(...)vale a pena trazer à colação clássico estudo de Almiro do Couto e Silva sobre a aplicação do aludido:

"É interessante seguir os passos dessa evolução. O ponto inicial da trajetória está na opinião amplamente divulgada na literatura jurídica de expressão alemã do início do século de que, embora inexistente, na órbita da Administração Pública, o principio da res judicata, a faculdade que tem o Poder Público de anular seus próprios atos tem limite não apenas nos direitos subjetivos regularmente gerados, mas também no interesse em proteger a boa fé e a confiança (Treue und Glauben)dos administrados.

(...)

Esclarece OTTO BACHOF que nenhum outro tema despertou maior interesse do que este, nos anos 50 na doutrina e na jurisprudência, para concluir que o princípio da possibilidade de anulamento foi substituído pelo da impossibilidade de anulamento, em homenagem à boa fé e à segurança jurídica. Informa ainda que a prevalência do princípio da legalidade sobre o da proteção da confiança só se dá quando a vantagem é obtida pelo destinatário por meios ilícitos por ele utilizados, com culpa sua, ou resulta de procedimento que gera sua responsabilidade. Nesses casos não se pode falar em proteção à confiança do favorecido. (Verfassungsrecht, Verwaltungsrecht, Verfahrensrecht in der Rechtssprechung des Bundesverwaltungsgerichts, Tübingen 1966, 3. Auflage, vol. I, p. 257 e segs.; vol. II, 1967, p. 339 e segs.).

Embora do confronto entre os princípios da legalidade da Administração Pública e o da segurança jurídica resulte que, fora dos casos de dolo, culpa etc., o anulamento com eficácia ex tunc é sempre inaceitável e o com eficácia ex nunc é admitido quando predominante o interesse público no restabelecimento da ordem jurídica ferida, é absolutamente defeso o anulamento quando se trate de atos administrativos que concedam prestações em dinheiro, que se exauram de uma só vez ou que apresentem caráter duradouro, como os de índole social, subvenções, pensões ou proventos de aposentadoria."

Depois de incursionar pelo direito alemão, refere-se o mestre gaúcho ao direito francês, rememorando o clássico "affaire Dame Cachet":

"Bem mais simples apresenta-se a solução dos conflitos entre os princípios da legalidade da Administração Pública e o da segurança jurídica no Direito francês. Desde o famoso affaire Dame Cachet, de 1923, fixou o Conselho de Estado o entendimento, logo reafirmado pelos affaires Vallois e Gros de Beler, ambos também de 1923 e pelo affaire Dame Inglis, de 1935, de que, de uma parte, a revogação dos atos administrativos não cabia quando existissem direitos subjetivos deles provenientes e, de outra, de que os atos maculados de nulidade só poderiam ter seu anulamento decretado pela Administração Pública no prazo de dois meses, que era o mesmo prazo concedido aos particulares para postular, em recurso contencioso de anulação, a invalidade dos atos administrativos.

HAURIOU, comentando essas decisões, as aplaude entusiasticamente, indagando: ''Mas será que o poder de desfazimento ou de anulação da Administração poderá exercer-se indefinidamente e em qualquer época? Será que jamais as situações criadas por decisões desse gênero não se tornarão estáveis? Quantos perigos para a segurança das relações sociais encerram essas possibilidades indefinidas de revogação e, de outra parte, que incoerência, numa construção jurídica que abre aos terceiros interessados, para os recursos contenciosos de anulação, um breve prazo de dois meses e que deixaria à Administração a possibilidade de decretar a anulação de ofício da mesma decisão, sem lhe impor nenhum prazo''. E conclui: ''Assim, todas as nulidades jurídicas das decisões administrativas se acharão rapidamente cobertas, seja com relação aos recursos contenciosos, seja com relação às anulações administrativas; uma atmosfera de estabilidade estender-se-á sobre as situações criadas administrativamente.'' (La Jurisprudence Administrative de 1892 a 1929, Paris, 1929, vol. II, p. 105-106.)".

Na mesma linha, observa Couto e Silva em relação ao direito brasileiro:

"MIGUEL REALE é o único dos nossos autores que analisa com profundidade o tema, no seu mencionado ''Revogação e Anulamento do Ato Administrativo'' em capítulo que tem por título ''Nulidade e Temporalidade''. Depois de salientar que ''o tempo transcorrido pode gerar situações de fato equiparáveis a situações jurídicas, não obstante a nulidade que originariamente as comprometia'', diz ele que ''é mister distinguir duas hipóteses: (a) a de convalidação ou sanatória do ato nulo e anulável; (b) a perda pela Administração do benefício da declaração unilateral de nulidade (le bénéfice du préalable)''. (op. cit., p.82). (SILVA, Almiro do Couto e. Os princípios da legalidade da administração pública e da segurança jurídica no estado de direito contemporâneo. Revista da Procuradoria-Geral do Estado. Publicação do Instituto de Informática Jurídica do Estado do Rio Grande do Sul, V. 18, Nº 46, p. 11-29, 1988)."

Considera-se, hodiernamente, que o tema tem, entre nós, assento constitucional (princípio do Estado de Direito) e está disciplinado, parcialmente, no plano federal, na Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999 (v.g. art. 2º).

Em verdade, a segurança jurídica, como subprincípio do Estado de Direito, assume valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria idéia de justiça material." (grifos meus)

Mais uma vez, ensina o Prof. José dos Santos Carvalho Filho:

"Quanto à prescrição, considera grande parte da doutrina que ela incide em relação aos atos administrativos inválidos. Entende-se que o interesse público que decorre do princípio da estabilidade das relações jurídicas é tão relevante quanto a necessidade de restabelecimento da legalidade dos atos administrativos, de forma que deve o ato permanecer seja qual for o vício de que esteja inquinado." (grifo nosso)

O brocardo latino Fiat Justitia, Pereat Mundus (faça justiça, ainda que o mundo pereça) não é uma máxima entre nós. Usando as palavras do Exmo. Carlos Maximiliano, "O excesso de juridicidade é contraproducente; afasta-se do objetivo superior das leis; desvia os pretórios dos fins elevados para que foram instituídos; faça-se justiça, porém do modo mais humano possível, de sorte que o mundo progrida, e jamais pereça".

Fazemos coro ao todo dito acima. Não aceitamos a idéia de que não há prazo para atuação do Tribunal de Contas. Se não há lei prevendo-o (e isso somente aceita-se por hipótese), certo é que esta deve existir, buscando-se, neste caso, um prazo razoável no ordenamento jurídico pátrio. A lei federal 9.784/99 e a lei estadual 3.870/02, sem se olvidar do Decreto nº 20.910/32, que trata das ações contra a fazenda pública, estipulam o prazo comum de 5 (cinco) anos para os interessados tomarem as providências que elencam, devendo ser este o prazo observado pela Corte de Contas.

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6.Da Inobservância ao Princípio da Eficiência:

Derradeiro argumento tem de ser levado em consideração.

No caso do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, a Deliberação 190/95 estipula o prazo de 120 dias para o processo de aposentadoria acusar entrada nesta Casa, a contar da data do protocolo na origem. A mesma deliberação, em seu art. 9º, fixa prazo para cumprimento de diligência (30 dias), tendo o TCE o remédio da Promoção para compelir o jurisdicionado intempestivo a observar seu prazo.

Se o processo tramita durante longos cinco anos, há claro desrespeito ao Princípio Constitucional da Eficiência. Não se vigia e nem se zela pelo cumprimento deste prazos, seja para o envio do processo ao Tribunal de Contas, seja para o cumprimento de diligência.

Se o administrador não cumpre com proficiência os ditames legais, cabe ao TC compeli-lo a tal. Não podemos, a título de observância da legalidade, deixar o cidadão permanentemente em estado de alerta, pois como já dito, isto contraria os valores da Segurança Jurídica e do Direito a um Ordenamento Jurídico Justo.


7. Conclusão

Concluindo, a prescritibilidade é a regra, ao passo que a imprescritibilidade é a exceção. Na ausência de norma específica sobre decadência administrativa, deve o jurista se socorrer da analogia a legislação referida neste trabalho, pois o Princípio da Segurança Jurídica e o Valor Ordenamento Jurídico Justo são as verdadeira normas a serem empregadas, não ficando o intérprete e aplicador do direito preso ao positivismo puro.

Define-se, ainda, que o ato de aposentadoria não é um ato complexo, e mesmo que se tratasse de, o prazo prescricional deve ser contado a partir do momento em que o interessado começa a usufruí-lo, posto o princípio da actio nata.

A posição das Cortes de Contas no cenário jurídico e político não permite que estas participem de atos dos seus jurisdicionados, o que lhes retiraria a condição de órgão neutral, máxime que nem mesmo pratica ato administrativo propriamente dito no exercício de suas funções constitucionais.

Na verdade, o decurso do prazo tido por decadencial, quando estamos diante de ato anulável, tem o condão de convalidá-lo, sendo pois, caso de prescrição aquisitiva, o que faz com que a administração fique impedida de rever o ato, pois este teria ingressado definitivamente no patrimônio jurídico do administrado, não podendo atentar-se contra o direito adquirido e o ato juridicamente perfeito.

Por fim, não é o momento da aposentadoria o Juízo Final administrativo para o servidor, nem mesmo os Tribunais de Contas o purgatório do serviço público, não podendo a vida funcional inteira do aposentado ser revista quando da análise da legalidade da aposentadoria, mas apenas aquelas questões dentro do qüinqüênio anterior a aposentação e outras surgidas no momento da passagem para a inatividade.


Notas

1 A lei 9.784/99 estabelece que "decai" em cinco anos o "direito" da Administração rever os seus atos

2 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, 19a edição, Ed. Saraiva, São Paulo - 1995

3 FILHO. José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. fl. 97. 6ª Edição. Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2000

4 Exemplo retirado da mesma obra citada na nota nº 1.

5 Salvo as exceções expressamente criadas por lei.

Sobre o autor
Fabiano de Lima Caetano

advogado no Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAETANO, Fabiano Lima. O Juízo Final, o servidor público, o Tribunal de Contas e o purgatório. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 348, 20 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5352. Acesso em: 23 dez. 2024.

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