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O início da personalidade civil e os direitos do nascituro

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Agenda 05/01/2017 às 15:03

2. PERSONALIDADE E CAPACIDADE JURÍDICA

Personalidade, capacidade e o conceito jurídico de pessoa estão intimamente ligados, de forma que sem personalidade, não há capacidade e, portanto, não há pessoa, sujeito de direitos para o ordenamento jurídico. Nos dizeres de Monteiro (2012, p. 77) “capacidade é a aptidão para adquirir direitos e exercer, por si ou por outrem, atos da vida civil. O conjunto desses poderes constitui a personalidade, que, localizando-se ou concretizando-se num ente, forma a pessoa.” Carlos Roberto Gonçalves corrobora com este entendimento ao afirmar:

Personalidade e capacidade completam-se: de nada valeria a personalidade sem a capacidade jurídica, que se ajusta assim ao conteúdo da personalidade, na mesma e certa medida em que a utilização do direito integra a ideia de ser alguém titular dele. Com este sentido genérico não há restrições à capacidade, porque todo direito se materializa na efetivação ou está apto a concretizar-se. A privação total de capacidade implicaria a frustração da personalidade: se ao homem, como sujeito de direito, fosse negada a capacidade genérica para adquiri-lo, a consequência seria o seu aniquilamento do mundo jurídico. Só não há capacidade de aquisição de direitos onde falta personalidade, como no caso do nascituro, por exemplo (GONÇALVES, 2007, p. 72).

A capacidade se divide em capacidade de direito e de fato e, como visto, pode ser conceituada como a aptidão para ser sujeito de direito e exercer os atos da vida civil. A capacidade de direito, ou de gozo, como prefere Monteiro (2012) é a inerente ao ser humano, que todas as pessoas possuem e que dela jamais podem ser privadas, assemelhando-se muito à personalidade. De modo diverso ocorre com a legitimação, que consiste no requisito para exercer determinados atos da vida civil. Mesmo tendo capacidade de gozo, pode ser que a pessoa não tenha legitimação para figurar em determinada relação jurídica, é o que ocorre com os menores.

Por sua vez, a capacidade de fato consiste na aptidão de exercer os direitos de maneira irrestrita, é a faculdade de dispor livremente dos direitos resguardados pela legislação. Ao contrário da capacidade de direito, a capacidade de fato pode ser retirada em determinadas circunstâncias, como ocorre com os pródigos, por exemplo, que perdem a capacidade de fato para alienar certos bens, porém, mantém a capacidade de direito.

Sendo assim, a capacidade de fato encontra-se vinculada a fatores objetivos como a idade e o estado de saúde. Vale lembrar que a ausência de capacidade de fato não suprime a capacidade de direito, sendo suprida pela representação. O incapaz exerce seus direitos, adquiridos com a personalidade, por meio dos representantes legais.

Noutro giro, cabe destacar que a personalidade em si não é um direito, mas o que apoia todos os direitos do ser humano. É o alicerce, o objeto do direito, o primeiro bem que a pessoa recebe ao nascer. Neste sentido, surgem os direitos da personalidade, que consistem no direito quase natural que a pessoa tem de defender o que lhe é próprio como a liberdade, a vida, a identidade, a honra e a reputação. Conforme ensina Maria Helena Diniz:

Os direitos da personalidade são absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis e inexpropriáveis. São absolutos, ou de exclusão, por serem oponíveis erga omnes, por conterem em si um dever geral de abstenção. São extrapatrimoniais por serem insuscetíveis de aferição econômica. […] São intransmissíveis, visto que não podem ser transferidos à esfera jurídica de outrem. […] São, em regra, indisponíveis, insuscetíveis de disposição, mas há temperamentos quanto a isso. Poder-se-á, p. ex., admitir sua disponibilidade em prol do interesse social. […] São irrenunciáveis já que não poderão ultrapassar a esfera de seu titular. São impenhoráveis e imprescritíveis, não se extinguindo nem pelo uso, nem pela inércia na pretensão de defendê-los, e são insuscetíveis de penhora (DINIZ, 2012, p. 135).

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3. DIREITOS DO NASCITURO

Compulsando a legislação brasileira acerca dos direitos do nascituro é possível observar que eles estão, em sua grande maioria, previstos no âmbito do Direito Civil, principalmente nos direitos de sucessão, de cunho predominantemente patrimonialista. Como visto, para adquirir os direitos previstos aos demais cidadãos é necessário adquirir personalidade. Deste modo, o artigo 2º do Código Civil, que trata da personalidade, é a base para que se analise efetivamente quem tem ou não direitos e quais são eles, in verbis:

“Art. 2º. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”

Um rápido passar de olhos no texto legal pode fazer parecer que no primeiro momento a lei adota a teoria natalista para depois se contradizer e filiar-se à teoria concepcionista. Parte da doutrina, ao defender a teoria concepcionista, corrobora com a tentativa de ampliar o texto para além da vontade do legislador, que redigiu o artigo com clareza e domínio da língua portuguesa, para que não houvesse dúvida quanto ao início da personalidade.

Para interpretar o artigo acima mencionado, é necessário sua divisão em duas orações, como já fez o legislador. A primeira parte, que aduz, “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”, não gera qualquer tipo de dúvidas nem discussão, porquanto, afirma que o nascimento empresta universalidade à personalidade civil.

Entretanto, a segunda parte do artigo que gera polêmica, quando se afirma que “a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”, surgem as divergências doutrinárias que, data vênia, não deveriam existir devido a clareza do texto legal.

De acordo com Semião (2000), ao se atribuir à segunda oração da norma um poder sem limites, será afirmado nela o inteiro teor da primeira oração, uma vez que, se o nascituro for considerado sujeito de direitos, a personalidade começará a partir da concepção, e não do nascimento, contradizendo expressamente o texto legal, a saber, a primeira parte do artigo 2º do Código Civil. Ao admitir que a segunda parte do artigo abrange a primeira, o raciocínio lógico leva à conclusão de que aquela absorve esta, o que faria com que a primeira oração fosse letra morta no texto legal, algo impensável.

O que se observa é que as duas partes do artigo discorrem sobre duas situações distintas, em duas orações coordenadas e independentes. Condensando os ensinamentos dos melhores gramáticos da língua portuguesa, dentre eles Domingos Paschoal Cegalla (1997), é possível extrair que a conjunção adversativa “mas”, que separa a primeira e segunda parte do artigo, exprime oposição, ideias opostas. Deste modo, ao colocar a conjunção “mas” no meio do artigo o legislador transformou as duas partes em orações adversativas não subordinativas, pois possuem significado próprio e independente, são, portanto, orações coordenadas adversativas.

Sendo as duas partes do artigo 2º do Código Civil independentes, devem ser interpretadas em conjunto, sob pena de uma anular a outra, o que não pode ser admitido. Diante do exposto, é de se concluir que a lei põe a salvo os direitos do nascituro, que não correspondem aos direitos do nascido. A legislação busca resguardar, na verdade, que caso o feto nasça com vida – e é de se esperar que se nasça com vida, por simples probabilidade –, haja a transformação do que era mera expectativa de direito em direitos de fato. Neste sentido, afirma Semião:

Infere-se disso que […] ao dizer que a personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro; não teve a intenção de conceder direitos atuais ao nascituro, mas sim, a de colocá-los (em algum lugar) “a salvo” de quaisquer perigos eventuais ou iminentes, resguardando-os e vigiando-os, como expectativas, caso haja o nascimento com vida (SEMIÃO, 2000, p. 68).

Destarte, os direitos do nascituro que a lei põe a salvo, limitam-se àqueles que são especificamente previstos em lei, são um rol taxativo. Esta afirmação encontra respaldo no fato de que a lei separa os direitos da pessoa nascida, que adquiriu personalidade, dos direitos do ser por nascer, do nascituro, o que justifica a delimitação expressa no texto legal. Não seria crível esperar que o legislador separasse alguns direitos para o ser por nascer se o rol não fosse taxativo, ora, pois se o nascituro fosse sujeito de direitos não haveria necessidade alguma de tal separação, considerando que todos os direitos da pessoa nascida lhe seriam assegurados. Neste sentido, Semião conclui:

Os direitos do nascituro, são, portanto, aqueles que se acham expressa e taxativamente previstos na lei, e dentre os quais, à guisa de exemplos, encontram-se: a posse da herança em nome do nascituro; curatela do nascituro; legitimação do filho, estando concebido pelo casamento posterior à concepção; reconhecimento de paternidade; proteção à vida do nascituro pela punição do aborto provocado. Caso o Código Civil tivesse adotado a teoria concepcionista, não haveria nenhuma necessidade de fixar, um por um, os direitos do nascituro, pois, sendo ele considerado pessoa, teria todos os direitos inerentes à personalidade civil plena (SEMIÃO, 2000, p. 69-70).

É possível observar que a aferição dos direitos do nascituro se dá no campo de debate sobre qual teoria acerca do início da personalidade o ordenamento jurídico brasileiro adotou. Os concepcionalistas, por acreditarem que o nascituro tem personalidade, defendem maior amplitude aos direitos do ser por nascer. Já os natalistas, defendem que a pessoa só se torna sujeito de direitos após o nascimento com vida, possuindo o nascituro mera expectativa de direitos, desde que taxativamente prevista em lei, nos moldes do artigo 2º do Código Civil.

Desta maneira, é seguro dizer que a maior parte da doutrina e jurisprudência admitem que o ordenamento jurídico brasileiro adotou a teoria natalista, tendo em vista tanto o disposto no Código Civil quanto na Constituição Federal. Ademais, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou na votação da ADI 3510, ocorrida em 29 de maio de 2008, no sentido de que um embrião não pode ser considerado um ser humano. Naquela oportunidade, a maioria dos Ministros votaram pela constitucionalidade da lei que trata de biossegurança e regulamenta as pesquisas com células-tronco embrionárias.

Ocorre que tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 478 de 2007, que pretende criar o Estatuto do Nascituro. Embora o projeto, em seu artigo 3º, reitere a primeira parte do artigo 2º do Código Civil ao dizer que “o nascituro adquire personalidade jurídica ao nascer com vida”, assegura diversos direitos ao nascituro, em detrimento dos direitos das pessoas já nascidas, em patente contradição. Na verdade, o que se percebe é que o projeto de lei não se apega à técnica jurídica, contendo vários artigos prolixos e contraditórios. Ignora, ainda, o fato de que para ser detentor de direitos e obrigações o “ser” deve possuir personalidade jurídica.

Os autores do projeto não discorrem sobre os motivos que os levaram a propor as grandes alterações legislativas em pautas, não trazem nenhum argumento de cunho científico ou jurídico para conceder direitos a um ser sem personalidade jurídica. Invocam tão somente premissas religiosas de que a vida se inicia a partir da concepção que poderá ocorrer dentro ou fora do corpo, em nítida afronta à laicidade do Estado.

Embora o projeto tenha sido aprovado na Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados em junho de 2013, onde o relator foi o ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), o que se espera é seu arquivamento definitivo na Comissão de Constituição e Justiça, considerando que o texto do projeto é nitidamente inconstitucional por ferir os princípios basilares da democracia e justiça consagrados na Constituição Federal.

Vale ressaltar que o projeto vai na contramão do decidido pelo Supremo Tribunal Federal na votação da ADI 3510, uma vez que torna crime o congelamento e manipulação de embriões para desenvolvimento de pesquisas científicas com células-tronco embrionárias. O discurso fundamentalista religioso é utilizado para justificar severas afrontas aos direitos humanos previstos na Constituição, o que não pode ser acatado pelos operadores do Direito.

Além de transformar o crime de aborto em hediondo, o Estatuto do Nascituro prevê pena de detenção de até 3 (três) anos para quem “causar culposamente a morte de nascituro”, situação impensável, considerando que a lei penal considera impossível a tipificação do aborto na modalidade culposa. Outro aspecto de que o projeto trata, também na contramão do decidido pelo STF na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 54, é o da proibição total de se realizar o aborto eugênico, ou seja, o aborto realizado nos casos em que fica comprovado que o feto não tem condições de sobreviver devido a sérias anomalias físicas e genéticas, como no caso de anencefalia.

Ocorre que, caso o projeto seja aprovado, a consequência mais grave e perversa de tal engodo jurídico recairá sobre as mulheres. O Estatuto do Nascituro proíbe o aborto realizado quando a gravidez for resultado de estupro, prevê o pagamento de “pensão” ao nascituro até a identificação do agressor, que a partir daí, seria o responsável por ajudar na criação do filho. Além de afrontar o princípio da dignidade humana e os direitos à liberdade, reprodução e sexualidade, obrigar a mulher a carregar um feto resultado de uma agressão sexual é uma verdadeira tortura psicológica.

A violência contra a mulher, sobretudo a sexual, é prática reiterada no Brasil. O poder público deve criar ferramentas para coibir os abusos sofridos diariamente por suas cidadãs e não leis que estimulem a agressão sexual, uma vez que transfere ao criminoso o status de “pai” e aumenta o sentimento de culpa da vítima, que terá de conviver com seu algoz e criar um filho deste.

Restou demonstrado que o Projeto de Lei nº 478 de 2007 fere diversos princípios e garantias fundamentais previstas na Constituição Federal. Possui um texto obscuro, sem fundamentação e que pode atrasar o desenvolvimento do Brasil, tanto culturalmente ao promover a desigualdade, o ódio e a violência, quanto cientificamente, ao proibir pesquisas com células-tronco embrionárias.

Sobre o autor
Guilherme Henrique Ferreira Martins

Graduado na Universidade Estadual de Montes Claros/MG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Guilherme Henrique Ferreira. O início da personalidade civil e os direitos do nascituro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4936, 5 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53671. Acesso em: 22 nov. 2024.

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