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O início da personalidade civil e os direitos do nascituro

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O conceito de nascituro é pacífico na doutrina e pode ser entendido como “aquele que, estando concebido, ainda não nasceu”. Os direitos relacionados ao nascituro são um campo de intensa batalha legislativa.

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar os direitos do nascituro e sua posição no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, realizou-se uma análise das teorias acerca do início da personalidade jurídica, considerando que só é detentor de direitos e obrigações quem possui personalidade. Foram analisadas as teorias concepcionista, da personalidade condicional e natalista, esta última, consagrada pelo ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo pelo Código Civil em seu artigo 2º. Por fim, foi realizada uma análise pormenorizada de quais são, efetivamente, os direitos do nascituro e quais proteções eles garantem ao ser concebido mas que ainda não nasceu. Foi analisado, ainda, o Projeto de Lei 478 de 2007, conhecido como Estatuto do Nascituro, e quais alterações ele pretende realizar na legislação pátria.

PALAVRAS CHAVE: Direitos do nascituro. Personalidade civil. Estatuto do nascituro.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Teorias acerca do início da personalidade. 1.1. Teoria concepcionista. 1.2. Teoria da personalidade condicional. 1.3. Teoria natalista. 2. Personalidade e capacidade jurídica. 3. Direitos do nascituro. Considerações finais.


INTRODUÇÃO

Os direitos do nascituro são um campo de intensa batalha legislativa. Embora o ordenamento jurídico tenha permanecido praticamente inalterado no último século, diversas propostas de lei tramitaram no Congresso Nacional. As de viés mais progressista tentam consolidar a teoria natalista e conferir ao nascituro mera expectativa de direito, de modo que os direitos da pessoa nascida sempre prevaleceriam aos daquele. Já os conservadores fizeram diversas investidas, que se intensificaram na última década, no intuito de equiparar o nascituro ao ser humano já nascido, conferindo-lhe todos os direitos previstos no ordenamento jurídico pátrio.

Contudo, para que as leis possam ser acolhidas pelo Direito brasileiro, não basta sua aprovação nas casas legislativas. Para surtir efeitos, estas devem estar em consonância com os princípios democráticos que regem a Constituição Federal. Neste sentido, se torna imperioso analisar o início da personalidade civil do ser humano, ou seja, o momento em que ele se torna sujeito de direitos e deveres e ganha a proteção do ordenamento jurídico. Somente assim será possível entender com mais clareza a discussão acerca dos direitos do nascituro, ou ainda, se este possui direitos ou não, e quais são eles.

O conceito de nascituro é pacífico na doutrina e pode ser entendido como “aquele que, estando concebido, ainda não nasceu”, conforme conceitua Maria Helena Diniz (1998, p. 334). O jurista Rudolf Von Ihering afirma que em todo o Direito, o que se faz mister considerar, em primeiro lugar é o sujeito, ou seja, as pessoas. Conforme assevera Washington de Barros Monteiro (2012), a palavra “pessoa” começou a ser utilizada na linguagem teatral e significava “máscara”. Por fazer ecoar a voz do ator, a máscara era uma persona. Mais tarde, “pessoa” começou a exprimir a atuação de cada indivíduo e, por fim, passou a expressar o próprio indivíduo que representava os papéis. Ainda segundo Monteiro, a palavra em questão, atualmente, pode ser interpretada em três acepções: vulgar, filosófica e jurídica.

Na acepção vulgar, pessoa é sinônimo de entre humano. […] Na acepção filosófica, pessoa é o ente que realiza seu fim moral e emprega sua atividade de modo consciente. […] Na acepção jurídica, pessoa é o ente físico ou moral, suscetível de direitos e obrigações. Nesse sentido, pessoa é sinônimo de sujeito de direito ou sujeito de relação jurídica. No direito moderno, todo ser humano é pessoa no sentido jurídico. Mas, além dos homens, são também dotadas de personalidade certas organizações ou coletividades, que tendem à consecução de fins comuns (MONTEIRO, 2012, p. 72).

Nesse sentido, é possível vislumbrar que para o Direito há duas espécies de pessoas, as naturais, também denominadas de pessoas físicas ou de existência visível, ou seja, o ser humano com vida, e as pessoas coletivas, também conhecidas por pessoas jurídicas, entes que o Direito também confere personalidade.

Carlos Roberto Gonçalves (2007, p. 70) ressalta que “o conceito de personalidade está umbilicalmente ligado ao de pessoa”, tendo em vista que todo ser humano que nasce com vida, torna-se uma pessoa e, portanto, adquire personalidade. Desta forma, a personalidade é o atributo da pessoa como sujeito de direitos, ou seja, a aptidão de ser sujeito de direitos e obrigações.

Neste sentido, assevera Sérgio Addalla Semião (2000, p. 26), “a personalidade civil constitui matéria da maior relevância, por ser matriz de todos os direitos privados. Para ela converge toda a ordem jurídica ao regular os direitos e as obrigações do homem na vida social”.

Sendo assim, forçoso reconhecer que para que o ser humano seja detentor de direitos e obrigações a personalidade é requisito obrigatório, sendo necessário, portanto, fixar o marco inicial em que o homem começa a existir juridicamente, ou seja, a partir de quando passa a ter personalidade. Neste ponto a doutrina se divide em três teorias, sejam elas: teoria concepcionista, teoria da personalidade condicional e teoria natalista.


1. TEORIAS ACERCA DO INÍCIO DA PERSONALIDADE

1.1 TEORIA CONCEPCIONISTA

Os adeptos da Teoria Concepcionista, dos quais se destacam Teixeira de Freitas, Clóvis Beviláqua e Carlos de Carvalho defendem a ideia de que a personalidade civil começa a partir da concepção, sob o argumento de que, tendo o nascituro direitos previstos pelo ordenamento jurídico, deveria ser considerado uma pessoa, uma vez que só pessoa é sujeito de direitos. Explica Semião:

Falar em direitos do nascituro é reconhecer-lhe qualidade de pessoa, porque, juridicamente, todo titular de direito é pessoa. “Pessoa”, em liguagem jurídica, é exatamente o sujeito ou o titular de qualquer direito. Dito que o nascituro tem direitos, estar-se-á, ipso facto, afirmando que ele é sujeito de direitos e, portanto, pessoa (SEMIÃO, 2000, p. 35).

Segundo os concepcionistas, o ordenamento jurídico brasileiro dá diversas indicações de que a personalidade começa a partir da concepção, porquanto, o Direito Penal pune o aborto no capítulo de crimes contra a vida, protegendo o nascituro como se fosse um ser humano. Alegam ainda, que o nascituro pode ser representado por um curador e que o Direito Processual autoriza a posse em seu nome. O Direito de Família autoriza o reconhecimento de filhos ainda por nascer e o Direito Sucessório prevê a doação de bens para o nascituro (SEMIÃO, 2000).

Deste modo, para os autores acima mencionados, o nascituro é considerado um ser humano desde a concepção, uma vez que o Direito o protege como se já tivesse nascido. Neste sentido, Gonçalves cita a Professora Silmara J. A. Chinelato e Almeida:

Mesmo que ao nascituro fosse reconhecido apenas um status ou um direito, ainda assim seria forçoso reconhecer-lhe a personalidade, porque não há direito ou status sem sujeito, nem há sujeito de direito que tenha completa e integral capacidade jurídica (de direito ou de fato), que se refere sempre a certos e determinados direitos particularmente considerados. Não há meia personalidade ou personalidade parcial. Por isso se afirma que a capacidade é a medida da personalidade. Esta é integral ou não existe (GONÇALVES apud ALMEIDA, 2007, p. 81).

1.2 TEORIA DA PERSONALIDADE CONDICIONAL

Outra escola que merece destaque é a chamada Teoria da Personalidade Condicional, que tem como maiores expoentes Pablo Stolze Gagliano, Eduardo Espínola e Maria Helena Diniz. De acordo com estes doutrinadores, o nascituro possui direitos desde a concepção, porém sob condição suspensiva, ou seja, caso o feto nasça com vida, os direitos do nascituro serão reconhecidos retroativamente à data da concepção.

Neste sentido, Pablo Stolze Gagliano (2012) sustenta que a personalidade condicional do nascituro lhe conferiria apenas os direitos personalíssimos, sem conteúdo patrimonial, como por exemplo o direito à vida ou à gestação saudável. Já os direitos patrimoniais, como a herança e até mesmo celebração de contratos, estariam sujeitos ao nascimento com vida, sob condição suspensiva. Similar é o entendimento de Maria Helena Diniz:

[...] na vida intrauterina, tem o nascituro personalidade jurídica formal, no que atina aos direitos personalíssimos e aos da personalidade, passando a ter a personalidade jurídica material, alcançando os direitos patrimoniais, que permaneciam em estado potencial, somente com o nascimento com vida. Se nascer com vida, adquire personalidade jurídica material, mas se tal não ocorrer, nenhum direito patrimonial terá (DINIZ, 1999, p. 9).

Sendo assim, mesmo que o nascituro não tenha personalidade jurídica, a simples sinalização do ordenamento no sentido de resguardar qualquer direito que seja, implicaria na proteção do direito à vida, porquanto, sem o direito à vida o nascituro não poderá usufruir de nenhum outro direito (GAGLIANO, 2012).

1.3 TEORIA NATALISTA

Não obstante a filiação de grandes juristas às teorias acima mencionadas, a legislação e doutrina majoritária abraçam a Teoria Natalista. O entendimento de que a personalidade civil se inicia apenas a partir do nascimento com vida, conforme expressamente prevê o artigo 2º do Código Civil Brasileiro é defendido por nomes como Carlos Roberto Gonçalves, Caio Mário da Silva Pereira, Pontes de Miranda, Sílvio Rodrigues, Sérgio Abdalla Semião, entre outros.

De acordo com a teoria natalista o nascituro é mera expectativa de pessoa, uma vez que tem mera expectativa de direito, que só será confirmada com o nascimento com vida. Sustentam ainda, que a legislação elencou taxativamente quais direitos estariam assegurados ao nascituro, o que fortalece a ideia de que o feto não pode ser considerado uma pessoa. Neste sentido, afirma Semião (2000, p. 41) “Fosse ele pessoa, todos os direitos subjetivos lhe seriam conferidos automaticamente, sem necessidade da lei decliná-los um a um.”

De acordo com Sílvio Rodrigues, a legislação não concede personalidade ao nascituro até o seu nascimento com vida. Seus direitos, porém, são resguardados, com base no fato de que provavelmente ele nascerá com vida, uma vez que a maioria das gestações resultam no nascimento de criança viva. Segundo o autor, o ordenamento jurídico quis preservar os interesses futuros do nascituro, resguardando direitos que provavelmente serão seus. No mesmo sentido, assevera Caio Mário da Silva Pereira:

O nascituro não é ainda uma pessoa, não é um ser dotado de personalidade jurídica. Os direitos que se lhe reconhecem permanecem em estado potencial. Se nasce e adquire personalidade, integram-se na sua trilogia essencial, sujeito, objeto e relação jurídica; mas, se se frustra, o direito não chega a constituir-se, e não há falar, portanto, em reconhecimento de personalidade ao nascituro, nem se admitir que antes do nascimento já ele é sujeito de direito (PEREIRA, 2002, p. 144-145).

Importante ressaltar que o nascimento ocorre quando a criança é separada do ventre materno, sendo irrelevante se o parto foi natural ou com intervenção cirúrgica. Apesar de Monteiro (2012) entender que a criança não terá nascido enquanto estiver ligada pelo cordão umbilical, a doutrina majoritária aponta no sentido de que a ruptura do cordão é irrelevante, bastando que haja a separação do corpo da mãe e do filho, de forma a constituírem dois corpos com vida orgânica própria. Porém, todos os adeptos da teoria natalista concordam que antes do nascimento o feto não pode ser considerado uma pessoa, detentora de direitos e deveres como os demais cidadãos, uma vez que é parte das vísceras maternas, sendo dependente de sua genitora para que sobreviva. Neste sentido, corrobora o entendimento de Semião:

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Antes do parto, o feto não é pessoa, é uma porção da sua mãe, uma parte das vísceras desta. […] Antes do nascimento o nascituro não tem vida própria e independente, pois é alimentado pelo sangue materno. Até operar-se o nascimento, o nascituro está ligado ao corpo materno, em razão mesmo da sua existência, inteiramente dependente, alimentado por intermédio da placenta, cuja vida só tem existência intrauterinamente (SEMIÃO, 2000, p. 152).

Entretanto, para que se considere que a criança nasceu com vida, é imprescindível que tenha respirado. Carlos Roberto Gonçalves explica “Para se dizer que nasceu com vida, todavia, é necessário que haja respirado. Se respirou, viveu, ainda que tenha perecido em seguida. Lavram-se, neste caso, dois assentos, o de nascimento e o de óbito” (GONÇALVES, 2007, p. 77).

É de extrema importância para o Direito a constatação de se a criança nasceu com vida ou não, sobretudo no campo sucessório. É possível constatar se chegou ar aos pulmões do recém-nascido, tradicionalmente, com a realização do exame denominado docimasia hidrostática de Galeno, que consiste na submersão dos pulmões em água. O que teve contato com o ar submergirá enquanto o que nunca foi inflado afundará.

O exame é utilizado, por exemplo, numa situação em que um homem engravida uma mulher e morre antes do nascimento de seu filho. Se a criança chegou a respirar logo após a separação do corpo da mãe, mesmo que por um segundo, terá vivido, recebido a herança de seu pai e transmitido para sua genitora. Entretanto, se restar comprovado que o nascituro sequer chegou a respirar, ou seja, é natimorto, o patrimônio do homem será transmitido aos seus outros herdeiros, excluindo a mãe do natimorto.

Deste modo, a realização dos exames que comprovem o contato do ar atmosférico com os pulmões do infante é fundamental em situações como a descrita acima, porquanto, a partir deste momento que se inicia a personalidade jurídica do ser humano e, consequentemente, o gozo de seus direitos e garantias fundamentais que antes eram resguardados apenas como hipótese, mera expectativa.

Vale pontuar que, embora a prática do aborto esteja tipificada no Código Penal na parte dos crimes contra a pessoa, os natalistas entendem que a proteção que o Código fornece ao nascituro não é pelo fato de considerá-lo pessoa, porquanto, ao prever as hipóteses de aborto necessário e moral o sistema jurídico-penal evidencia expressamente a desigualdade de tratamento entre o nascituro e os direitos da pessoa já nascida. Neste sentido, assevera Semião:

“Dessarte, para os natalistas, o aborto para salvar a mãe ou para não pôr em perigo a sua saúde, demonstra que não há um conflito entre bens iguais, ou seja, vida da pessoa por nascer contra a vida da pessoa já nascida, que no exemplo, é a vida da gestante.” (SEMIÃO, 2000. p.45).

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Sobre o autor
Guilherme Henrique Ferreira Martins

Graduado na Universidade Estadual de Montes Claros/MG.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Guilherme Henrique Ferreira. O início da personalidade civil e os direitos do nascituro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4936, 5 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53671. Acesso em: 16 abr. 2024.

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