3. Judicialização da vida
Por primeiro, infere-se que quem mais obsta o regular andamento da máquina judiciária, especialmente da estadual, é a própria Administração Pública. Mas, para além disso, tem-se, entre nós, o fenômeno da judicialização da vida.
Claro que, originariamente, muitos temas não deveriam ser judicializados. Como bem menciona Rodolfo de Camargo Mancuso, o acesso à Justiça não pode receber uma leitura exacerbada, ufanista e irrealista: “A notória complexidade da vida contemporânea [...] não permite o pronto e eficiente atendimento aos diversos reclamos da população, levando a um preocupante contexto: (a) muitos históricos de danos temidos ou sofridos não são submetidos à instância administrativa, até porque nem todos eles comportam essa via, por peculiaridade da matéria ou qualidade da pessoa; (b) em muitos casos a solução administrativa é recusada ou então ofertada em modo insuficiente, gerando bolsões de insatisfação ao interno da coletividade; (c) o demandismo exacerbado está ainda longe de ser substituído ou ao menos atenuado por uma cultura da pacificação, ainda incipiente dentre nós, não tendo atingido o desejável patamar em que os sujeitos concernentes a uma controvérsia se predisponham a resolver entre si suas divergências, ou ainda com a intercessão de um agente facilitador; (d) a (equivocada), ou ao menos exagerada visualização do acesso à Justiça como expressão de cidadania, quando, antes e superiormente, a maior manifestação de civilidade e urbanidade se manifesta na busca pela resolução consensual dos conflitos, ao menos num primeiro momento” [22].
E continua: “Todos esses fatores – que interagem – têm levado a que, de modo geral, o conteúdo do art. 5º, XXXV, da CF/1988...acabasse merecendo uma leitura exacerbada (que em outra sede chamamos ufanista e irrealista), chegando à chamada judicialização do cotidiano, numa açodada ligação direta entre a controvérsia e o Fórum, gerando o afluxo de lides ainda em estágio inicial, longe do ponto de maturação, projetando deletérios efeitos: acirramento da contenciosidade social; retardamento dos ritos processuais (sobretudo na fase probatória); crescente crise numérica de processos; desestímulo à solução consensual; protraimento do desfecho da causa e um ponto futuro indefinido” [23].
Contudo, é sabida a dificuldade de se obter resolução de questões na esfera administrativa e/ou amigável, de modo que ao cidadão não resta outra alternativa, senão ajuizar uma demanda. Além disso, Heitor Vitor Mendonça Sica defende uma questão muito importante, no sentido de que a omissão das agências reguladoras é um dos fatores que levam à litigiosidade excessiva: “A meu ver é emblemático o esforço das autoridades judiciárias em instalar Juizados Especiais Cíveis nos aeroportos, antevendo a multiplicação de violações perpetradas pelas companhias aéreas aos direitos dos passageiros que circularão pelo Brasil durante a Copa do Mundo de Futebol [...]. Não seria mais razoável que a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) aplicasse multa a cada vôo atrasado ou cancelado e obrigasse as companhias aéreas a provar o ressarcimento dos danos causados aos consumidores (sob pena de nova multa)? Não seria mais producente que o mesmo órgão regulador avaliasse periodicamente o percentual de bagagens extraviadas e multasse as companhias que não melhorassem esses indicadores e que não ressarcissem todos os consumidores lesados em tal situação? Em vez disso, gasta-se para solucionar pontualmente o problema apenas do cidadão que se dispõe a ir ao Poder Judiciário, sem maior atenção à solução de falhas na execução do serviço de transporte aéreo”. [24]
Nota-se claramente a cultura entre nós difundida: a de lidar com a consequência, não com a causa. Como leciona Rodolfo de Camargo Mancuso, “A insistência no vezo de lidar com a consequência – a demanda exacerbada – sem diagnosticar e atacar a causa, levou a que se trocasse um problema por outro: a litigiosidade contida, fixando ‘substituída’ pelo judiciarismo exacerbado”[25].
Mas grande parte dos cidadãos, com frequência, acaba não tendo outra alternativa, senão socorrer-se do Judiciário, o que gera custos altíssimos para a sociedade (custo judicial). Neste ponto, não se deveria estancar o número de demandas propostas, mas, em verdade, deveria ser adotada uma estratégia que permitisse que a sociedade fosse ressarcida por aqueles que insistentemente descumprem as normas legais.
Neste aspecto, não ficam de fora os entes públicos no que tange à prestação de serviços de saúde e educação, destacando-se o fenômeno da judicialização da política, que consiste no fato de matérias inicialmente afeitas às instâncias político-administrativas passarem a ser dirimidas em sede judicial, destacando-se a judicialização de direitos fundamentais sociais, tais como a moradia, a saúde e a educação (art. 6º, caput, Constituição Federal), que se dá majoritariamente por meio da propositura de demandas individuais em face dos entes federados, em litisconsórcio passivo ou não.
Contudo, não se pode conceber a ideia da judicialização da política como algo necessariamente ruim, vez que em muitas das vezes ela se faz necessária, bem como também pode produzir bons frutos, inclusive melhores que os oriundos das instâncias originárias. Ainda, os direitos fundamentais não podem ser concebidos como meras normas programáticas.
Portanto, não se deve obstar o acesso à Justiça, mas sim qualificá-lo, porquanto se mostra inadmissível que a coletividade pague pelo uso indevido de um serviço público, quer na forma de litigante, quer como um simples cidadão em sua participação na arrecadação tributária.
Também não se pode esquecer que, diante de uma situação de grande desigualdade entre os litigantes, revela-se importante utilizar a via jurisdicional, "a fim de que o juiz possa protagonizar a proteção dos interesses socialmente relevantes garantindo a isonomia entre as partes” [26].
Por fim, uma importante vantagem de se utilizar a via jurisdicional, como ensina Fernanda Tartuce Silva, é a possibilidade de coagir infratores ao cumprimento dos comandos emanados pelos órgãos estatais.
Em continuação, quanto à judicialização da política, tem-se como críticas mais comuns a este fenômeno, especificamente na seara das políticas públicas, que os magistrados não foram eleitos pelo povo (se as políticas públicas são implementadas com recursos públicos que, por sua vez, advém em sua maior parte da arrecadação tributária, é o povo que deveria decidir no que serão aplicados, bem como quem o representará na gestão governamental), que o Poder Judiciário não é aparelhado para decidir questões deste tipo (em razão de sua estrutura monocrática e engessada, é destinado originariamente para dirimir conflitos individuais, em lides bilaterais e processos tradicionais, numa seara que envolve, nitidamente, justiça retributiva, não para resolver problemas de justiça distributiva), que este controle jurisdicional viola o princípio da separação dos Poderes (art. 2º, Constituição Federal), porquanto os Poderes devem ser independentes, que os magistrados não possuem técnica adequada para tratar com este tipo de demanda, principalmente por não compreenderem questões relacionadas ao orçamento público e suas limitações, dentre outros argumentos.
Especificamente quanto a isso, ressalta Maria Tereza Sadek que “são frequentes as críticas segundo as quais vive-se (sic) me um ‘manicômio jurídico’; a magistratura age ‘ideológica e irresponsavelmente’, como se os recursos públicos fossem inesgotáveis, ou alheia às consequências de suas decisões na economia ou na máquina administrativa; juízes julgam-se os ‘verdadeiros representantes do interesse do povo’”.[27]
Por outro lado, entende-se que o Judiciário pode ser chamado para dirimir conflitos relacionados a políticas públicas desde que as outras esferas de Poder (Executivo e Legislativo) se mostrem incapazes ou lenientes na concretização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, Constituição Federal), situação na qual se entende que cabível a intervenção judicial, lembrando-se sempre que os Poderes são apenas o resultado da mera racionalização do Poder Estatal, que é uno por natureza, além de que, para além de independentes, devem ser harmônicos. Ainda, o Poder Judiciário, como locus para discussão sobre política pública, pode ser bem utilizado se houver vontade e mentalidade adequada para tanto.
Neste ponto, o magistrado precisa modificar seu comportamento durante o curso processual, bem como algumas adequações técnico-processuais se fazem necessárias. Por exemplo, o juiz precisa mostrar-se mais mediador, estrategista e consequente. Em relação ao processo, sua estrutura não pode ser concebida da mesma forma quando se lida com conflitos bilaterais, devendo haver a flexibilização de alguns institutos jurídicos.
Neste diapasão, costuma-se atribuir a alta e constante litigância no país à judicialização excessiva, judicialização da vida, corolário de uma visão ufanista e irrealista do princípio/direito/garantia do acesso à Justiça.
Entretanto, como supramencionado, o fator preponderante para o esgotamento da máquina judiciária é a litigância habitual, de cunho compulsório, primeiramente por parte da Administração Pública, em todas suas esferas (federal, estadual, distrital e municipal). Em segundo lugar viriam as grandes empresas, também como litigantes habituais, notadamente instituições bancárias e empresas de telefonia.
Neste ponto, infere-se que a falta de agilidade da máquina judiciária não é prejudicial para todos. Pelo contrário, essa deficiência é aproveitada por grandes grupos empresariais e também pelo Estado, que constituem a maior parcela da “clientela” do Judiciário. Maria Tereza Sadek resume de modo bem perspicaz a situação ora retratada: “[...], pode-se sustentar que o sistema judicial brasileiro nos moldes atuais estimula um paradoxo: demandas de menos e demandas de mais. Ou seja, de um lado, expressivos setores da população acham-se marginalizados dos serviços judiciais, utilizando-se, cada vez mais, da justiça paralela, governada pela lei do mais forte, certamente menos justa e com altíssima potencialidade de desfazer todo o tecido social. De outro, há os que usufruem em excesso da justiça oficial, gozando das vantagens de uma máquina lenta, atravancada e burocratizada” [28].
Como conclui Marcos Carnevale, o que realmente congestiona o Judiciário brasileiro “não é o alto volume de cidadãos litigantes, [...], mas o grande volume de ações promovidas pelo Poder Executivo na área fiscal, geralmente tendo no polo passivo os cidadãos, ou as empresas [...]”. E continua, dizendo que os principais ramos econômicos (bancos e telefonia) usam, de modo agressivo, o Poder Judiciário, “sendo responsáveis por milhares de processos, como litigantes no polo ativo dos conflitos, contribuindo para o congestionamento do Judiciário” [29].
Sob outro ângulo, o acesso à Justiça deve ser entendido de forma mais ampla, de modo que os procedimentos sejam adequados à solução dos litígios. Por exemplo, o acesso à Justiça deveria ser, efetivamente, a última providência a ser tomada pelos cidadãos (ultima ratio), contexto no qual se deveria prestigiar os métodos alternativos de resolução de conflitos, tais como a conciliação e a mediação. Conforme explana Ada Pellegrini Grinover, “[...] quanto à conciliação prévia extrajudicial, sua natureza de atividade posta a serviço da autocomposição dos litigantes; sua função de recuperação de controvérsias, muitas das quais não seriam levadas à decisão do Judiciário; seu efeito de racionalização da distribuição da justiça, com a consequente desobstrução dos tribunais; o estímulo às vias participativas, à informação e à tomada de consciência. E, sobretudo, seu escopo de maior pacificação social, em comparação com a decisão autoritativa do juiz, conduzindo à composição da inteira lide sociológica, e não apenas à solução da parcela de lide levada à Justiça convencional".{C}[30]
Neste sentido, a Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça menciona, dentre outros, que todos os jurisdicionados têm direito à solução dos conflitos de interesses pelos meios mais adequados a sua natureza e peculiaridade, inclusive mecanismos alternativos de solução de conflitos como a mediação e a conciliação, bem como a obrigatoriedade de oferecimento destas alternativas, tudo isso para que se possa substituir a cultura da sentença para cultura da pacificação, mediante o estabelecimento de verdadeiros filtros de litigiosidade, por meio do qual apenas parcela das lides será dirimida pelos magistrados. Com isso, haveria redução da carga de serviços do Judiciário, engendrando maior celeridade da prestação jurisdicional. Como corolário, teria-se, eventualmente, a recuperação do prestígio e respeito deste Poder.
A este respeito, leciona Kazuo Watanabe que “A instituição de semelhante política pública pelo CNJ, além de criar um importante filtro da litigiosidade, estimulará em nível nacional o nascimento de uma nova cultura, não somente entre os profissionais do direito, como também entre os próprios jurisdicionados, de solução negociada e amigável dos conflitos. Essa cultura terá inúmeros reflexos imediatos em termos de maior coesão social e determinará, com toda a certeza, mudanças importantes na organização da sociedade, influindo decisivamente na mudança do conteúdo e orientação do ensino universitário na área de Direito, que passará a formar profissionais com visão mais ampla e social, com plena consciência de que lhes cabe atuar muito mais na orientação, pacificação, prevenção e composição amigável, do que na solução contenciosa de conflitos de interesses”.[31]