Resumo: Crises de amplitude e profundidade como a vivida pelo Brasil ameaçam a estabilidade das instituições. Reformas da Constituição Federal de 1988, imprescindíveis para a solução da crise, encontram resistência nas limitações impostas pelas “cláusulas pétreas” da Carta atual, cuja abrangência tende a ser ampliada para blindar outros direitos e garantias nela explícitos e implícitos. O embate entre as correntes políticas e doutrinárias em torno da questão faz prever que a constitucionalidade das reformas venha ser questionada. Seria o processo de dupla revisão constitucional válido para que o Congresso Nacional, ainda que dotado de poder constituinte derivado, possa evitar que a decisão final caia nas poucas mãos dos ministros do Supremo Tribunal Federal?
Palavras-chave:Crise brasileira. Reformas constitucionais. “Cláusulas pétreas”. Dupla revisão constitucional.
1. Introdução
Crises da amplitude e profundidade como a vivida pelo Brasil – política, social, econômica, ética e moral – ameaçam a estabilidade das instituições, por sua incapacidade para evitá-las ou até terem sido responsáveis por elas. No epicentro do tornado institucional está, é claro, a Constituição Federal.
Após o impeachment da presidente Dilma Roussef, o governo Temer assumiu como indispensáveis um elenco mínimo de reformas, tão essenciais quanto polêmicas: fiscal (limite vintenário para as despesas públicas), previdência social e trabalhista. A tarefa já seria descomunal para um governo de transição, com escassos dois anos de mandato pela frente e uma base parlamentar etérea; mas, chega às raias do inatingível, quando as oposições juntam vozes respeitáveis do mundo jurídico e sociológico ao seu arsenal de artimanhas e falácias politiqueiras.
Refiro-me ao respeito referencial que ponderáveis correntes doutrinárias dedicam ao texto da Constituição, incensada como repositório de direitos ditos fundamentais – e, portanto, intocáveis –, conquistas dos cidadãos que estariam ameaçadas pelas reformas pretendidas. Segundo essa frente político-acadêmica de oposição ao propósito reformista, ditas reformas ameaçam colidir com o disposto no artigo 60, §4º, da Constituição Federal de 1988 (CF) especialmente no que diz respeito aos direitos e garantias individuais. Aferram-se à proibição de qualquer reforma constitucional que as possa alterar, com o que parecem querer deixar à sociedade, como únicas alternativas, à convocação de uma nova Assembleia Constituinte ou a incógnita de uma revolução. E não lhes importa que o Governo diga e repita que não pretende abolir qualquer princípio ou direito petreamente clausulado pela CF. Sua ojeriza às reformas é também pétrea.
Diante de tal confronto, cujas consequências se afiguram de essencial importância para a superação da crise, este artigo propõe-se a refletir sobre a questão, a partir – mas não só – das visões clássicas de Ferdinand Lassale (1825-1864) e Konrad Hesse (1919 – 2005) a respeito da essência das constituições.
De início, tomo uma ideia comum aos dois: a afirmação da existência de uma constituição real, diferenciando-a da constituição escrita ou jurídica. Não obstante a sintonia pontual, suas visões sobre a função de uma e outra divergem profundamente. Ferdinand Lassale chega a taxar a última de um mero “pedaço de papel” (LASSALE, 2001, p. 24), sujeito à prevalência daquela. Para ele, as questões constitucionais não são de direito, pois a verdadeira constituição de um país tem por base somente os fatores reais e efetivos do poder ali vigentes – militar, social, econômico e intelectual (consciência e cultura gerais). Isso parece radical demais, mas ele tem razão quando afirma que o “pedaço de papel” só pode ser considerado bom e duradouro quando corresponder à constituição real, dita verdadeira. Assim, é de todo conveniente considerar o seu alerta de que, uma vez perdida tal correspondência,
“[...] irrompe inevitavelmente um conflito que é impossível de evitar e no qual, mais dia menos dia, a constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá necessariamente, perante a constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país.” (LASSALE, 2001, p. 33)
No entanto, para Konrad Hesse, o valor da constituição não se reduz ao papel em que está escrita, nem é “impotente para dominar, efetivamente, a distribuição de poder”, como teria ensinado Georg Jellinek e vinha sendo apregoado por “um naturalismo e sociologismo que se pretende cético” (HESSE, 1991, p. 25). Aqui, Hesse me parece referir-se não somente às ideias de Lassale, mas também às dos seguidores de Karl Marx (lembrando que aquele deste se distanciou, após terem estado juntos na fundação do Partido Social Democrata). De fato, o mesmo ceticismo está presente nos marxistas, em geral, fixados na sua teoria da luta de classes e na correlação de forças como fatores determinantes do arcabouço jurídico do país.
Entretanto, Hesse concorda que a constituição jurídica não tem existência autônoma em face da realidade histórica, não podendo ser separada da realidade concreta de seu tempo, sob pena da perda de sua pretensão de eficácia, o que seria fatal, uma vez que a essência da constituição reside na sua vigência. E busca apoio em um ilustre pensador, contemporâneo de Lassale:
“Nenhuma Constituição política completamente fundada num plano racionalmente elaborado pode lograr êxito; somente aquela Constituição que resulta da luta do acaso poderoso com a racionalidade que se lhe opõe consegue desenvolver-se. [...] Toda Constituição, ainda que considerada como simples construção teórica, deve encontrar um germe material de sua força vital no tempo, nas circunstâncias, no caráter nacional, necessitando apenas de desenvolvimento. Afigura-se altamente improvável pretender concebê-la com base, exclusivamente, nos princípios da razão e a experiência.” Wilhem Humboldt (HESSE, 1991, p. 16-17)
Hesse aponta para algo fundamental que não teria sido percebido por Lassale: a Constituição significa mais do que o simples reflexo dos fatores reais e efetivos do poder. Na verdade – e aí reside o seu valor –, “ela própria converte-se em força ativa que influi e determina a realidade política e social” (HESSE, 1991, p. 24), não se constituindo somente na expressão de um ser, mas também de um dever ser:
“[...] a Constituição jurídica não configura apenas a expressão de uma dada realidade. Graças ao elemento normativo, ela ordena e conforma a realidade política e social. As possibilidades, mas também os limites da força normativa da Constituição resultam da correlação entre ser (Sein) e dever ser (Sollen).” (HESSE, 1991, p. 24)
A correlação identificada por Hesse remete à concepção de Niklas Luhmann (em sua fase “autopoiética”) do direito como um subsistema do sistema social, no seio do qual interage com o subsistema político, na modalidade de “double interchanges”. Num primeiro intercâmbio, o político fornece ao jurídico premissas decisionais na forma de legislação, enquanto recebe deste a realização do poder político; numa segunda troca, o direito fornece ao político premissas para o uso da força física, na forma de decisões coletivamente vinculantes, deste recebendo a possibilidade de coerção para fazê-las cumprir. (NICOLA, 1994, p. 121)
Então, o que é melhor, nas circunstâncias atuais do Brasil? Aferrar-se, como pretendem muitos dos que rejeitam as reformas, à imutabilidade radical das cláusulas pétreas da CF, entendendo proibida até mesmo a mudança das formas de realização dos direitos e garantias individuais reguladas pela legislação infraconstitucional (e.g. CLT, no caso dos direitos trabalhistas)? E, além disso, alargando a proteção a outros direitos e garantias “que se espalham pelo texto constitucional e outros que decorrem de implicitude inequívoca” (Leite, 2016)?
Parece óbvio que tal “conservadorismo do inepto” equivale a:
· deixar que evidentes inadequações da CF continuem inviabilizando o desenvolvimento do País (o que é o sentido da CF);
· permitir que a frustração pela não realização dos direitos “garantidos” continue a gerar desencanto e revolta contra a ordem constituída (poder social);
· manter intocados os empecilhos normativos que inibem o crescimento da economia (poder econômico);
· conservar um sistema político deturpado e desmoralizado, que desestimula a participação de homens de bem e vai tornando a vida pública um campo cativo de uma minoria que nela busca só o interesse próprio (poder político);
· assistir, inertes, a descrença na política e a desmoralização dos políticos levar a alguns dizerem que “têm saudade” do regime militar (poder militar).
Respostas realistas a essas questões certamente conduzirão a uma reforma capaz de recuperar a perdida sintonia da CF com a constituição real (aliás, é de se perguntar se tal sintonia teria ocorrido quando da sua instituição, como examinaremos adiante). Então, uma vez em vigor o regime da democracia representativa, é o poder legislativo o mecanismo mais adequado para proceder às modificações do arcabouço jurídico, inclusive na constituição, mantendo-a atualizada e sintonizada com o consenso geral presumido, legitimado pelo processo eleitoral.
2. A força normativa da Constituição Federal de 1988
Saltam aos meus olhos, tanto o bom-senso da opinião de Hesse, quanto o radicalismo da tese de Lassale. Portanto, fico com a primeira, a fim de examinar os equívocos que minam a força normativa da CF, bem como as circunstâncias que a eles conduziram.
O conteúdo de “dever ser” da Constituição não se impõe, caso suas determinações não sejam efetivadas. É necessário que exista a disposição de orientar a conduta individual segundo a ordem constitucional, especialmente de parte dos principais responsáveis por tal ordem, sentimento que Hesse denominou “vontade de Constituição”. Esta, ensina ele, dependeria da existência de três compreensões: a) a da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que impeça o Estado de agir arbitrariamente; b) a de que essa ordem constitucional, mais do que legitimada pelos fatos, tem que estar em constante processo de legitimação; e c) a de que a mesma ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana (HESSE, 1991, p. 19-20). Em outros termos, o que ele chama de “vontade de Constituição” se expressaria no respeito espontâneo às normas constitucionais, ainda que à custa de sacrifícios dos interesses particulares.
Tais pressupostos da força normativa coincidem com as fragilidades que a CF viria a apresentar, uma vez que ao conteúdo desta faltam: i) uma maior correspondência à natureza singular do presente, de forma a ser respeitada e defendida como uma ordem adequada e justa; ii) o foco em princípios fundamentais, uma vez que a constitucionalização de interesses momentâneos ou particulares induz uma constante revisão constitucional, com a desvalorização da força normativa da Constituição; iii) a incorporação “meticulosamente ponderada” dos deveres correspondentes aos direitos. Poderia a luva ajustar-se melhor à nossa Carta?
Muitas das vozes que hoje bradam contra supostos ataques aos direitos e garantias individuais “pétreos” são as mesmas que, alhures e vez por outra, questionaram a legitimidade da CF/88 inteira, afirmando que ela não passou de uma reforma total da ordem constitucional até então vigente, ditada pela CF de 1968. E alinham argumentos: 1) a Assembleia Nacional Constituinte foi convocada pela Emenda Constitucional nº 26, de 1985, por proposta de José Sarney, que chegou à Presidência por substituição do presidente eleito, Tancredo Neves, antes mesmo que este tivesse começado a governar; 2) a eleição de ambos, por voto indireto dos congressistas, teria sido ilegítima, num resquício autoritário do regime militar; 3) vencida a opção por uma Constituinte exclusiva, com membros escolhidos individualmente e com mandato exclusivo, a tarefa de instituir uma nova ordem foi confiada a um Congresso eleito com base no sistema partidário criado pela ditadura; e 4) a volta à democracia se deu de forma gradual, isto é, sem uma ruptura institucional que ensejasse um inequívoco mandato originário ao Congresso que proclamou a CF. De fato, como bem lembra Manoel Ferreira Filho, “a ‘Constituinte’ de 1987/1988 não era senão o Congresso Nacional - inclusive com os senadores eleitos em 1982 – investido de poderes especiais de reforma por força da Emenda n.º 26/85” (FERREIRA FILHO, 1995, p. 16). Ela, inclusive, suprimiu as "cláusulas pétreas" consagradas na Constituição de 1967, na Emenda nº 1/69, art. 47, § 1.º. E daí o ilustre doutrinador destaca dois pontos:
“O primeiro é que as "cláusulas pétreas" em vigor vieram de uma reforma constitucional, tendo sido obra do poder constituinte derivado. Ora, o que poder derivado estabelece, poder derivado pode mudar. O segundo corrobora o primeiro. A Emenda nl! 26/85 permitiu uma reforma constitucional sem a limitação das "cláusulas pétreas" então vigentes que proibiam a abolição da Federação e da República. E foi por isso que pôde surgir a proposta monarquista que, inclusive, redundou no plebiscito previsto no art. 2.º do ADCT.” (FERREIRA FILHO, 1995, p. 16)
Nem somados todos esses argumentos poderá alguém desconsiderar a força legitimadora da vigência da CF por período tão longo – quase trinta anos –, sem contestações digna de nota. Mais condizente é a caracterização que Gomes Canotilho faz do processo que conduziu à nossa atual Carta como uma “transição por transação” (Canotilho, 2000, p. 1036).
3. A rigidez constitucional e as cláusulas pétreas
Thomas Jefferson: ‘uma geração de homens tem o direito de vincular outra’?
J.J. Gomes Canotilho: “nenhuma constituição pode conter a vida ou parar o vento com as mãos. Nenhuma lei constitucional evita o ruir dos muros dos processos históricos, e, consequentemente, as alterações constitucionais, se ela já perdeu a sua força normativa.”
O conteúdo das manifestações acima – largamente conhecidas e frequentemente citadas - permanece atual, pois parece ir de encontro ao senso comum de justiça atribuir a uma geração o poder de retirar das seguintes o direito de decidir sobre o que mais lhes convém, à luz da realidade mutante (o que já foi identificado como um “paradoxo da democracia”). Nas palavras do mesmo Canotilho:
“será defensável vincular gerações futuras a ideias de legitimação e a projectos políticos que, provavelmente, já não serão os mesmos que pautaram o legislador constituinte? [...] Nenhuma lei constitucional evita o ruir dos muros dos processos históricos, e, consequentemente, as alterações constitucionais, se ela já perdeu a sua força normativa.” (CANOTILHO, 2000, p. 1031)
A figura da ruína dos muros dos processos históricos remete à questão do que fazer com a casa já inabitável, quando uma reforma se torna impossível. A demolição não se faz indispensável para dar lugar a uma nova construção que satisfaça seus moradores?
Ressalve-se que, como grande parte dos constitucionalistas, Hesse considera fundamental para a eficácia da norma o controle da tendência para frequentes revisões, uma vez que “a estabilidade constitui condição fundamental da eficácia da Constituição”; mas, alinha-se com Canotilho (citação acima), ao alertar que “a finalidade (Telos) e a nítida vontade normativa não devem ser sacrificadas; se o sentido já não pode ser realizado, impõe-se a revisão constitucional” (HESSE, 1991, p. 22-230. Na mesma linha, o professor Ingo Sarlet assevera que “permanência, estabilidade e mudança [da constituição] não são incompatíveis, mas, pelo contrário, constituem exigências que se retroalimentam, desde que guardado o necessário equilíbrio” (SARLET, 2016, p. 371).
Ora, as reformas institucionais, há tanto tempo reclamadas, e a vontade do Governo atual em fazê-las decorrem da percepção da maioria da sociedade de que o sentido da CF – qual seja o desenvolvimento harmônico do País – sofreu danos que exigem reparações. Para tanto, muitas delas terão que envolver as já referidas cláusulas pétreas, especialmente aquela atinente aos direitos e garantias individuais (em destaque, abaixo):
“Artigo 60 [...]
§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.”
Até onde será incontornável essa pedra, plantada no caminho das reformas propostas?