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Conciliando o princípio da obrigatoriedade com a eficiência da persecução penal

Agenda 29/12/2016 às 17:57

Artigo sobre a conjugação do princípio da obrigatoriedade com a eficiência da persecução penal, em face das dificuldades enfrentadas pelos órgãos persecutores diante da verdadeira "pororoca" de notícias crime.

 

O princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública designa o dever legal de o Ministério Público propor a ação penal. De acordo com Jardim[1] "é uma decorrência do princípio da legalidade que, numa perspectiva mais ampla, informa a atuação dos órgãos públicos no chamado Estado de Direito". Há os que entendem a obrigatoriedade da persecução penal como princípio; os que a compreendem como regra derivativa de outros princípios, como os da impessoalidade e eficiência; e os que a veem positivada no Código de Processo Penal. Todavia, num aspecto todos concordam: se por um lado não é possível tratá-la como um valor absoluto, por outro não se pode dar total liberdade aos operadores do Direito para escolherem ao seu talante o que será perseguido e o que será arquivado. Não é possível tratá-la como valor absoluto por integral falta de aderência à realidade brasileira, senão vejamos: de acordo com informações colhidas nos sítios eletrônicos dos respectivos órgãos, a Secretaria de Segurança Pública do RJ - SSP/RJ recebe cerca de 700 mil notícias criminais anualmente. Ao ano, a Polícia Federal - PF é alvo, em média, de 4 mil notícias de fraudes relacionadas ao Enem; notícias de moeda falsa que alcançam 7 mil notas todos os anos; e cerca de 350 mil cheques clonados da Caixa Econômica Federal - CEF. Por isso, em setembro de 2016 a corporação tinha sob sua responsabilidade a condução de 114 mil inquéritos. Fora das hostes policiais, a demanda exacerbada também chama a atenção como um nervo exposto: das cerca de 6 mil cidades brasileiras, em 2015 a Controladoria-Geral da União - CGU investigou 120, sendo que 110 apresentaram irregularidades, o que equivale a 91%. Não é por outra razão que o Brasil ultrapassou a casa dos 100 milhões de processos judiciais em tramitação  e, entre outros reflexos negativos, esse volume processual acaba por fazer nossos colegiados julgarem individualmente. Diante desses números, não há como escapar da discricionariedade das autoridades competentes, porque é de comum sabença que a seletividade ocorre em toda a cadeia da persecução penal. Entretanto, isso não deveria se constituir elemento de salvaguarda para que cada autoridade se circunscreva, exclusivamente, à casinhola dos seus entendimentos, porque a diferença entre o sentir do delegado, do promotor e do juiz, às vezes causa a inviabilidade da ação penal, uma vez que cada um tem sua visão sobre o que levar adiante e a melhor forma de encaminhamento. Nesse cenário, o que a persecução penal necessita, até para não se ver vítima da hipnose destrutiva de eventuais vaidades corporativas, é da transparência de critérios objetivos, como ocorre com as execuções fiscais promovidas pela Procuradoria da Fazenda Nacional, que por intermédio da Portaria nº 75[2], de 22/3/2012, aumentou para R$ 20 mil o limite mínimo para ajuizar execuções fiscais em face de débitos com o fisco federal. Considerando que até aquela data o limite era de R$ 10 mil, a mudança ocorreu a partir de estudos dirigidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, segundo os quais, em ações de execução de dívidas menores do que R$ 21,7 mil, a União dificilmente consegue recuperar valor igual ou superior ao custo do processo judicial. É o uso do Direito Econômico, pouco difundido no Brasil, mas corriqueiro nos EUA, calculando-se o valor da apuração para avaliar sua viabilidade.   Certamente não se está aqui defendendo que simplesmente se fixe um critério de valor econômico ou financeiro para nortear o arquivamento da ação penal, pois além de o problema ser muito mais complexo e envolver aspectos intangíveis, o uso da insignificância no Brasil é caótico. Tanto é assim que enquanto a Fazenda Nacional desdenha cifras inferiores a R$ 20 mil, na esfera penal os Tribunais pátrios trabalham com a insignificância até R$ 200 e o pequeno valor até um salário mínimo. Nessa quadra, o princípio da insignificância é um dos mais subjetivos do ordenamento, porque um tapa no rosto pode ser nada para o Estado, mas tudo para o ofendido, por isso os parâmetros de valor tendem a ser interessantes apenas quando não envolvem violência.

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Alguns defendem que uma forma de colaborar com a harmonização do  princípio da obrigatoriedade com a eficiência da persecução criminal seria descriminalizando condutas, aderindo com mais energia ao Direito Penal mínimo e valorizando a seara penal como última ratio, uma vez que hoje o Brasil conta com cerca de 1600 crimes positivados, na contramão daqueles conceitos. Todavia, parece que essa não é a melhor medida, porque não é raro no Brasil, por exemplo, homicídios motivados pela "simples" perturbação do sossego, ou ameaça, de vez que a descriminalização poderia servir de arrimo à vingança privada. Por isso, a mitigação da persecução penal tem de ser feita com muita cautela. 

Outrossim, tem-se que a seletividade na persecução penal é um fato, como medida de mitigação do princípio da obrigatoriedade, presente na transação penal, na colaboração premiada, nos enunciados do CNJ e do CNMP, e.g. com sua recente Recomendação nº 42[3], de 23/8/2016, que no seu art. 7º prevê a priorização da apuração de alguns casos em detrimento de outros, a partir do estabelecimento de critérios objetivos e transparentes, nos seguintes termos: "competirá aos diversos ramos do Ministério Público, através de seus órgãos competentes, consoante já adotado por diversos órgãos de controle interno e externo, estabelecer critérios objetivos e transparentes que permitam a priorização de atuação em casos de maior relevância e com maior potencial de obtenção de retorno para o erário e para a sociedade, bem como a não atuação justificada em matérias de menor relevância".

 À derradeira, o que se precisa para avançar, orvalhando de esperança a harmonização entre a eficiência da persecução penal e o princípio da obrigatoriedade, é dar transparência aos critérios já existentes e quiçá criar novos, com medidas de racionalização e sanção das autoridades que não os seguirem, porque o Direito Penal existe para resolver problemas da sociedade, e não para autoridades produzirem papel, perseguindo a efetividade da persecução com  o adequado uso da mitigação.

 


[1] JARDIM, A.S. Ação Penal Pública: princípio da obrigatoriedade. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 48

[2] Disponível em: http://fazenda.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/legislacao/2012/portaria75.  Acessado em 06/10/2016

[3] Disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal_2015/images/Normas/Recomendacoes/RECOMENDAO_42.pdf.  Acessado em 06/10/2016.

 

Sobre o autor
Luciano Rosa Vicente

Professor de Direito na Faculdade Anhanguera de Brasília - FAB; mestrando em Direito; especialista em Direito Público, Direito Penal, Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito Disciplinar; bacharel em Direito; e bacharel em Ciências Contábeis.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

A pesquisa e o artigo justificaram-se porque a gigantesca quantidade de notícias crime recebidas pelas autoridades é absolutamente incompatível com o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, que designa o dever legal de o Ministério Público propor a ação penal. Nessa quadra, abordou-se as dificuldades, possibilidades e formas mais eficientes de compatibilizar o aludido princípio com a eficácia da persecução penal.

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