4. A judicialização e o ativismo judicial no atual cenário brasileiro.
A priori, faz-se necessário trazer o conceito de ambos os institutos, tendo em vista que os mesmos, embora parecidos, sejam distintos.
No que diz respeito ao ativismo judicial, Elival da Silva Ramos5, irá defini-lo como:
[...] exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Há como visto, uma sinalização claramente negativa no tocante às práticas ativistas, por importarem na desnaturação da atividade típica do Poder Judiciário, em detrimento dos demais Poderes. Não se pode deixar de registrar mais uma vez, o qual tanto pode ter o produto da legiferação irregularmente invalidado por decisão ativista (em sede de controle de constitucionalidade), quanto o seu espaço de conformação normativa invadido por decisões excessivamente criativas.
O ativismo se caracteriza por ser uma atitude expansiva do poder judiciário em relação a seus atos, acerca de questões que não foram previstas expressamente, como se verá posteriormente.
Já em relação à judicialização, o saudoso autor Marcus Faro de Castro6, aduz que
A Judicialização da Política ocorre porque os tribunais são chamados a se pronunciar onde o funcionamento do legislativo e do executivo se mostra falhos, insuficientes ou insatisfatórios. Sob tais condições ocorre uma aproximação entre “Direito e Política” e, em vários casos, torna-se difícil distinguir entre um “direito” e um “interesse político”.
Noutras palavras, a judicialização caracteriza-se pela transferência de poder que é dado ao judiciário pelas instituições políticas, onde determinadas matérias com um nível de complexidade um pouco maior, tiveram que ser submetidas ao crivo do poder judiciário.
Para Luís Roberto Barroso7,
A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto, da mesma família, frequentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Em todos os casos referidos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais.
Faz-se pertinente enfatizar que a ascensão do poder judiciário não foi um privilégio apenas brasileiro, muito pelo contrário, trata-se de um fenômeno global, que ganhou maior visibilidade após a II guerra mundial. De lá pra cá, percebeu-se que a existência de um poder judiciário consistente era de suma relevância, tanto para a preservação democrática quanto para a promoção e manutenção dos direitos fundamentais8.
Além dessa constatação da importância do poder judiciário, verificou-se também, um progressivo descrédito com a política. Sendo assim, sempre que houver um caso concreto que necessite de resolução e não haja uma norma pronta para saná-lo, o judiciário terá que resolver, terá que decidir, sendo inconcebível que um magistrado alegue lacuna no ordenamento para não julgar.
O fenômeno da judicialização, segundo Luís Roberto Barroso, apresenta, basicamente, três causas9 que refletiram em âmbito mundial, comumente conhecidas como causas gerais da judicialização. São elas, a ascensão do poder judiciário como uma instituição tenaz, a desconfiança/descrença nas instituições políticas e o fato de instituições políticas se esquivarem de tomar certas decisões, tais como, homossexuais, interrupção de gestação, casamento do mesmo sexo, entre outros assuntos. Portanto, há determinados temas que, pelo fato do legislativo não se posicionar ou se furtar de legislar, o judiciário acaba tendo que intervir quando os problemas surgem.
O Brasil, além das causas citados anteriormente, possui, em especial, duas circunstâncias que reforçam o fenômeno da judicialização. A primeira delas refere-se a seu constitucionalismo abrangente10, pois o Brasil tem uma Constituição analítica, ou seja, uma Constituição que se dedica ao detalhamento de suas normas, abrangendo os mais diversos temas, dentre eles, os direitos fundamentais, a separação dos poderes, a ordem tributária, social, econômica e etc.
Portanto, levar determinado tema para a Constituição é, de certa forma, retirá-lo da política e levá-lo para o direito, porque na medida em que se tem uma norma constitucional tratando de idosos ou crianças e adolescentes, por exemplo, isso contribui para que as pessoas possam demandar em juízo ações baseadas nessas normas constitucionais.
A segunda circunstância seria o controle brasileiro de constitucionalidade11, pois o que se percebe é a possibilidade da parte suscitar perante qualquer juízo uma questão constitucional, de modo a possibilitar que a Constituição, que já é abrangente, seja interpretada por qualquer juiz12 diante de um caso concreto, e, além dos meios incidentais, há o controle por via direta/principal13, com um rol14 de legitimados bastante significativo. Tudo isso acaba contribuindo para o fenômeno da judicialização.
É pertinente enfatizar que, ao contrário do que supõe o imaginário social, as decisões do supremo, embora envolvam a judicialização de certas questões, nem sempre são decisões ativistas, mas sim de autocontenção.
Algumas questões bastante complexas foram levadas ao judiciário e decididas de forma a preservar a vontade do legislador, são exemplos: o caso das células tronco, ações afirmativas, lei da copa (que dava vantagem e benefícios para as empresas responsáveis pelas obras).
Nos casos citados acima, percebeu-se que a decisão do judiciário foi chancelando a decisão do poder legislativo, ou seja, validando as leis. Embora a matéria tenha sido judicializada, as decisões tomadas pelo judiciário não tiveram cunho ativista, mas, tão somente, de autocontenção judicial, respeitando as decisões políticas emanadas do Congresso.
Por outro lado, o cenário muda quando o legislativo não atua em uma matéria em que a Constituição demanda sua atuação ou quando estiver em jogo direitos fundamentais. Assim, diante de eventual inércia do legislador ou omissão do executivo, o poder judiciário não só pode como deve atuar, pois o judiciário tem o dever de fazer valer a Constituição, bem como tomar decisões envolvendo os casos concretos, a título de exemplo, enfatiza-se a decisão que confirmou a união homoafetiva – equiparando-as às uniões estáveis -, a interrupção de gestação, fidelidade partidária. Demonstra-se, aqui, o caráter expansivo da atuação do poder judiciário.
Como os casos se repetiam e a demanda era crescente, e, em não havendo lei, o judiciário estabeleceu, acerca das uniões homoafetivas, que estas deviam ser tratadas como as uniões estáveis comuns, porque se baseiam no mesmo pressuposto, o afeto.
5. A Suprema Corte brasileira vista a partir de uma postura contramajoritária e representativa 15
Embora harmônicos, não são raras as tensões entre o constitucionalismo e a democracia, pois, algumas vezes, a maioria, por ação ou omissão, pode desrespeita os direitos fundamentais das minorias. Portanto, é necessária uma interpretação dinâmica da Constituição, tendo em vista as vicissitudes sociais, objetivando-se a preservação, também, dos direitos das minorias. Lênio Streck (2009) acerca do tema assevera que,
Se se compreendesse a democracia como a prevalência da regra da maioria, poder-se-ia afirmar que o constitucionalismo é antidemocrático, na medida em que este “subtrai” da maioria a possibilidade de decidir determinadas matérias, reservadas e protegidas por dispositivos contramajoritários. O debate se alonga e parece interminável, a ponto de alguns teóricos demonstrarem preocupação com o fato de que a democracia possa ficar paralisada pelo contramajoritarismo constitucional, e, de outro, o firme temor de que, em nome das maiorias, rompa-se o dique constitucional, arrastado por uma espécie de retorno a Rousseau.
E é nessa lógica que, para arbitrar tais tensões, faz-se necessário a criação de uma Suprema Corte, de um Tribunal Constitucional.
No caso brasileiro, tem-se o Supremo Tribunal Federal, que detém duas funções16 importantes. A primeira, que é denominado contramajoritária, ocorre quando a Corte constitucional declara a inconstitucionalidade de uma lei ou anula um ato do Presidente da República, este órgão (STF) faz prevalecer sua vontade sobre a decisão do poder legislativo que criou a lei ou faz prevalecer sua vontade sobre ato do chefe do executivo, ou seja, estabelece-se um confronto com a vontade da maioria para preserva os direitos das minorias.
Essa função contramajoritária sempre ocasionou grande celeuma nos mais diversos campos de discussão no intuito de saber se ela seria ou não democrática. Mas, atualmente, já há um certo consenso de que essa função seja legitima, porque quando o judiciário, em nome da Constituição, em nome dos direitos fundamentais, invalida uma lei ou um ato do executivo, ele está fazendo isso em nome e em reforço da democracia.
Portanto, a doutrina se recompôs no sentido de avaliar melhor essa ideologia contramajoritária, na medida em que o judiciário, em especial os juízes – que não são detentores do voto popular -, podem invalidar decisões do processo político, seja do legislativo ou do executivo. Sempre levando em consideração a Constituição e os limites por ela estabelecidos.
Existe, também, uma segunda função desempenhada pelo Supremo Tribunal Federal, que é a representativa. Esta função vem sendo desempenhada gradativamente e isso ocorre quando o processo político não consegue atender no tempo adequado as demandas sociais que vão surgindo, por isso, o judiciário precisa intervir.
Essa representatividade enfrenta certa resistência por problemas de legitimidade democrática, pois os juízes não passam pelo crivo do voto popular, bem como enfrenta problemas porque o judiciário não pode se furtar do seu papel contramajoritário, que é basicamente de dizer às maiorias que elas podem muito, mas não podem tudo. Tal função representativa deve ser exercida com cautela, parcimônia, razoabilidade, dentro das limitações.
É necessário levar em consideração a relação do judiciário com outros poderes. Numa democracia os poderes se controlam mutuamente, sendo indesejável a supremacia de uma instituição sobre outra, pois a democracia é feita do equilíbrio entre os poderes.
Quando há esse protagonismo do judiciário diante das omissões legislativas, ele, de certa forma, acaba atuando como um “representante argumentativo do povo”, como bem definiu o insigne autor Robert Alexy17:
Todo poder estatal origina-se do povo, exige compreender não só o parlamento, mas também o tribunal constitucional como representação do povo. A representação ocorre, decerto, de modo diferente. O parlamento representa o cidadão politicamente, o tribunal argumentativamente
Portanto, tem-se que a democracia não é feita apenas de votos, mas, também, de direitos e razões.
Quando o poder legislativo atua fazendo escolhas políticas, tomando decisões e editando leis, ou seja, cumprimento de fato o seu papel, o judiciário, como regra geral, deve respeitar e não interferir. Decisões políticas, via de regra, numa democracia, devem ser tomadas por quem foi legitimado de forma democrática pelo voto. Ocorre que, quando tais decisões quedam-se inertes por parte do legislativo, deve o judiciário exercer um papel atípico.
6. Conclusão
Extrai-se do exposto acima, que é necessário o respeito e a harmonia entre as instituições, no entanto, vale relembrar que os poderes podem se controlar mutuamente, e, nessa esteira, é salutar que o poder judiciário possa intervir em certos casos quando o legislativo seja omisso. Obviamente que esse não é o ideal, pois o legislativo deve ser diligente quanto às suas funções.
Ocorre que, por um motivo ou outro, o legislativo não cumpre seu dever constitucional e acaba se omitindo quanto ao seu papel legiferante. E, quando surgem as controvérsias, não resta outra opção para o judiciário senão intervir e resolver o problema, pois, o que não pode ocorrer é de um caso concreto ser levado ao judiciário e este se furtar de julgar determinada demanda alegando lacuna no ordenamento, devido à falta de uma norma, por exemplo.
Pelo contrário, a sociedade espera que o judiciário seja capaz de resolver os problemas, pacificar os conflitos e garantir a segurança jurídica. Embora os magistrados não tenham sido eleitos pelo povo, eles têm legitimidade constitucional, pois possuem o bafejo da soberania popular, ainda que indiretamente, porque o poder deles advém da Constituição, do poder constituinte originário. Portanto, o judiciário pode rever, sempre em confronto com os parâmetros constitucionais, os atos do poder legislativo.
O ideal seria um poder legislativo atuante, dotado de credibilidade e em perfeita harmonia com as vicissitudes do seu tempo, no entanto, o cenário é completamente adverso do pretendido. É necessária uma reforma no sistema político, pois o sistema atual além de não corresponder aos anseios sociais, consagra a centralidade do poder aquisitivo, não por acaso o financiamento de campanha eleitoral é um dos vários meios que levam a corrupção e ao desperdício de dinheiro.
Há que se notabilizar a desfuncionalidade do congresso, haja vista o seu descrédito perante a sociedade. Atualmente, tem-se um congresso distante dos seus representados e dividido por setores, onde cada partido busca seu próprio interesse. Desta forma, o povo não se identifica com aqueles que os representam no Congresso, restando ao judiciário, por meio da sua função representativa - como dito anteriormente -, atuar sob a égide da Constituição para dirimir os casos controversos.
De logo, esclarece-se que além da omissão legislativa, consistente em não editar uma lei que o texto constitucional estabelece, existem várias outras omissões sistêmicas, como por exemplo, a falta de proteção às minorias, a falta das condições mínimas no sistema penitenciário, dentre outras. Portanto, percebe-se que as omissões não são apenas no tocante a elaboração de leis, mas sim, no próprio sistema estrutural.
A jurisdição constitucional deve alternar momentos de prudência, no que tange às decisões políticas dos outros poderes, com momentos de ousadia, quando se tratar de garantir os direitos fundamentais. O poder judiciário não pode ser menos e nem mais do que lhe cabe, devendo, sim, manter um equilíbrio constante na sua atuação.