1 INTRODUÇÃO
O direito de greve é uma conquista bastante recente da jovem e tímida democracia brasileira. Apenas em 1988 o exercício da greve adquiriu os contornos que apresenta hoje, tendo sido anteriormente uma conduta tipificada como crime.
Assim, a previsão constitucional do direito de greve (art. 9 e 37, VII, CRFB/88) atribuiu-lhe status de direito social fundamental, mas não esgotou sua regulamentação no ordenamento jurídico pátrio. Isso porque a própria Constituição exigiu que, no caso dos servidores públicos, fosse editada lei específica para regulação da matéria, o que até hoje não foi cumprido.
A mora do Congresso Nacional e o consequente vácuo legal que dela adveio ensejaram inúmeras discussões sobre a possibilidade de exercício do direito de greve pelo servidor público. O entendimento sobre o tema em muito se alterou ao longo do tempo, inclusive na Suprema Corte, o que fez com que o tratamento dado a esse direito fosse constantemente alterado, variando de acordo com as circunstâncias políticas e ideológicas próprias de cada período histórico.
Devido à falta de uma regulamentação legal definitiva, muitas polêmicas surgem em torno da questão do direito de greve do servidor público. A mais recente delas ocorreu em outubro de 2016 e inspirou esta pesquisa, quando a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário 693.456/RJ, entendeu constitucional o desconto dos dias não trabalhados do servidor em greve, quando esta não tiver sido provocada por ato ilícito da Administração. A aprovação dessa tese de repercussão geral dividiu opiniões, e trouxe novamente à tona o descaso do legislador em regulamentar tão relevante matéria.
Destarte, este trabalho pretende analisar o direito de greve em si, o tratamento dispensado a ele no que tange ao servidor público e as implicações da recente decisão do STF, sem adentrar nos muitos méritos que se escondem nas entrelinhas dessa questão.
Para tanto, urge confrontar diferentes ideais: a busca pelo exercício pleno do direito de greve com a necessidade de eficiência do serviço público; a defesa de condições salutares de trabalho com a consecução dos interesses coletivos; a manutenção da greve como instrumento de desenvolvimento social e de luta do trabalhador com a conveniência da imposição de limites a esse mesmo direito, para que ele não esbarre em outras liberdades e garantias dos cidadãos.
2 O DIREITO DE GREVE
O direito de greve - previsto na Constituição da República Brasileira de 1988 em seus artigos 9 e 37, VII – é indiscutivelmente uma das maiores conquistas do Estado democrático de Direito e da população sob seu jugo. Isto porque a greve, enquanto “modo direto de solvência de conflito coletivo de trabalho, mediante autotutela” (OLIVEIRA, 2010, p. 407), representa um dos mais importantes instrumentos de consecução de melhorias nas condições de trabalho, bem como constitui mecanismo de resistência do obreiro em tempos de precarização do emprego.
Longe de ser um mero clamor da classe operária por melhores condições de trabalho e vida, o movimento grevista faz com que a atenção de todos seja voltada ao cenário político, econômico e social como um todo. É, portanto, fundamental que se observe o tripé trabalhador-empresário-sociedade quando tal insurreição ocorre, deixando de lado a noção de que a greve se limita a um problema onde figuram apenas dois lados (LIMA, 2012).
É exatamente por refletir o que ocorre no interior do seio social e por denunciar as misérias intrínsecas à adoção de um determinado modelo econômico que as greves existiriam com ou sem regulamentação estatal, sendo a livre expressão dos grupos e a existência de uma consciência coletiva organizada os principais propulsores desse tipo de movimento.
Deste modo, para que fosse possível evitar a aniquilação da liberdade reivindicatória do trabalhador ou, no outro extremo, a anarquização dessa forma de protesto, fez-se mister que a greve migrasse da noção de mero fato social para ser tratada, também, como evento jurídico (LIMA, 2012). Nesse sentido, a lição de Francisco Gérson Marque de Lima acerca do reconhecimento legal da greve:
De um lado, reconhece-se a greve como direito; e, de outro, impõem-se-lhe limites. E o Poder Público, após discipliná-la e acomodá-la a certa ordem, passa a interpretá-la segundo a conveniência do momento e a ideologia que domina o Estado: a do capital (LIMA, 2012, p.61).
Na mesma esteira, a doutrina de Alice Monteiro de Barros:
A regulamentação é um imperativo, cujo objeto é garantir a efetividade do conteúdo essencial desses direitos (...). Impõe-se, portanto, sejam compatibilizados tais direitos e liberdades.
(BARROS, 2006, p.1264).
Dos excertos acima, depreende-se facilmente que a regulamentação do exercício do direito de greve se mostrou imprescindível para que o trabalhador mantivesse sua liberdade de reivindicação e, ao mesmo tempo, que tal liberdade não implicasse em prejuízos à sociedade. Assim, acertou o constituinte brasileiro ao inserir no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), em seu Capítulo sobre os Direitos Sociais, o artigo que assegurou direito fundamental tão caro ao cidadão, o qual aqui se reproduz ipsis literis:
Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender (BRASIL, 1988).
Destarte, a positivação desse direito fundamental confirmou o “status de essencialidade” (DELGADO, 2008, p.193) do direito de greve nas ordens jurídicas contemporâneas, ao passo em que atribuiu à greve os elementos força e civilidade.
2.1 Um Breve Histórico
Há diversos entendimentos acerca das primeiras manifestações grevistas. Alguns autores apontam que tais eventos ocorreram ainda no êxodo dos hebreus ao deixar o Egito, ou no Baixo Império Romano, enquanto outros apontam o marco inicial da história da greve como o início do movimento sindical inglês, devido ao surgimento do trabalho assalariado por ocasião da Revolução Industrial (SOUZA, 2010).
No Brasil, por sua vez, o movimento grevista está intimamente relacionado ao movimento sindical. Esse marco se deu com o fim da escravidão, em 1888, quando a relação de emprego figurou como modalidade central de vinculação ao sistema socioeconômico (SOUZA, 2010).
O primeiro diploma legal a abordar o tema da greve foi o antigo Código Penal (Decreto 847/1890), que a tipificou como ilícito criminal. As constituições que se seguiram, quais sejam a de 1891 e a de 1934, foram omissas quanto ao tema, e a situação não melhorou com os diplomas legais seguintes. Por muito tempo, manteve-se a orientação normativa de proibição, e até mesmo criminalização do movimento grevista, tendo este demorado a abandonar o aspecto de movimento antissocial, ilícito e criminoso que lhe fora atribuído. (SOUZA, 2010).
Foi somente com o processo de redemocratização, vivido a partir de 1945, que a greve passou a ser vislumbrada pela legislação infraconstitucional como direito do trabalhador, e finalmente confirmada como tal pela Constituição Republicana de 1946.
O período do regime militar que se seguiu, no entanto, voltou a fazer com que novamente se restringisse o direito à greve, e o agravamento do caráter autoritário do regime político culminou com a edição do AI-5, em 1968, e a inviabilização de qualquer paralisação trabalhista (SOUZA, 2010).
Foi somente com a Constituição Cidadã, de 1988, que se devolveu à greve o status de direito, tornando-a “instrumento democrático a serviço da cidadania e da dignidade humana” (LIMA, BELCHIOR, 2008, p.6), verdadeiro direito fundamental.
O artigo 9º, supratranscrito, bem como o art. 37, VII do mesmo diploma, transformaram a greve em garantia constitucional do trabalhador – tanto da esfera pública quanto da privada - tornando-a passível de ser exercida com a necessária liberdade e, ao mesmo tempo, de ser limitada pelo Estado, de modo que se garantisse a máxima observância a todos os direitos fundamentais ali envolvidos, tais como o direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade.
Apesar de o direito de greve dos trabalhadores do setor privado já ser regulado por lei específica (Lei 7.783/89), o mesmo direito ainda necessita de norma regulamentadora na seara pública, requisito exigido pela própria Constituição em seu artigo 37, VII:
Art. 37, VII - o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica. (BRASIL, 1988)
A não elaboração da lei complementar regulamentando o direito de greve dos servidores públicos civis ensejou a propositura do Mandado de Injunção nº. 20-DF (Rel. Celso de Mello, DJ de 22-11-1996). Neste julgamento histórico, firmou-se entendimento no sentido de que o direito de greve dos servidores públicos não poderia ser exercido antes da edição da lei complementar respectiva, sob o argumento de que o preceito constitucional que reconheceu o direito de greve constituía norma de eficácia limitada, desprovida de autoaplicabilidade (MENDES, 2012).
Em 2006, foi proposta a revisão parcial do entendimento até então adotado pelo Tribunal, oportunidade em que alguns ministros apresentaram votos que recomendaram a adoção de uma solução normativa e concretizadora para a omissão verificada.
Foi somente em 2007, no entanto, após tantos outros mandados de injunção propostos em razão da mesma matéria (MI nº670/ES, MI nº 708/PB e MI n 712/PA), que a Suprema Corte se afastou da orientação inicialmente perfilhada no sentido de estar limitada à declaração da existência da mora legislativa, para adotar uma postura concretista, a qual - na lição de Alexandre de Moraes - consiste na atitude do Poder Judiciário de, através de decisão constitutiva, declarar a omissão legislativa e implementar o exercício do direito até que sobrevenha a edição de lei regulamentadora faltante (MORAES, 2008).
Foi nessa esteira de pensamento que o Plenário do Supremo Tribunal decidiu aplicar ao exercício de greve no setor público, no que couber, a lei de greve vigente no setor privado, a Lei 7.783/89, medida que se mantém até os dias atuais, porquanto a lacuna legislativa referente à matéria nunca foi colmatada. Deste modo, coube ao Judiciário esta forma de “garantir, minimamente, direitos constitucionais reconhecidos” e prover certa proteção efetiva que “não pode ser negligenciada na vivência democrática de um Estado de Direito” (MENDES, 2012, p. 1.775).
3 O DIREITO DE GREVE E O SERVIÇO PÚBLICO
Diante desta breve análise histórica do direito de greve no cenário brasileiro, ficou evidente que o seu exercício no que toca aos servidores públicos está profundamente comprometido, em razão da mora do legislador em regulamentar de forma específica a matéria.
Tal lacuna legal fez com que fossem forçosamente equiparadas – no que tange o exercício do direito de greve – duas classes de trabalhadores que, exatamente pelas particularidades inerentes ao tipo de vínculo empregatício que possuem, foram mantidos em regimes jurídicos diferenciados: o trabalhador celetista e o estatutário.
Era de se esperar, no entanto, que as indefinições e inadequações dessa equiparação trouxessem constantes questionamentos e aquecessem muitos debates acerca da legitimidade do tratamento igualitário desses dois grupos essencialmente distintos. É o que vem ocorrendo no bojo das discussões dos mandados de injunção propostos acerca desse tema - já citados neste trabalho -, que encerram a controvérsia apenas de forma provisória e paliativa, já que a mora legislativa só poderá ser suprida em definitivo quando da efetiva atuação do Poder legiferante competente.
Prova disso é que, recentemente, nova contenda se instalou por ocasião de outra virada jurisprudencial acerca da greve do servidor público. O fato é que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria de seus membros, entendeu constitucional o desconto dos dias de paralisação motivada por greve de servidor público, desde que esta não tenha sido provocada por ato ilícito da Administração.
Tal decisão reavivou as discussões sobre o movimento paredista na seara pública, razão pela qual este estudo se propôs a explicitar os principais argumentos que embasam e justificam o posicionamento da Corte Suprema, bem como a clarear conceitos e institutos que, quiçá, sirvam ao convencimento dos que ainda duvidam da legitimidade de tal julgamento.
3.1 Quem é o Servidor Público?
Para entender quem são os servidores públicos, faz-se mister conceituar primeiro o que vem a ser considerado serviço público. Na lição de José Carvalho Filho, serviço público é:
“Toda atividade prestada pelo Estado ou por seus delegados, basicamente sob regime de direito público, com vistas à satisfação de necessidades essenciais e secundárias da coletividade” (CARVALHO FILHO, 2014, p. 329).
Os serviços públicos, portanto, visam interesses públicos e consistem eles próprios em objetivos do Estado, motivo pelo qual este ente sempre se reserva o poder jurídico de controlar, regulamentar e alterar tais serviços, mesmo que não figure diretamente no polo ativo da sua prestação (CARVALHO FILHO, 2014).
Desse breve conceito, depreende-se que servidor público é, então, qualquer pessoa física que presta serviço ao Estado ou às entidades da Administração indireta, com vínculo empregatício (SOUZA, 2010).
É nesse sentido que preleciona o eminente doutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello, que entende que o conceito de servidor público abarca todos aqueles que mantêm com as entidades governamentais vínculo de trabalho de natureza profissional e caráter não eventual, sob vínculo de dependência (BANDEIRA DE MELLO, 2009).
Esta conceituação de servidor público muito importa ao tema trazido por este trabalho, uma vez que é de grande relevância que esteja nítida a influência que o fato de estar encaixado em tal grupo representa no exercício de direitos e garantias, tal como o de greve. Isto porque o regime jurídico do servidor público estatutário implica na não incidência de certas garantias e certos direitos típicos do vínculo contratual regido pelo direito privado quando estes não se mostrarem compatíveis com a consecução do fim visado pelo Estado, qual seja o interesse da coletividade. Em contrapartida, a esses servidores são asseguradas certas garantias inimagináveis na seara privada.
No tocante ao exercício do direito de greve, por exemplo, é diferente o tratamento dado ao trabalhador da hasta pública e ao trabalhador do setor privado. A previsão constitucional deste direito fundamental para os servidores públicos está contida no art. 37, VII, enquanto é no art. 9º do mesmo dispositivo legal que se encaixa o direito de greve do trabalhador celetista.
Isso se deve exatamente pelo fato de a consecução do interesse público, razão de ser do serviço público, ter supremacia sobre qualquer outro interesse pessoal do trabalhador, ainda que este represente o interesse de uma categoria. Por outro lado, a liberdade de negociação e a autonomia da vontade são marcas fortes do setor privado, algo impossível de se reproduzir na relação entre o Estado e o seu agente encarregado no múnus público, motivo pelo qual se faz inaceitável que estas duas classes de trabalhadores sejam reguladas pelo mesmo diploma legal, como ainda o são.
3.2 O Princípio da Continuidade do Serviço Público e o Direito de Greve do Servidor Público
Na Administração Pública, vigora o princípio da continuidade do serviço público. Na lição de Carvalho Filho, isso significa dizer que:
Os serviços públicos não devem sofrer interrupção, ou seja, sua prestação deve ser contínua para evitar que a paralisação provoque, como às vezes ocorre, colapso nas múltiplas atividades particulares ( CARVALHO FILHO, 2014, p. 339)
Referido princípio é, indubitavelmente, corolário do princípio da supremacia do interesse público, pois, em ambos coloca-se a coletividade acima de qualquer motivação particular, ainda que legítima (LIMA; BELCHIOR, 2008).
No caso das paralisações de servidores públicos:
Afigura-se inegável o conflito existente entre as necessidades mínimas de legislação para o exercício do direito de greve dos servidores públicos (CF, art. 9º, caput, c/c o art. 37, VII), de um lado, e o direito a serviços públicos adequados e prestados de forma contínua (CF, art. 9º, § 1º), de outro (MENDES, 2012, p.1774).
Por isso, é importantíssimo que a ponderação do magistrado que analisa um caso de greve do servidor público perpasse por essa noção de que direitos fundamentais são restritos, limitados, relativos: não são absolutos. Desta feita, o famigerado princípio da proporcionalidade deve atuar como critério interpretativo imprescindível à otimização do sistema de valores consagrados pela Constituição e à solução de matérias conflitivas (LIMA, BELCHIOR, 2008).
No caso em análise, não existindo a lei específica que regulamenta o direito de greve do servidor público, cabe ao Judiciário o dever de examinar a situação concreta e decidir se as paralisações oriundas do direito fundamental de greve do servidor não afrontaram um princípio norteador da Administração Pública (continuidade do serviço público). Dessa forma, o juiz - aplicando o princípio da proporcionalidade - analisará qual direito fundamental deverá prevalecer na situação fática, precedendo àquele outro direito efetivado.
Corroborando este pensamento, a lição de Gilmar Mendes:
De resto, uma sistemática conduta omissiva do Legislativo pode e deve ser submetida à apreciação do Judiciário (e por ele deve ser censurada) de forma a garantir, minimamente, direitos constitucionais reconhecidos (CF, art. 5º, XXXV). Trata-se de uma garantia de proteção judicial efetiva que não pode ser negligenciada na vivência democrática de um Estado de Direito (MENDES, 2012, p.1775).