4 O RECURSO EXTRAORDINÁRIO 693.456
4.1 Uma Breve Síntese dos Fatos e a Decisão
Em outubro de 2016, o Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 693456, com repercussão geral reconhecida, que discutia a constitucionalidade do desconto dos dias parados em razão de greve de servidor público.
Tratava-se, na origem, de mandado de segurança pelo qual os impetrantes, servidores públicos estaduais estatutários, pretendiam que fossem cessados os descontos efetuados pelos dias de paralisação, em razão da adesão a movimento grevista.
Na sentença de primeiro grau, denegou-se a segurança, uma vez que se entendeu não haver ilegalidade no ato administrativo consistente nos descontos efetuados nos contracheques dos impetrantes.
A apelação foi provida, por maioria, para determinar que a autoridade impetrada se abstivesse de proceder às anotações de faltas nos assentamentos funcionais e os descontos nas folhas de pagamento, ou para determinar a expedição de folha de pagamento suplementar com os valores eventualmente descontados. Contra essa decisão foi interposto o recurso extraordinário de relatoria do ilustríssimo Ministro Dias Toffoli, que ora se examina.
Por 6 votos a 4, concluiu-se que a administração pública deve fazer o corte do ponto dos grevistas, ao passo em que admitiu a possibilidade de compensação dos dias parados mediante acordo. Também foi decidido que o desconto não poderá ser feito caso o movimento grevista tenha sido motivado por conduta ilícita do próprio Poder Público.
Tal decisão desagradou a muitos segmentos da sociedade, que afirmam que o desconto dos dias parados configura-se como um empecilho ao efetivo exercício do direito de greve e, consequentemente, um verdadeiro óbice à luta por melhores condições de trabalho. Isto porque o trabalhador se veria compelido a interromper precocemente a greve, ou mesmo a não começá-la, dado que seu sustento e de sua família seria comprometido.
4.2 Dos Argumentos Embasadores da Decisão
Há alguns pontos – chave a serem analisados neste tópico. São várias as teses elaboradas para defender a constitucionalidade do desconto dos dias parados de servidores públicos em greve, e outras tantas são as soluções apontadas pelos estudiosos do tema para que todos os direitos fundamentais envolvidos no complexo movimento grevista sejam, ainda que minimamente, preservados.
Abordar-se-ão aqui os fundamentos considerados mais esclarecedores, extraídos dos votos ministeriais em sede de julgamento do RE 693.456 e corroborados pela doutrina pátria.
Com a breve explanação que se segue, pretende-se demonstrar que a greve do servidor público, apesar de ser direito social fundamental do cidadão e instrumento de resistência e luta da classe operária, pode vir a se tornar um custo político e social quando não devidamente limitada.
Neste sentido, o trecho do voto do Ministro Eros Grau na relatoria da Rcl 6.568 – Dje 25/09/2009, apontando para a
Necessidade de assegurar-se a coerência entre o exercício do direito de greve pelo servidor público e as condições necessárias à coesão e interdependência social, às quais a prestação continuada dos serviços públicos é imprescindível (GRAU apud TOFFOLI, 2016, p.15)
Isto porque nenhum direito fundamental é absoluto, como já mencionado anteriormente, e o seu exercício não balizado pode afrontar outros direitos fundamentais e causar prejuízos ao bom e saudável funcionamento da máquina estatal.
Bom, passemos então a uma breve análise desses argumentos.
Em primeiro lugar, insta lembrar que se aplica ao exercício de greve do serviço público, por analogia, o regramento incidente sobre a greve na iniciativa privada (Lei 7.783/89), até que a mora legislativa seja superada.
Esse entendimento fora consagrado por ocasião de julgamentos de Mandados de Injunção anteriores concernentes à matéria (670/ES e 708/DF), e há de ser observado. Segundo aquele diploma legal, nos termos de seu art. 7º, deflagração da greve, em princípio, corresponde à suspensão do contrato de trabalho, como se vê:
Art. 7º Observadas as condições previstas nesta Lei, a participação em greve suspende o contrato de trabalho, devendo as relações obrigacionais, durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho (BRASIL, 1989, grifo nosso).
Em seu voto, o Ministro Relator do RE 693.456, Dias Toffoli, ensina que:
Na suspensão não há falar em prestação de serviços, tampouco no pagamento de sua contraprestação. Desse modo, os servidores que aderem ao movimento grevista não fazem jus ao recebimento das remunerações dos dias paralisados, salvo no caso em que a greve tenha sido provocada justamente por atraso no pagamento ou por outras situações excepcionais que justifiquem o afastamento da premissa da suspensão da relação jurídica de trabalho e, por consequência, da atividade pública (TOFFOLI, 2016, p.18).
A suspensão da relação jurídica de trabalho deve implicar no não pagamento do servidor em greve exatamente pela ausência da contraprestação por parte do trabalhador. Nesse sentido, explica Maurício Godinho Delgado que “o principal efeito da suspensão do contrato será, como visto, a ampla sustação das recíprocas obrigações contratuais durante o período suspensivo” (DELGADO, 2016, p.1.186).
Pagar os dias parados corresponderia a um incentivo ou premiação da greve, quando o que se deve buscar é a recomposição mais célere quanto possível das partes em dissídio, buscando benefícios a todos, na medida em que as circunstâncias permitirem.
A qualquer direito exercido corresponde também um dever, um ônus, pois não é justo que apenas um dos lados suporte toda a carga. E o ônus no caso da greve é justamente que, em não havendo trabalho, não deve haver também remuneração, pois caso assim não fosse resultaria num desequilíbrio injustificado entre as partes envolvidas - o empregado, o empregador e a sociedade -, caso em que apenas um dos eixos desse tripé estaria em situação relativamente confortável (já que o próprio fato de ter sido necessária a eclosão de uma greve sugere uma situação desagradável ao trabalhador).
É perfeito o ensinamento do eminente ministro relator a esse respeito, razão pela qual pedimos vênia, para aqui citar, em parte, seu voto:
Com efeito, conquanto a paralisação seja possível, porque é um direito constitucional, ela tem consequências. Esta Corte Suprema já assentou o entendimento de que o desconto dos dias de paralisação é ônus inerente à greve, assim como a paralisação parcial dos serviços públicos imposta à sociedade é consequência natural do movimento. Esse desconto não tem o efeito disciplinar punitivo. Os grevistas assumem os riscos da empreitada. Caso contrário, estaríamos diante de caso de enriquecimento sem causa a violar, inclusive, o princípio da indisponibilidade dos bens e do interesse público (TOFFOLI, 2016, p. 18).
Destarte, conforme frisado acima, a ausência de prestação específica por parte do servidor grevista enseja os descontos dos dias não trabalhados, porquanto não fosse assim, restaria configurado um locupletamento sem causa.
Ao contrário do que defendem alguns, tal medida não tolheria ou impediria o exercício do direito de greve. Isto porque o servidor público goza de estabilidade, estando em condições muito mais favoráveis de exercer tal direito do que o trabalhador da iniciativa privada.
Por fim, reproduz-se excerto do voto do douto Ministro Luís Roberto Barroso, no RE 693.456:
Registro, contudo, que, na minha opinião, o administrador público não apenas pode, mas tem o dever de cortar o ponto. O corte de ponto é necessário para a adequada distribuição dos ônus inerentes à instauração da greve e para que a paralisação – que gera sacrifício à população – não seja adotada pelos servidores sem maiores consequências (BARROSO, 2016, p. 5).
Assim, o corte do ponto do servidor público grevista consistiria num combate ao locupletamento ilícito do trabalhador à custa dos cofres públicos, a plena aplicação da Lei 7.783/89 ao serviço público, bem como a imposição de limites ao exercício do direito de greve e a consequente minimização dos prejuízos políticos, econômicos e sociais que ele acarreta. Isto garante que o interesse público mantenha sua supremacia em relação aos quereres individuais e que o direito de greve possa ser plenamente exercido dentro de parâmetros que possibilitem o normal funcionamento do Estado e o atendimento das necessidades básicas e essenciais de toda a população.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito de greve do servidor público civil, insculpido no art. 37, VII, da Constituição da República, abrange, a um só tempo, os ideais da democracia, da igualdade, da solidariedade e da liberdade. É, portanto, instrumento democrático a serviço da cidadania e da dignidade humana.
No entanto, o exercício de tão estimado direito encontra óbice na inertia deliberandi do órgão legiferante competente, qual seja o Congresso Nacional, que ainda não editou a lei específica que deve regular a matéria, conforme exigência da própria Carta Magna.
Por muito tempo, entendeu-se que a falta da norma não poderia ser suprida judicialmente, numa adesão à corrente não-concretista dos estudiosos dos efeitos e limites do mandado de injunção. Foi somente com o julgamento dos MIs 670/ES 708/DF e 712/PA que a Suprema Corte passou a admitir a aplicação, no setor público, da Lei 7.783/89, diploma que regula a greve da iniciativa privada.
Essa mudança paradigmática na abordagem do tema não solucionou o problema, visto que deu a dois grupos essencialmente diferentes o mesmo tratamento quanto ao exercício do direito de greve. Aproximou-se o servidor público ao trabalhador da iniciativa privada, ignorando que as peculiaridades dessas duas classes impede que eles sejam tratados de forma igual.
Assim, persistiram as críticas e o inconformismo com a abordagem dada à situação provocada pela mora do legislador brasileiro. Nesse cenário, a recente aprovação da tese de repercussão geral, pelo STF, que admitiu o corte de ponto do servidor público grevista gerou alvoroço.
No entanto, após dedicada análise dos princípios norteadores da administração pública e dos interesses maiores do Estado chegou-se à conclusão de que andou bem a Corte Suprema ao decidir nesse viés. Isto porque o direito do servidor público de aderir ao movimento paredista não pode suplantar todos os outros direitos fundamentais da população, que depende de um serviço público eficaz, contínuo e bem prestado.
Assim, há de fato que se limitar um direito fundamental para efetivação satisfatória de tantos outros, sob pena de o servidor público incorrer em um enriquecimento ilícito às custas da máquina estatal, visto que não há na legislação nem na doutrina tese que sustente a percepção de remuneração sem a devida contraprestação, nos casos de suspensão da relação de trabalho.
Conclui-se que, enquanto aguardamos o despertar do legislador brasileiro para essa questão, o Judiciário será ainda competente para julgar os casos de greve do servidor público e analisar, in casu, quais medidas podem ser utilizadas para preservar o direito de grevar e, ao mesmo tempo, um bom funcionamento da máquina pública, buscando sempre equilibrar, entre todos os envolvidos, o ônus intrínseco a esse movimento.