INTRODUÇÃO
A trajetória da Administração Pública brasileira é indissociável do federalismo orgânico que assegura aos municípios autonomia política, administrativa e financeira. Portanto, os municípios são entes políticos compostos de órgãos e entidades públicas pertencentes, respectivamente, à administração pública direta e indireta, e possuem, ainda, governo e recursos próprios.
Durante o século XX, considerando as necessidades de modernização da administração pública, o Brasil passou por três grandes reformas administrativas: a Reforma Burocrática da era Vargas (década de 1930); a Reforma do Período Militar (década de 1960) e a Reforma Gerencial (década de 1990).
O processo de desenvolvimento da Administração Pública brasileira foi acompanhado de constantes alterações normativas, sendo as mais emblemáticas a promulgação e outorgação, em um espaço de apenas um século, das constituições de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988.
Acompanhando essa trajetória, alguns princípios a serem observados pelos gestores públicos e operadores do direito foram se consolidando, como é o caso dos princípios da legalidade, eficiência e transparência, que serão abordados nesta pesquisa, conjuntamente com a problemática das licitações públicas municipais.
Licitação pública é objeto de relevante interesse para a ciência do Direito, tanto na esfera legislativa, quanto na executiva e na judiciária. Isso porque, desde os primórdios das licitações no Brasil os operadores do Direito deparam-se com as problemáticas decorrentes do procedimento, seja pela ausência de legislação considerada eficiente, seja pela aplicação equivocada, ou mesmo de má fé, dos preceitos normativos, seja pelo processo crescente de judicialização das licitações.
O Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), instituído pela Lei 12.462, de 4 de agosto de 2011, foi elaborado como mais uma tentativa de superar a problemática então existente e, consequentemente, dotar a Administração Pública brasileira de um instrumento de maior eficiência e celeridade em sede de licitações, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
1 ORGANIZAÇÃO E TRAJETÓRIA ADMINISTRATIVA DO BRASIL
Preliminarmente, cumpre destacar, em perspectiva jurídica, que a administração pública pode ser compreendida como o conjunto de instituições e de servidores, em regra mantidos e pagos pelos cofres públicos, imbuídos do poder de planejamento, decisão, execução e controle das normas, atividades e políticas públicas relativas ao bem-estar da sociedade e das ações necessárias à gestão da coisa pública.
Para Di Pietro, a expressão Administração Pública pode ser entendida sob duas óticas:
a) em sentido subjetivo, formal ou orgânico, ela designa os entes que exercem a atividade administrativa; compreende pessoas jurídicas, órgãos e agentes públicos incumbidos de exercer uma das funções em que se triparte a atividade estatal: a função administrativa;
b) em sentido objetivo, material ou funcional, ela designa a natureza da atividade exercida pelos referidos entes; nesse sentido, a Administração Pública é a própria função administrativa que incumbe, predominantemente, ao poder executivo. (DI PIETRO, 2011, p. 58)
Nas palavras do mestre Hely Lopes Meirelles verifica-se que “subjetivamente a Administração Pública é o conjunto de órgãos a serviços do Estado e objetivamente é a expressão do Estado agindo in concreto para satisfação de seus fins de conservação, de bem-estar individual dos cidadãos e de progresso social” (MEIRELLES, 2013, p.8).
Feitas essas considerações iniciais, sob a ótica jurídica, acerca do significado e do escopo da Administração Pública salutar é que se verifique o conceito e a trajetória da Administração Pública sob a perspectiva da Ciência Política e da Administração Pública. Para tanto, será utilizado o recorte feito pelo professor Frederico Lustosa da Costa, em artigo publicado na Revista de Administração Pública, no ano de 2008, em homenagem ao bicentenário da chegada da corte portuguesa ao Brasil.
É verdade que, até 1808, existia no Brasil e, sobretudo, na sede do governo geral (vice-reino) uma administração colonial relativamente aparelhada. Mas a formação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e a instalação de sua sede na antiga colônia tornaram irreversível a constituição de um novo Estado nacional. Todo um aparato burocrático, transplantado de Lisboa ou formado aqui, em paralelo à antiga administração metropolitana, teve que ser montado para que a soberania se afirmasse, o Estado se constituísse e se projetasse sobre o território, e o governo pudesse tomar decisões, ditar políticas e agir. (COSTA, 2008, p. 831)
Após a instalação da Corte Portuguesa no Brasil, do retorno de D. João VI a Portugal (decorrente da queda de Napoleão), da consequente subida de D. Pedro I ao poder, seguida da proclamação da independência, ocorreu a outorga da Constituição de 1824 e a organização do Estado brasileiro conforme resumida a seguir:
A primeira Constituição do Brasil mantinha a monarquia, a dinastia da Casa de Orléans e Bragança e d. Pedro I como imperador e defensor perpétuo do Brasil. Constituía um Estado unitário e centralizador, cujo território era dividido em províncias, que substituíam as antigas capitanias. Os poderes políticos eram quatro — Legislativo, Moderador, Executivo e Judicial. Cada província era dirigida por um presidente nomeado pelo imperador, que tomava posse perante a câmara da capital. Em cada uma delas havia também um conselho geral, cujos membros eram eleitos juntamente com a representação nacional. O monarca exercia o Poder Moderador, com o apoio do Conselho de Estado, órgão de caráter consultivo e, ao mesmo tempo, o Poder Executivo, auxiliado pelos seus ministros de Estado. O Poder Legislativo era exercido pela Assembléia Geral, formada pela Câmara dos Deputados e pela Câmara dos Senadores ou Senado do império. O Poder Judicial era exercido pelos juízes de direito e pelos juízes de paz, para as tentativas de conciliação prévias a qualquer processo. Na capital do império e nas províncias havia um Supremo Tribunal de Justiça, composto de juízes letrados tirados das relações. A organização dos municípios não mudou de forma significativa, tendo as câmaras o mesmo papel que exerciam na colônia. (COSTA, 2008, p. 837)
Depois de algumas crises institucionais, decorrentes em grande parte da abdicação do trono por D. Pedro I em favor de seu filho D. Pedro II, com apenas 5 anos de idade, da incompetência da Regência Trina e dos crescentes conflitos entre a monarquia e as classes dominantes (detentoras de grandes propriedades rurais e dependentes da escravidão) surgem escorços em prol do republicanismo.
Nesse contexto de crise do regime imperial e da consequente instabilidade política, ganha força o movimento republicano até que, em 15 de novembro de 1889, a tropa comandada por Marechal Deodoro da Fonseca, desferiu o golpe que levou a monarquia à sucumbência e determinou a proclamação da república no Brasil.
Segundo Costa (2008) o fato é que a proclamação da república não trouxe as profundas reformas então esperadas, especialmente no âmbito social e econômico. No entanto, com base em Costa (2008), podemos afirmar que houve algumas reformas necessárias à implantação do novo regime e a convocação de eleições para uma assembleia constituinte, a fim de dar azo à segunda constituição brasileira, inspirada na constituição americana de 1787 e promulgada em 1891. Daí que, a partir da Constituição de 1891:
A separação de poderes ficou mais nítida. O Legislativo continuava bicameral, sendo agora formado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, cujos membros passaram a ser eleitos para mandado de duração certa. Ampliou-se a autonomia do Judiciário. Foi criado o Tribunal de Contas para fiscalizar a realização da despesa pública. As províncias, transformadas em estados, cujos presidentes (ou governadores) passaram a ser eleitos, ganharam grande autonomia e substantiva arrecadação própria. Suas assembléias podiam legislar sobre grande número de matérias. Esse sistema caracterizava o federalismo competitivo. A República federalista, com estados politicamente autônomos, consagrou um novo pacto político que acomodava os interesses das elites econômicas do Centro-Sul e do resto do país. O governo federal ocupava-se de assegurar a defesa e a estabilidade e proteger os interesses da agricultura exportadora através do câmbio e da política de estoques, com reduzida interferência nos assuntos “internos” dos demais estados. (COSTA, 2008, p. 839-840)
O período compreendido entre 1891 e 1930 ficou conhecido como República Velha. Nessa etapa a Administração Pública brasileira mantinha, ainda, resquícios de uma gestão tipicamente patrimonial, cujas características podem ser verificadas pelo trecho que segue:
No patrimonialismo, o aparelho do Estado funciona como uma extensão do poder do soberano, e os seus auxiliares, servidores, possuem status de nobreza real. Os cargos são considerados prebendas. A res publica não é diferenciada das res principis. Em conseqüência, a corrupção e o nepotismo são inerentes a esse tipo de administração. No momento em que o capitalismo e a democracia se tornam dominantes, o mercado e a sociedade civil passam a se distinguir do Estado. Neste novo momento histórico, a administração patrimonialista torna-se uma excrescência inaceitável. (BRASIL. Mare, 1995, p. 15)
Em função da administração pública patrimonial, da crise mundial que se asseverava, especialmente a partir da quebra da bolsa de valores de Nova York, em 1929, e do crescente processo de esfacelamento das oligarquias regionais acontece a chamada Revolução de 1930 e a instalação do Estado Novo, sob a presidência de Getúlio Vargas.
O governo de Vargas resolve modernizar a máquina administrativa brasileira através dos paradigmas burocráticos difundidos por Max Weber (modelo racional-legal). O auge dessas mudanças ocorre em 1936 com a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), que tinha como atribuição modernizar a máquina administrativa utilizando como instrumentos a afirmação dos princípios do mérito, a centralização, a separação entre público e privado (em resposta ao patrimonialismo), a hierarquia, a impessoalidade, a rigidez e universalidade das regras e a especialização e qualificação dos servidores. Assim, a partir da criação do DASP, começou o processo de implantação da Administração Pública Burocrática no Brasil.
Após o governo de Vargas, o fato mais compulsado pela doutrina diz respeito à presidência de Juscelino Kubitschek (JK) e seu tão propalado plano de metas que veio à tona através da chamada Administração Paralela. Em linhas gerais, a Administração Paralela foi um artifício utilizado pelo governo JK para atingir o seu Plano de Metas (50 anos em 5) e seguir firme no seu projeto desenvolvimentista. Ela surgiu com a criação de estruturas alheias à Administração Direta para, dessa forma, fugir das amarras burocráticas.
Assim, a chamada Administração Paralela (também conhecidas como Ilhas de Excelência) foram instituições criadas, via decreto presidencial, pelo governo JK, com o objetivo de obter mais flexibilidade e agilidade necessárias à implantação do seu plano de metas, tendo em vista que os organismos públicos então existentes estavam impregnados por uma cultura burocrática que era rígida e excessivamente lenta.
Durante o período militar a administração pública passa por novas transformações. Três aspectos podem ser ressaltados nessa época: A ampliação da função econômica do Estado com a criação de várias empresas estatais; facilidade de implantação de políticas, em decorrência da natureza autoritária do regime; o aprofundamento da divisão da administração pública, mais especificamente através do Decreto-Lei 200/67, que distinguiu claramente a Administração Direta (exercida por órgãos diretamente subordinados aos ministérios) da indireta (formada por autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista).
A reforma do período militar – que atingiu bons índices de modernização – também teve como pontos importantes a padronização e normatização nas áreas de pessoal, compras e execução orçamentária, estabelecendo ainda cinco princípios estruturais da administração pública: planejamento, coordenação, descentralização, delegação de competências e controle.
Após a queda do regime militar e do reestabelecimento da democracia foi promulgada da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, (CRFB/1988). A nova Constituição tornou a fortalecer a administração direta instituindo regras iguais às que deveriam ser seguidas pela administração pública indireta, principalmente em relação à obrigatoriedade de concursos públicos para investidura na carreira (o que diminuiu a política clientelista) e aos procedimentos de compras públicas.
Em seguida à promulgação da CRFB/1988 tivemos a primeira eleição direta para presidente da era pós-militar, tendo sido eleito para o cargo Fernando Collor de Mello. Essa etapa da administração pública brasileira é marcada pelo desmonte da máquina administrativa pelo governo Collor – sem nenhum planejamento – sob o argumento, amplamente difundido pelo presidente de que os servidores públicos eram verdadeiros “marajás”, ou seja, trabalhavam pouco e ganhavam muito.
Assim, pouco tempo depois da posse, o governo Collor promoveu a extinção de milhares de cargos de confiança, a reestruturação e a extinção de vários órgãos, a demissão de outras dezenas de milhares de servidores sem estabilidade e tantos outros foram colocados em disponibilidade. Segundo estimativas do MPOG, foram retirados do serviço público, num curto período e sem qualquer planejamento, cerca de 100.000 (cem mil) servidores. Tais fatos resultaram numa avalanche de processos judiciais que perduram até hoje, tendo a maior parte dos servidores conseguido retornar ao serviço público.
Após o impeachment de Collor, seu vice, Itamar Franco, assumiu o governo e não tomou decisões significativas em termos de gestão pública.
No ano de 1994, Fernando Henrique Cardoso (FHC) assume a presidência da república, onde ficou por dois mandatos consecutivos. A reforma administrativa foi o ícone do governo FHC em relação à administração pública brasileira. Inserida no contexto da reforma do Estado e capitaneada por Luis Carlos Bresser-Pereira à frente do então recém-criado Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado (MARE), a chamada reforma gerencial teve como instrumento básico o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), que visava à reestruturação do aparelho do Estado para combater, principalmente, a cultura burocrática.
Durante o governo Lula, em documento elaborado pela Secretaria de Gestão (SEGES) do Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão (MPOG) há referência ao programa intitulado “Gestão Pública para um Brasil de todos – Plano de Gestão do Governo Lula” cuja escopo parte do pressuposto de que há um déficit institucional, resultante de um processo histórico de ausência do Estado na garantia de direitos individuais e sociais básicos. Segundo o documento há déficit de governança, ou seja, há incapacidade do Estado em formular e implementar políticas.
Embora se apresente como um modelo que procura diferenciar-se das experiências anteriores, são encontrados muitos pontos em comum entre as soluções apresentadas pela SEGES no governo Lula e as soluções da “nova administração pública” implantada pelo governo FHC.
O governo Dilma, em andamento, continua com o programa proposto por seu antecessor. Desse modo, até o momento, as pesquisas não revelaram nenhum ponto de inovação em termos de gestão pública.
1.2 Legalidade, eficiência e transparência na administração pública
A escolha do tripé: legalidade, eficiência e transparência, atrelados à licitação pública municipal, decorreu do fato de as pesquisas terem revelados que são estes os pontos mais problemáticos no que diz respeito aos procedimentos licitatórios. Seja porque a estrita observância à letra da norma acaba por tornar o procedimento extremamente rígido, moroso e ineficiente, seja porque, em consequência disso, o princípio da eficiência termina posto em segundo plano e, ainda, pelo fato de o gestor público, na maior parte dos casos, adotar os ditames de publicidade como obrigação legal de divulgação de alguns de seus atos, deixando de perceber que a transparência na administração pública, como será visto mais adiante, vai muito além da publicação de atos administrativos em jornais oficiais.
Antes de analisar cada um dos princípios, convém esclarecer que, segundo Cretella Junior (Revista de Informação Legislativa, v. 97:7 apud DI PIETRO, 2011, p. 63), “os princípios de uma ciência são as proposições básicas, fundamentais, típicas que condicionam todas as estruturações subsequentes. Princípios são os alicerces de uma ciência”. Nessa esteira, Di Pietro afirma que:
Sendo o Direito Administrativo, em suas origens, de elaboração pretoriana e não codificado, os princípios sempre representaram papel relevante nesse ramo do direito, permitindo à Administração e ao Judiciário estabelecer o necessário equilíbrio entre os direitos dos administrados e as prerrogativas da Administração. Os dois princípios fundamentais e que decorrem da assinalada bipolaridade do Direito Administrativo – liberdade do indivíduo e autoridade da Administração – são os princípios da legalidade e da supremacia do interesse público sobre o particular, que não são específicos do Direito Administrativo porque informam todos os ramos do direito público; no entanto, são essenciais, porque, a partir deles constroem-se todos os demais. (DI PIETRO, 2011, p. 64)
Por sua vez, Bandeira de Mello, faz uma análise acurada dos princípios que regem o Direito Administrativo atrelada às consequências decorrentes do descumprimento de eventual preceito, nos seguintes termos:
Princípio - já averbamos alhures - é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada. (BANDEIRA DE MELLO, 2013, p. 620)
Constata-se, em decorrência dos preceitos acima elencados, que os princípios são mais amplos do que os dispositivos normativos de um sistema jurídico e, portanto, servem como guia à atuação do legislativo, do executivo e do judiciário. Partindo dessa concepção é que se pretende analisar os princípios da legalidade, eficiência e transparência.
O princípio da legalidade, insculpido na CRFB/1988, possui diversas funções no que diz respeito à atuação do gestor público e dos agentes políticos do Estado. Podemos observar, notadamente, as seguintes nuances deste princípio no texto constitucional: a legalidade penal (artigo 5º, inciso XXXIX), a legalidade administrativa (artigo 37, caput) e a legalidade tributária (artigo 150, inciso I).
O conceito de legalidade evoluiu e, embora inserido, por exemplo, de forma positiva, nos artigos 5º, II e no caput do artigo 37 CRFB/1988, não é mais tido pela doutrina e pela jurisprudência pátria como mera observância à lei em sentido formal, tendo ocorrido o que Di Pietro denomina de “alargamento do princípio da legalidade, pela adoção dos princípios do Estado Democrático de Direito” (DI PIETRO, 2011, p. 29). Não obstante, Di Pietro, em conceituação mais contida, assevera, sobre o princípio da legalidade, que:
Este princípio, juntamente com o de controle da Administração pelo Poder Judiciário, nasceu com o Estado de Direito e constitui uma das principais garantias de respeito aos direitos individuais. Isto porque a lei, ao mesmo tempo em que os define, estabelece também os limites de atuação administrativa que tenha por objeto a restrição ao exercício de tais direitos em benefício da coletividade. É aqui que melhor se enquadra aquela ideia de que, na relação administrativa, a vontade administrativa é a que decorre da lei. Segundo o princípio da legalidade, a Administração Pública só pode fazer o que a lei permite. (DI PIETRO, 2011, p. 64-65)
Percebe-se pela análise da obra e, especialmente, através dos trechos citados que, embora Di Pietro concorde com a existência da atual amplitude do conceito de legalidade, a autora opta, na maior parte dos seus escritos, por uma reflexão mais clássica, ou seja, mais ligada à concepção formal da legalidade.
Celso Antônio Bandeira de Mello parte da base do Estado Democrático de Direito, insculpida no art. 1º da CRFB/88, de que “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL. Constituição, 1988) para sustentar que “O princípio da Legalidade contrapõe-se, portanto, e visceralmente, a quaisquer tendências de exacerbação pessoalista dos governantes” (BANDEIRA DE MELLO, 2011, p. 71).
O princípio da legalidade, atrelado especificamente aos procedimentos licitatórios, nas palavras de Palavéri (2003) deve ser compreendido como um princípio geral da administração pública, tanto de índole constitucional quanto de cunho legal, neste último caso tendo em vista a Lei Geral de Licitações. Assim, para o autor:
Tendo em vista que administrar nada mais é que “aplicar as leis de ofício” na precisa e sempre lembrada lição de Seabra Fagundes, no caso das licitações, realizá-las nada mais é que seguir o exigido pela legislação vigente, mormente a Lei 8.666/1993 e suas alterações, adotada como norma geral para os municípios dentro da competência legislativa conferida à União para editar tais regras (art. 22, XXVII, da Constituição Federal). (PALAVÉRI, 2003, P. 16)
Convém ressaltar que à época do lançamento da obra de Palavéri sequer havia sido esboçado o projeto de lei do RDC, tanto é que seus exemplos restringem-se, quando tratam de norma geral, à Lei Geral de Licitações. Entretanto, importante observação é feita pelo autor quando afirma que “outras normas hão de ser aplicadas, em atenção ao referido princípio, podendo os municípios – o que é pouco usual – editar regras específicas sobre a matéria” (PALAVÉRI, 2003, p. 16).
Conclui-se, portanto, que desde a edição da Lei Geral de Licitações os municípios possuem parcela de competência em matéria de licitações, especialmente no que diz respeito à elaboração de decretos regulamentadores. Nessa esteira também caminha o RDC, vez que, vários de seus dispositivos exigem regulamentação, como por exemplo: o art. 14, I, que admite a possibilidade de participação de consórcios de empresas; art. 16, caput, que cuida do modo aberto ou fechado de disputa; art. 29, parágrafo único, que trata dos procedimentos auxiliares de licitação, dentre outros.
Assim, compete aos municípios normatizar a aplicação dos procedimentos licitatórios através de normas de sua competência. Daí porque a importância de cotejar legalidade com eficiência administrativa e transparência, entendida esta última, como veremos adiante, de forma mais ampla que a mera publicidade de atos legislativos, judiciais ou administrativos na imprensa oficial. Por enquanto, ater-nos-emos ao princípio da eficiência.
O princípio da eficiência, corolário da Emenda Constitucional nº19/1998, é aquele que, invariavelmente, vai de encontro ao princípio da legalidade. Sob o manto de cumprir os ditames normativos expressos, não raro, o gestor público tende a observar a legalidade em detrimento da eficiência.
Descendente direto da Reforma do Estado e do Aparelho do Estado, de 1995, o princípio da eficiência, antes de ser elevado ao patamar de norma constitucional, veio declarado no PDRAE, nos seguintes termos:
A reforma do Estado permitirá que seu núcleo estratégico tome decisões mais corretas e efetivas, e que seus serviços - tanto os exclusivos, que funcionam diretamente sob seu comando, quanto os competitivos, que estarão apenas indiretamente subordinados na medida que se transformem em organizações públicas não-estatais - operem muito mais eficientemente. Reformar o aparelho do Estado significa garantir a esse aparelho maior governança, ou seja, maior capacidade de governar, maior condição de implementar as leis e políticas públicas. Significa tornar muito mais eficientes as atividades exclusivas de Estado, através da transformação das autarquias em “agências autônomas”, e tornar também muito mais eficientes os serviços sociais competitivos ao transformá-los em organizações públicas não-estatais de um tipo especial: as “organizações sociais”. (BRASIL. Mare. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. 1995. p. 44-45)
Podemos concluir pelo trecho acima que, durante a reforma ocorrida a partir de meados da década de 90 (noventa) do século passado, chegou-se à conclusão de que o Brasil estava imerso em uma administração pública tipicamente burocrática, auto referenciada e distante, portanto, das boas práticas de governança. Constatou-se que o Estado e seu Aparelho passavam por severa crise de eficiência, muito por conta da cultura extremamente legalista que permeava a administração pública brasileira. Desse modo, se antes a eficiência era almejada pela Administração Pública, após sua elevação a princípio expresso na Carta Magna sua observância tornou-se inafastável para a Administração Pública.
Bandeira de Mello assevera que o princípio da eficiência não passa de mera retórica, vez que, seu efeito é de difícil mensuração. Assim, o autor sustenta que falar em eficiência “é juridicamente tão fluido e de tão difícil controle ao lume do Direito, que parece mais um simples adorno agregado ao art. 37 ou o extravasamento de uma aspiração dos que burilam no texto” (BANDEIRA DE MELLO, 2011, p. 92).
No que diz respeito aos procedimentos licitatórios, até o advento do RDC, não havia norma expressa, nas leis sobre licitações, acerca do princípio da eficiência. Na Lei Geral de Licitações, por exemplo, temos enumerados os princípios no art. 3º:
Art. 3o A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. (BRASIL. Lei nº12.462, 2011)
Ser eficiente, em suma, significa utilizar os recursos disponíveis, sejam eles humanos, financeiros, tecnológicos e afins, da melhor forma possível, de modo que além de questões econômicas a Administração Pública possa, consequentemente, oferecer aos cidadãos serviços públicos de qualidade.
Nesse ponto, o RDC inovou de tal maneira que, além de trazer expresso o princípio da eficiência como um de seus paradigmas, estabeleceu a possibilidade de a Administração Pública celebrar contratos de eficiência com particulares. Como será visto no capítulo pertinente, o contrato de eficiência está atrelado à consecução do objeto em alto nível de desempenho de forma que a Administração Pública obtenha o máximo de retorno financeiro no contrato. Como exemplo de quesitos de eficiência na Lei do RDC podemos citar:
Art. 1o É instituído o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), aplicável exclusivamente às licitações e contratos necessários à realização:
1o O RDC tem por objetivos:
I - ampliar a eficiência nas contratações públicas e a competitividade entre os licitantes;
Art. 3o As licitações e contratações realizadas em conformidade com o RDC deverão observar os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da eficiência, da probidade administrativa, da economicidade, do desenvolvimento nacional sustentável, da vinculação ao instrumento convocatório e do julgamento objetivo.
Art. 23. No julgamento pelo maior retorno econômico, utilizado exclusivamente para a celebração de contratos de eficiência, as propostas serão consideradas de forma a selecionar a que proporcionará a maior economia para a administração pública decorrente da execução do contrato. (BRASIL. Lei nº12.462, 2011)
Oferecer serviços públicos de qualidade envolve, ainda, ser transparente para com o cidadão. Transparência vai além da publicação de atos legislativos, judiciais e administrativos em jornais oficiais. Transparência envolve dever de prestar contas de todos os atos possíveis, dever de disponibilizar constantemente aos cidadãos acesso aos dados e informações inerentes à gestão da coisa pública.
O princípio da transparência, embora não capitulado de forma expressa no texto constitucional e na legislação sobre licitações, vem sendo considerado um desdobramento do princípio da publicidade, de modo que:
Pode-se definir transparência da gestão como a atuação do órgão público no sentido de tornar sua conduta cotidiana, e os dados dela decorrentes, acessíveis ao público em geral. Suplanta o conceito de publicidade previsto na Constituição Federal de 1988, pois a publicidade é uma questão passiva, de se publicar determinadas informações como requisito de eficácia. A transparência vai mais além, pois se detém na garantia do acesso as informações de forma global, não somente aquelas que se deseja apresentar. O que caracteriza a transparência é o seu aspecto proativo, ou seja, de não existir, via de regra, a necessidade do cidadão buscar informações via requerimento. Essa postura proativa traz benefícios aos governos, pois melhora o fluxo das informações gerenciais com os cidadãos, contribuindo para a eficiência da ação governamental (DARBISHIRE, 2009), fortalecendo a governança e a materialização dos direitos sociais à população. (VIANA, 2011, p. 4)
Não há na legislação contemporânea sobre licitações, nem mesmo na Lei do RDC, menção expressa à transparência nos termos tratados neste trabalho. Contudo, na Lei de Acesso à Informação, combinando-se os artigos 3º, 5º e 6º podemos verificar que a transparência é princípio a ser observado em sede de licitação:
Art. 3o Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes:
[...]
IV - fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública;
Art. 5o É dever do Estado garantir o direito de acesso à informação, que será franqueada, mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão.
Art. 6o Cabe aos órgãos e entidades do poder público, observadas as normas e procedimentos específicos aplicáveis, assegurar a:
I - gestão transparente da informação, propiciando amplo acesso a ela e sua divulgação;
[...] (BRASIL. Lei nº12.527, 2011)
A fim de que tais preceitos legais sejam postos efetivamente em prática é necessária a implantação de um processo gradual e contínuo que estimule Administração Pública e cidadão ao ato comunicativo, especialmente no que tange ao modus operandi do processo ligado às expressões utilizadas em sede de licitação, normalmente muito técnicas. Assim é que poderemos, dentre outros, agregar cidadania aos princípios da legalidade, eficiência e transparência em termos de licitações públicas.