4.ESTÁTICA NORMATIVA: a estrutura interna da norma de incidência dos impostos (endonorma tributária)
O Brasil é uma federação [79], composta pela União, Estados-membros, e, fugindo à concepção clássica, de caráter dualista, Distrito Federal e o Municípios, que, entre nós, segundo as palavras de Sacha Calmon Navarro Coelho, "ostenta dignidade constitucional, mormente em matéria tributária." [80]
O poder de tributar é outorgado na Constituição da República, por seu artigo 145, que contém a regra nuclear da repartição de competências tributárias, entre as pessoas políticas que o detêm. Em outras palavras, a Carta Magna estabeleceu a esfera tributável de cada ente político.
"No plexo das faculdades legislativas que o constituinte estabeleceu, figura a de editar normas que disciplinem a matéria tributária, desde a que contemple o próprio fenômeno da incidência até aquela que dispõem a propósito de uma imensa gama de providências, circundando o núcleo da regra matriz e que tornam possível a realização concreta dos direitos subjetivos de que é titular o sujeito ativo, bem como dos deveres cometidos ao sujeito passivo." [81]
Conclui-se, portanto, que a Constituição não cria os tributos, tarefa a cargo do legislador ordinário, conforme determina o princípio da legalidade tributária, expresso no artigo 150, I da Constituição da República, pelo qual fala-se em reserva de lei material e de lei formal. A legalidade tributária e a segurança jurídica exigem lei formal, ou seja, aquele comando, além de abstrato, geral e impessoal (reserva de lei material), há de emanar de órgão legislativo (reserva de lei formal).
O legislador constitucional indicou genericamente as hipóteses, que alguns doutrinadores convencionaram chamar de "âmbito constitucional de incidência", sobre as quais criar-se-iam os tributos. Estes só existirão, abstratamente, a partir da edição, por meio de lei, de norma tributária que contenha a hipótese de incidência (aspecto material), os sujeitos ativo e passivo, a base de cálculo e a alíquota; e, concretamente, com a realização do fato gerador – fato econômico jurisdicizado a partir da incidência da norma (conseqüência endonormativa).
Entre nós, as normas tributárias stricto sensu, foram denominadas por Paulo de Barros Carvalho, em sua "Teoria da Norma Tributária", de "endonorma tributária", definidas
"como o conjunto de critérios necessários à identificação do fato lícito [82], que não o acordo de vontades, gerador do dever jurídico. Define, por sua vez, as conseqüências das normas tributárias como o conjunto de critérios esclarecedores da relação jurídica que se forma com a ocorrência in concreto do fato jurígeno (fato gerador)." [83]
Segundo este autor, na estrutura da norma tributária, deveriam estar presentes os seguintes "critérios": material, espacial, temporal, em sua hipótese; e pessoal e quantitativo, em sua conseqüência (sic), do que dissentimos em alguns pontos, acompanhando o entendimento de Sacha Calmon Navarro Coelho, pois, primeiramente, entendemos que, em lugar de critérios, haveria "aspectos", eis que poderíamos examinar a norma jurídica tributária sob diversos ângulos; em segundo lugar, deslocaríamos o aspecto pessoal para a hipótese, retirando-o da conseqüência.
"É que o fato jurígeno (um "ser", "ter", "estar" ou "fazer") está sempre ligado a uma pessoa e, às vezes, os atributos ou qualificações dessa pessoa são importantes para a delimitação da hipótese de incidência. Exemplo marcante da importância do aspecto pessoal constante das hipóteses de incidência nos oferta o "fato gerador" do ICMS. Com efeito, não basta haver circulação. É mister que a pessoa promotora da circulação seja industrial, comercial, produtor agropecuário ou prestador." [84]
Exemplificando: em relação ao Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis e de Direitos a eles relativos (Constituição da República, artigo 155, I e Código Tributário Nacional, artigo 35), teríamos, como aspecto material, a aquisição de bem imóvel; como aspecto espacial, situação do bem no território do Estado-membro, já que a instituição do imposto é da competência estadual; como aspecto temporal, prática do ato translativo do domínio, ou seja, a transmissão do bem imóvel através de escritura pública; como aspecto pessoal, a condição de adquirente, a título oneroso ou gratuito; e, por fim, como aspecto quantitativo, o valor venal do imóvel, sobre o qual incidirá determinada alíquota [85].
Para ele, não há que confundir-se o aspecto pessoal da hipótese com o critério pessoal da conseqüência, que levaria aos sujeitos ativo e passivo, que não serão necessariamente aqueles apontados pelo aspecto pessoal. Esta diferença manifesta-se nitidamente, sobretudo na hipótese da sujeição passiva por substituição, onde o indíviduo que pratica o fato gerador não é o contribuinte do tributo nos termos da definição do Código Tributário Nacional (artigo 121, I).
Em relação às taxas e contribuições de melhoria, não existem maiores dificuldades, eis que, para estas, foram eleitas, pelo legislador constitucional (Constituição da República, artigo 145, II e III), como hipóteses de incidência, atos decorrentes de poder de polícia (taxas de polícia) ou prestação de serviços públicos específicos e divisíveis, ao contribuinte ou posto a sua disposição (taxas de serviço), no que diz respeito às primeiras, e a valorização decorrente de obra pública, no que diz respeito às últimas.
Quanto aos impostos, o legislador constitucional brasileiro não dotou-lhe de características próprias, como fez em relação às demais espécies, limitando-se a estabelecer, como hipótese de incidência do imposto, certos fatos juridicamente relevantes, com resultados econômicos adjuntos, denotadores de capacidade contributiva, que, para Carlos Giuliani Fonrouge, seriam a "causa objectiva de la imposición [86], na qualidade de ato ou situação jurídica que a determinam.
"Nos países cuja Constituição juridicizou o "princípio da capacidade contributiva" convertendo-o em regra jurídica constitucional, o legislador está juridicamente obrigado a escolher para a composição da hipótese de incidência das regras jurídicas tributárias, fatos que sejam signos presuntivos de renda ou capital acima do mínimo dispensável." [87]
Apresentam como característica diferenciadora das demais exações, conferindo-lhe natureza jurídica de imposto, a não-vinculação a qualquer atividade administrativa; neste sentido, afirma-se que é um tributo sem contraprestação. [88][89]
Por exemplo, com relação aos impostos de competência da União, seriam as seguintes manifestações de capacidade econômica ou, em outras palavras, fatos jurídicos de relevância econômica: a importação de produtos estrangeiros; a exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; a obtenção de renda ou proventos de qualquer natureza; a produção industrial; as operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários; e as grandes fortunas (Constituição da República, artigo 153), nas quais evidencia-se um "ser" ou "fazer" do contribuinte, totalmente independente de qualquer atividade estatal.
Poder-se-ia afirmar, assim, segundo Ernst Blumenstein e A.D.Giannini, citados por Dino Jarach, que "cualquier hecho es de por sí idóneo para constituir el presupuesto del impuesto." [90], desde que não correspondam a uma atividade estatal, acrescente-se.
Examinemos, pois, quais seriam estes fatos, hábeis a tornarem-se pressupostos do imposto, que, evidentemente, hão de apresentar-se como manifestação de capacidade econômica da pessoa ou, nas palavras de Dino Jarach, aqueles que
"tienen como característica la de presentar un estado o un movimiento de riqueza; esto se comprueba com el análisis inductivo del derecho positivo y corresponde al criterio financiero que es próprio del impuesto: el Estado exige una suma de dinero en situaciones que indican una capacidad contributiva." [91]
Não deixaremos de tecer algumas considerações sobre o princípio da capacidade contributiva, sem contudo ter a pretensão de nos aprofundar, nas modestas lindes da presente dissertação, em tema tão relevante, cujo conteúdo transcende os limites do Direito.
Embora presente em todos os tributos, a capacidade contributiva é justamente o pressuposto do imposto, que tem por hipótese de incidência um fato jurídico de relevância econômica. Tamanha a sua importância como instrumento de efetivação da justiça fiscal, que, na busca de um critério mais justo para a tributação, em boa hora a Constituição da República de 1988 estabeleceu como dogma constitucional a pessoalidade do imposto (artigo 145, §1º), regulada pelas condições individuais do contribuinte (faixa de rendimentos, idade, estado civil, filhos, domicílio, existência de patrimônio e/ou dívidas), que determinam sua capacidade econômica ou contributiva.
Ignorando a situação pessoal do contribuinte, o imposto real, ao contrário, incide apenas sobre a matéria tributável, atentando exclusivamente para o fato gerador, isto é, para a descrição do suporte fático da hipótese de incidência, como nos serviços telefônicos (Imposto sobre Prestação de Serviços de Comunicação).
Existem autores que desdobram o princípio em dois: capacidade contributiva objetiva ou absoluta, que seria a manifestação de riqueza suscetível de ser tributada ou a existência de um fato jurídico de conteúdo econômico; e capacidade contributiva subjetiva ou relativa, que serviria como limite individual de graduação do imposto. Assim, para que a tributação seja justa, com a devida repartição do ônus fiscal, os dois critérios deverão ser atendidos concomitantemente.
O princípio da capacidade contributiva é a manifestação, no Direito Tributário, do princípio da igualdade ou da isonomia (Constituição da República, artigo 5º, caput), como fundamento da justiça fiscal, inafastável da concepção de Estado de Direito, que seria desdobrado em quatro aspectos:
"1) igualdad en la ley, en el sentido de que la ley no debe establecer desigualdaddes, que en D.T. se concreta en la igualdad antes las cargas públicas;
2) igualdad por la ley, en el sentido de que ésta seria utilizada como instrumento para lograr una igualdad de los indivíduos, corrigiendo las desigualdades económicas imperantes;
3) igualdad ante la ley, que significa que la norma debe ser aplicada con criterio de estricta igualdad, a todos los afectados por ella; e
4) igualdad de las partes, ínsito en la concepción de la obligación tributaria como una relación jurídica de crédito y débito, y no como una relación de poder." [92]
4.1.É A BASE DE CÁLCULO O NÚCLEO DA HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA?
Considera-se a base de cálculo, conjugada a uma alíquota, o aspecto quantitativo da hipótese de incidência do tributo, presente na conseqüência da norma, conforme já afirmamos anteriormente.
Isto quer dizer que, através da base de cálculo, podemos dimensionar a grandeza da exação, proporcionalmente à capacidade contributiva manifestada pelo indivíduo.
Todavia, existem autores, como Alfredo Augusto Becker que consideram a base de cálculo como o núcleo da hipótese de incidência, "... e confere o gênero jurídico do tributo" [93] e Aliomar Baleeiro, para quem ela é "o próprio fato fato gerador ou fato descrito na hipótese em seu aspecto matéria, definindo-se, por meio dele, a espécie tributária criada" [94].
Embora não queiramos minimizar sua importância na estrutura do tributo, não a vemos, isoladamente, como o elemento diferenciador das espécies tributárias, filiando-nos à corrente que lhe atribui, juntamente com a alíquota, a função de quantificar a obrigação tributária. [95][96]
De fato, a base de cálculo, considerada como elemento quantificador da hipótese de incidência, há de ser coerente com esta, sob pena de prejudicar-se a própria cobrança da exação, que, então, estará eivada de inconstitucionalidade. Não podemos, por esta razão, dissentir daqueles que julgam-na essencial à identificação da exação, em gênero e espécie. [97]
Concluimos, então, que a base de cálculo deve refletir o fato apontado pela hipótese de incidência: se o imposto é sobre a renda, deverá incidir sobre os rendimentos auferidos do aluguel e não sobre o valor venal do imóvel alugado; se o imposto incide sobre a propriedade de veículos automotores, deve incidir sobre seu valor venal e assim por diante [98]
5.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da característica de tributo não vinculado à atuação estatal especificamente dirigida ao contribuinte, resulta a flexibilidade ou discricionariedade do imposto, pelo que o ente tributante pode decidir não só acerca de sua instituição, no âmbito daquele conjunto de fatos econômicos autorizados pelo legislador constitucional, bem como sobre o destino do produto de sua arrecadação, que deverá integrar a massa de receitas do Estado. [99]
Acrescente-se que existe vedação constitucional para a afetação da receita oriunda de impostos (CRFB, artigo 167, IV), sob pena de desvio de finalidade de sua instituição, muito bem examinada por Sacha Calmon Navarro Coelho:
"A razão de ser deste artigo é simples e singela. Baseia-se no princípio da separação dos Poderes, tão caro aos ideais republicanos. (...) Para administrar, o Executivo precisa de meios para atingir os seus fins. Na medida que o Legislativo, em matéria tributária, pudesse vincular os recursos advindos da cobrança dos impostos a órgãos, fundos, programas e despesas, com isso retiraria do Executivo o manejo dos recursos, segundo as necessidades e prioridades fixadas pelo mesmo. (...) Todavia, como a proibição se refere a impostos, que são espécie por demais conhecida do gênero tributo, ficaram livres da vedação as denominadas contribuições (sociais, previdenciárias, interventivas e corporativas) e também as taxas. (...) A escolha de fins determinados para afetar a receita de impostos, entre nós, necessita de licença na Lei Maior e é uma opção exclusiva do legislador da Constituição." [100]
Apenas para ilustrar, temos como exemplo a criação do IPMF (Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira), assim denominado por ter como hipótese de incidência desta espécie tributária e não ter o produto de sua arrecadação afeto a fim específico. Posteriormente, a fim de atender aos apelos de recursos da saúde pública, criou-se a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), exatamente para que se pudesse escoar todos aqueles recursos para o fim pretendido.
Infelizmente, esta não foi nem terá sido a primeira vez que o legislador ordinário, no uso de seu poder tributante, conferido pela Carta Magna, institui tributo eqüivocadamente, o que gera um sem número de medidas judiciais, propugnando por sua inconstitucionalidade e congestionando cada vez mais o já assoberbado Poder Judiciário. Isto ocorre pela ignorância, descaso e não observância da natureza e peculiaridades de cada espécie tributária, bem como das limitações, ou limites, como prefere Flávio Bauer Novelli [101], constitucionais que lhe são afetos.