SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1. Da relação obrigacional como um sistema de processos: a cooperação como finalidade; 2. O contrato como realidade concreta: por uma ética material de justiça contratual; 3. O adimplemento da obrigação: da estrutura para a funcionalidade; 4. O adimplemento da obrigação: da estrutura para a funcionalidade; 5. A abrangência do cumprimento imperfeito como fator de complexidade: da violação positiva do contrato ao adimplemento substancial; 6. Crítica à aplicação prática da doutrina do adimplemento substancial pelos tribunais brasileiros. CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
NTRODUÇÃO
A disciplina do Direito Civil patrimonial constitui um dos institutos jurídicos mais antigos, possuindo, especialmente, uma construção meticulosa no que concerne a disciplina dos contratos e relações obrigacionais ao longo da história. Todavia, a partir de mudanças abruptas ocorridas durante o século XX como a evasão de princípios sociais na esfera do Direito Civil e o estímulo deste a tutelar a igualdade substancial para além da igualdade formal entre os sujeitos das relações jurídicas, percebe-se sistematicamente o surgimento de novas doutrinas e mudanças impactantes sobre o Direito Privado.
Uma onda de mudanças tal cuja sua magnitude modificou a própria estrutura das relações obrigacionais como também a dogmática contratual. A partir da nova concepção das obrigações enquanto relações dinâmicas e da efusão dos princípios da boa-fé, isonomia material das partes e função social da propriedade sobre as relações contratuais, entram em cheque situações jurídicas cujas partes possam exercer livremente abuso de direito, estando amparadas por direitos subjetivos incondicionados causando, por exemplo, enriquecimento ilícito próprio e lesão para com a outra parte.
Dentro deste contexto, estão em tela as formas de extinção das relações obrigacionais e contratuais, especialmente o instituto da resolução. Posto que frente a este e sua mecânica clássica, surge a doutrina do adimplemento substancial que analisa o cumprimento da obrigação em consonância com a realização do seu aspecto funcional, passando a voltar-se para com os interesses juridicamente relevantes surgidos de acordo com a relação e buscando minorar os eventuais impactos negativos vindos da extinção do contrato de forma anormal e diversa daquela pela qual se justifica sua existência. Sendo, então, tal doutrina, uma construção hermenêutica ainda em formação e de respaldo teórico e pragmático largamente impactante para com a realidade econômica das relações negociais praticadas comumente.
1. Da relação obrigacional como um sistema de processos: a cooperação como finalidade.
O direito das obrigações é uma das instituições jurídicas mais antigas e estáveis, constituindo-se enquanto rica herança conceitual e produto da cultura jurídica romana. A “obligatio”, em sua compreensão clássica, é um vínculo jurídico sobre o qual uma pessoa (o devedor) é compelida frente à outra (o credor) em vista de realizar uma determinada prestação, inclusive, tendo-se sempre por implícita a pressuposição de que as partes são juridicamente equiparadas na hora de se estabelecer um vínculo. Essa, desenvolvida enquanto conceito unitário, é o produto da fusão entre o débito (ou dever de cumprir a prestação), e a responsabilidade (ou sujeição que se deriva do descumprimento). Não obstante o seu ulterior refinamento, enquanto construção dogmática ainda não plenamente desenvolvida e fruto do período pré-clássico romano, a obligatio foi inicialmente pensada enquanto um vínculo da própria pessoa, uma submissão pessoal ao poder (manus) do credor próprio ou alheio. O obligatus não era um devedor no sentido considerado contemporaneamente, senão uma pessoa submetida ao credor, e sobre a qual lhe é possível satisfazer no caso desta não observar o comportamento devido.[1]
Destarte os períodos finais da época republicana, em sua fase evolutiva, a obligatio perde seu velho caráter de vínculo físico, convertendo-se em vínculo jurídico ideal, tal nova contratação dá vida a “direitos perfeitos de crédito”, tornando pessoalmente responsável o devedor com todos seus bens.[2]
Muitos séculos depois, ensinou Pontes de Miranda que falar de “Direito das Obrigações” já é restringir o conceito de obrigações a tal ponto que esta, em seu sentido estrito, pré-exclui todo um plexo de diversas relações jurídicas, inclusive, dentro da própria disciplina do Direito Civil. Desta feita, o Direito das Obrigações é o campo mais vasto dos direitos relativos ou pessoais.[3]
Portanto, através de uma herança proveniente da vasta cultura jurídica romana e do desenvolvimento e sistematização da ciência jurídica até o final do século XIX, é compreendida a obrigação civil em sentido estrito, em sua conceituação clássica, como a relação jurídica entre duas (ou algumas) pessoas, decorrendo para uma delas ou a algumas (ao debitor) estar suscetível a poder ser exigida, pela outra ou outras (creditor) uma prestação, de modo que, a pretensão está para o credor assim como a obrigação está para o devedor. Frente ao credor há sempre o devedor pessoal, raramente a sua pretensão alcançando a terceiro, é por isto que se considera o Direito das Obrigações enquanto o campo maior dos direitos relativos.[4]
A obrigação não existe por e para si mesma, justificando-se, então, pelo adimplemento e a subsequente satisfação do interesse do credor, de modo que pode-se falar em um programa obrigacional enquanto programa de cumprimento. A polarização do adimplemento para a satisfação objetiva do credor pari passu o desenvolvimento da relação obrigacional enquanto estrutura complexa e orgânica ocorreu enquanto um longo fenômeno de harmonização e complementação dos principais elementos contidos nas noções subjetivas, adotadas no direito romano, e objetivas, adotadas pelos juristas germânicos no período clássico, colaborando estas duas teses para a definição do conteúdo obrigacional. Pode-se dizer que a moderna teoria do adimplemento rege-se pela conjunção do princípio da pontualidade (corolário da autonomia da vontade) e o princípio da boa-fé objetiva.[5]
Pela concepção romanista o vínculo obrigacional era compreendido de forma muito restrita, consequentemente a importância do fator responsabilidade era drasticamente elevada em relação ao débito, de modo que a obrigação acabava sendo vista enquanto um poder do credor sobre a pessoa do devedor. Esta visão subjetivista por parte dos romanos ignorou o destino econômico e social da obrigação enquanto um de seus elementos fundamentais. Já o paradigma ideológico e jurídico proposto pelos doutrinadores clássicos em contraposição a escola romana determinou uma teoria das fontes contratuais restrita à noção de autonomia da vontade, de forma a não ser considerado qualquer elemento não expresso pela vontade das partes para com a constituição do vínculo obrigacional. Logo, o modelo dos clássicos carecia de uma análise objetiva da obrigação em detrimento de seus aspectos teleológicos e sociais.[6]
O conceito de relação jurídica foi exaustivamente analisado, notadamente com a Pandectística no século XIX, todavia, embora a rica produção científica, a obrigação era enquadrada em noções atomísticas que a reduziam em conceitos estáticos. Tal noção não mais se aplica para com a atual orientação dada pela ciência do direito sobre a relação obrigacional enquanto uma totalidade de diversos outros elementos encadeados dinamicamente entre si. Lato sensu seriam todos os direitos (inclusive o formativo), pretensões e ações, deveres (principais e secundários, dependentes e independentes), obrigações, exceções, e, ainda, posições jurídicas. Já strico sensu define-se pelos elementos que compõem o crédito e o débito.[7] Nas palavras do próprio Couto e Silva: “Como totalidade, a relação obrigacional é um sistema de processos”.[8]
Tal inovação, no que diz respeito ao trato da relação jurídica enquanto totalidade é proveniente do conceito de vínculo comoo uma ordem de cooperação, formadora de uma unidade que não se esgota na soma dos elementos que a compõem. Desta feita, a obrigação, vista como processo, compõe-se, em sentido largo, do conjunto de atividades necessárias à satisfação do interesse do credor, sendo indispensável se distinguir dogmaticamente os planos em que se desenvolve e se adimple a obrigação. Os atos praticados tanto pelo credor como pelo devedor estão inter-relacionados, possuem consequências no plano da eficácia do mundo jurídico e, principalmente, ocorrem de acordo com uma finalidade imanente que de maneira precisa determina a própria concepção da obrigação como processo. É a finalidade, portanto, o eixo polarizador do vínculo jurídico e a ele inerente, sendo a própria concepção de obrigação como processo somente possível quando o sistema jurídico admite posição de relevância para com o nexo finalístico.[9]
As doutrinas objetivas, em superação à concepção clássica do conteúdo obrigacional, deslocam o eixo da relação obrigacional para a satisfação do interesse do credor. O elemento decisivo para se considerar a ocorrência do adimplemento é, portanto, patrimonial ao contrário do pessoal, ou seja, o conteúdo da obrigação é o bem devido e não o dever de prestar. Ante o adimplemento como realização do conteúdo da obrigação pelo devedor, torna-se necessário a atividade solutória do devedor, ou seja, os atos materiais previstos no contrato, bem como a satisfação dos interesses do credor, analisados de maneira objetiva, de acordo com a tipicidade da obrigação.[10]
Durante o início do século XX, tanto a doutrina como a jurisprudência alemã haviam modificado radicalmente o direito das obrigações do BGB de modo que a relação obrigacional tornou-se numa ordem compreensiva de direitos e obrigações, cujo conteúdo concreto é orientado em larga medida pela função social típica de contrato obrigacional. A relação obrigacional foi reconhecida enquanto uma relação jurídica complexa (“organismos”) de contornos vastos e alastrantes em que podem ser deduzidos não só múltiplos deveres acessórios e “deveres de proteção” de caráter geral, tanto do lado de uma das partes como do lado da outra, mas também assunções de deveres pré-contratuais (culpa in contrahendo) e uma responsabilização contratual do respectivo credor (culpa in exigindo). O direito comum das obrigações que apenas conhecia dois tipos de não cumprimento, ou seja, o inadimplemento definitivo (“impossibilidade”) e o retardamento da ação do cumprimento (“mora”), passa a considerar todo um novo plexo de casos de violação dos deveres contratuais (cumprimento defeituoso) obrigando à indenização dos prejuízos e habilitando a outra parte à denuncia do contrato.[11]
A partir desta evolução, foi impondo-se progressivamente a perspectiva de que os três tipos (omissão, mora e cumprimento defeituoso da prestação principal) eram apenas aspectos particulares de um cumprimento da prestação gerador de responsabilidade. Tal evolução é típica de um abandono trabalhoso e contínuo das posições da pandectística, posto que as hipóteses restritas e incompletas de cumprimento defeituoso do BGB fundavam-se em generalizações a partir das fontes romanísticas cuja figura da impossibilidade definitiva estava limitada à obrigação individual proveniente da stipulatio. Um grande ponto de apoio para esta nova perspectiva se deu pela exploração da estrutura particular das relações obrigacionais duradouras e reiteradas visto que a jurisprudência germânica aperfeiçoou as determinações dos vínculos jurídicos individuais no sentido do princípio geral da denúncia em virtude de “causas graves” e seguidamente substituiu também, de forma a também progressivamente as realidade sociais da relação contratual, a anulação com efeitos retroativos pela denúncia com efeitos ex nunc.[12]
Na passagem do século XX para a contemporaneidade do contexto brasileiro, percebe-se, como no caso alemão, um conjunto de influxos responsáveis pela passagem da configuração vertical para horizontal da relação jurídica obrigacional, subvertendo o que era antes entendido como a superioridade do direito do credor frente ao devedor em prol de um modelo centrado na coordenação do interesse das partes. Influxos históricos estes que podem ser situados nas sucessivas transformações operadas no direito privado brasileiro à partir da constitucionalização do direito civil, da incidência dos princípios sociais da boa-fé objetiva, da função social e da equivalência material nas relações jurídicas negociais, e das aplicações das teorias da imprevisão e da lesão dos contratos conduziram, forçosamente, à uma nova compreensão da relação jurídica obrigacional adequada às suas vicissitudes.[13]
Tais novos deveres que surgiram com o desenvolvimento e maior complexidade das relações obrigacionais e negócios jurídicos decorrem dos princípios normativos de caráter constitucional e infraconstitucional. Tendo estes, no direito brasileiro, caráter normativo cogente, com primazia, inclusive, sobre a convenção das partes e integração necessária ao ato ou negócio jurídico. Sendo então os deveres gerais de conduta resultantes do estipulado entre as partes, do princípio da boa-fé objetiva, das circunstâncias, e das exigências do tráfico social. A evolução do direito tornou estes deveres gerais de conduta imponentes tanto ao devedor como ao credor e, em determinadas circunstâncias, a terceiros. Derivando diretamente dos princípios normativos e irradiando-se sobre a relação jurídica obrigacional e seus efeitos, conformando e determinando, de modo cogente o débito e o crédito, de modo que ao não derivarem da relação jurídica obrigacional, e muito menos do dever de adimplemento, servem a estes enquanto limites externos ou negativos e internos ou positivos. Tais deveres não podem ser demandados autonomamente, todavia, sua violação fundamenta a obrigação de indenização ou, ante certas circunstâncias, a resolução do negócio jurídico.[14]
Pode-se considerar a ascensão da boa-fé e suas consequentes implicações para com o ramo patrimonial do Direito Civil enquanto um emergir, na atualidade, de uma tradição juspositiva definitivamente desligada dos textos codificados em detrimento de uma enorme dimensão alcançada pelas aplicações jurisprudenciais. Desligando-se de suas aplicações práticas e concretização particulares, a boa-fé envolve um metadiscurso desenvolvido a partir de generalizações ou de simples generalidades, surgindo, em primeiro lugar, como remissão ética. A boa-fé tomaria corpo sempre quando se constitui uma relação particular entre seus intervenientes, assumindo em seu âmbito uma exigência superior, cuja atuação não se resumiria ao estabelecimento de limites à atuação das pessoas, mas também, prescrevendo positivamente determinados deveres.[15]
Enquanto que para a boa-fé subjetiva, em seu núcleo, reparte-se em dois vetores essenciais orientados pela proteção da confiança e a tutela das realidades materiais subjacentes às situações onde a boa-fé é chamada a intervir, com primado para a propriedade. O dever de agir da boa-fé objetiva projeta nas obrigações, e em geral, nas áreas dominadas por permissões genéricas de atuação, a necessidade de respeitar vetores fundamentais do sistema jurídico, com realce para a tutela da confiança e materialidade das situações subjacentes, avultando ainda um certo equilíbrio entre a posição das partes.[16]