Resumo: O presente trabalho visa explorar os elementos e características do Instituto do patrimônio de afetação, tendo como base pesquisa doutrinária e jurisprudência, consubstanciado pela experiência profissional jurídica na área imobiliária. Em tempos de crise nunca foi tão importante para o cidadão ter a sua própria casa, a qual representa o seu porto seguro. Entretanto, adquirir um imóvel não é uma coisa fácil, tampouco barata, o que torna atrativo os imóveis em construção, na maioria das vezes mais acessíveis. Contudo, esse sonho é realizado com facilidade, obrigando a pessoa a encarar dívidas, abrir mãos de economias de uma vida, ficando muitas vezes a mercê de evento futuro, não raras as vezes, incerto. Sendo o imóvel a ser construído, até o momento da transmissão ao adquirente de propriedade do Incorporador, é certo que eventualmente sobrevindo dívidas sobre ele, à possibilidade desse bem vir a responder por essas, é grande. Assim a Lei. 10.931, de 2 de agosto de 2004, veio alterar dispositivos da Lei 4.591/64, surgindo o “Patrimônio de Afetação”. Trata-se, então de um regime de afetação, que se constitui na separação do terreno e dos direitos da constituição sobre ele do patrimônio do incorporador. Com isso, o bem fica absolutamente adstrito a realização da incorporação bem como a entrega das unidades. Portanto, não se comunica com os bens particulares do incorporador. Dessa forma, o presente artigo tem como objetivo abordar o tema, levantando as questões que permeiam o regime, refletindo sobre o real beneficio desse instituto para o comprador.
Palavras-chave: : Patrimônio de afetação. Construção. Incorporação. Segurança.
Sumário: 1. Definição de incorporação imobiliária. 2. Patrimônio de afetação. 2.1. Constituição do patrimônio de afetação. 2.2. Fiscalização pela comissão de representantes. 2.3. Obrigações do incorporador. 2.4. Extinção do patrimônio de afetação. 3. Da falência do incorporador. 4. Da tributação do patrimônio de afetação. 5. Da desproteção do adquirente. Conclusão.
1. DEFINIÇÃO DE INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA
Para que se adentre no tema do presente trabalho, há que se esclarecer como se origina a necessidade de sua instituição.
Nesse passo, observe-se que a definição de incorporação imobiliária vem descrita na própria Legislação, no parágrafo único, do artigo 28, da Lei 4.591/64:
Art. 28. [...] Parágrafo único. Para efeito desta Lei, considera-se incorporação imobiliária a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas.
Dessa forma, temos que a incorporação imobiliária é uma necessidade de se formalizar, regularizando a construção e a alienação do empreendimento imobiliário.
É ainda a atividade empresarial com o intuito de comercializar a alienação de unidades imobiliárias em edificações coletivas autônomas, com pagamento a vista ou em prestações.
Na doutrina de Maria Helena Diniz:
“Incorporação imobiliária como o instituto jurídico ligado ao direito civil e relacionado com a aglutinação de interesses Visando à edificação de imóveis em regime condominial, embora a incorporação de edifício seja uma atividade mercantil por natureza, e o incorporador constitua uma empresa comercial imobiliária.”
Portanto, a Incorporação Imobiliária, que tem como foco incorporar lotes, tendo a obrigação de construir nos ditames da citada Lei 4591/64, artigos 28 e 68), não se admitindo a transferência do encargo da Construção ao adquirente, sob pena de burlar a Lei 6.766/1979. Assim, entende-se que a Incorporação Imobiliária é imprescindível nos casos de edifícios pendentes de construção, os quais foram alienados, com promessa de entrega futura e por oferta pública.
Após referida analise, diante de tantos adquirentes de um mesmo empreendimento, compreendido pelos terrenos e pelas futuras construções das unidades autônomas, tem-se diversos “futuros “ proprietários em razão das relações jurídicas entre todos.
Nesse passo, imperiosa é a “instituição do Condomínio a fim de regular as relações existentes entre todos”. Referida instituição de Condomínio, dada após a construção, nos termos dos artigos 1331 e 1332, do Código Civil, alterou a legislação anterior, 4591/64, onde determinava o estabelecimento da instituição mediante o cálculo de frações. Já o Código Civil atual, Lei 10.406/2002, estabeleceu novo critério, sendo o valor de cada unidade.
Atualmente, de acordo com o artigo 1331, paragrafo 3º, nos dizeres de Scavone, inicialmente é verificada a áreas das unidades em razão do todo, de tal sorte que cada unidade representará um percentual de participação sobre as chamadas áreas comuns. Com esse percentual, portanto, as frações ideais no terreno são calculadas. O resultado é a “especificação do condomínio”. 1
Verte esclarecer, contudo, que é possível a instituição do Condomínio, sem a prévia “Incorporação”, no entendimento de João Nascimento Franco e Nisske Gondo2 podendo ser levada a efeito nas seguintes hipóteses: a) edifícios em situação condominial irregular, (geralmente antigos e de um só dono); b) edifícios vendidos após a construção e, c) edifícios construídos por grupos fechados, como por exemplo, amigos que se reúnem, aprovam uma planta e levam a efeito a construção.3
2. PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO
Na Década de 90, o Mercado Imobiliário foi abalado com a falência da Encol, o que trouxe muito prejuízo para vários adquirentes de imóvel. Referida falência desestabilizou o mercado, trazendo verdadeiro temor para negociações de imóveis em condições parecidas com aqueles.
Para Bruno Matos e Silva: “Trata-se de mais uma tentativa de fazer com que as incorporações imobiliárias sejam mais seguras”. A sociedade brasileira ainda está (e com muita razão) traumatizada com o “Episódio da Encol”.4
Com a MP nº 2.221, de 4 de setembro de 2001, começou a se falar no patrimônio de afetação, tida e havida pelo Mercado Imobiliário na época com a “salvação” para insolvência no setor da construção imobiliária, ao proteger credores e compradores.
Surge com a Lei 10.931, de 2 de agosto de 2004, o Patrimônio de Afetação, a qual veio alterar a legislação acrescentou dispositivos na Lei 4. 591/1964. Tal norma surgiu com o intuito de proteger os compradores de imóveis em construção tempos após decretação da falência da Encol, onde muitos adquirentes de uma hora para outra perderam tudo o que haviam investido na compra da casa própria.
Buscando dar segurança a esses adquirentes surge o patrimônio de afetação, o qual, uma vez constituído, mantém de forma separada do patrimônio do Incorporador, o qual responderá exclusivamente pela própria incorporação.
Nos dizeres de Vicente de Paula Marques Filho, in Incorporação Imobiliária & Patrimônio de Afetação, a lei criou uma blindagem em favor dos compromissários compradores e das instituições financeiras, pois, no caso de falência do incorporador, impede que credores estranhos ao empreendimento, possam penhorar o patrimônio objeto de afetação.5·. Além disso, tal “segurança” estimulou novos negócios, face à segurança prometida.
Assim sendo o patrimônio de afetação só responde por dividas e obrigações vinculadas à própria incorporação.
Em que pese a Constituição do patrimônio ser uma opção do incorporador, ela trás benefícios ao comprador. Sua constituição gera maior credibilidade ao empreendimento, o que ocasionará um incremento nas vendas na planta, favorecendo os adquirentes.
Nas lições de Caio Mário da Silva Pereira “apud” SCAVONE, p.146, 2015:
“Trata-se de engenhosa concepção pela qual bem objeto da afetação passa a vincular-se a um fim determinado, são gravados com um encargo ou são sujeitos a uma restrição, de modo que, separados do patrimônio e afetados a um fim, são tratados como bens independentes do patrimônio geral do indivíduo”.6
Ainda, conforme o citado Scavone:
"Patrimônio de afetação consiste na separação do terreno e nos direitos da constituição a ele vinculados, do patrimônio do incorporador, que por opção deste, passa a ser destinada exclusivamente a consecução da própria incorporação em proveito dos futuros adquirentes, garantindo, igualmente, as obrigações exclusivamente ligadas a realização do empreendimento.”7
Assim sendo com a separação dos bens do incorporador e da própria incorporação, há a contabilidade própria dessa e em caso de falência daquela, os adquirentes poderão dar continuidade à obra. Tal possiblidade prevista na Lei 10.935/2004 é exatamente o contrario do que acontecia antes, posto que a própria incorporação pudesse vir a responder pelas dívidas do incorporador. Contudo, mesmo com o patrimônio afetado, as obrigações assumidas pelo incorporador para a consecução do empreendimento deverão ser suportadas.8
2.1. Constituição do patrimônio de Afetação
Patrimônio de afetação é tido como regime em mantem-se o patrimônio separado da Incorporador-Construtora o terreno e as benfeitoras o terreno e as benfeitorias que serão objeto de construção de imóveis financiados.9
Os recursos advindos da comercialização das unidades deverão ser utilizados exclusivamente na realização da obra; tem-se então, a blindagem de todo o empreendimento imobiliário.
De acordo com a lei, constitui-se o patrimônio de afetação pela averbação na matricula do imóvel:
“Art. 31-B. Considera-se constituído o patrimônio de afetação mediante averbação, a qualquer tempo, no Registro de Imóveis, de termo firmado pelo incorporador e, quando for o caso, também pelos titulares de direitos reais de aquisição sobre o terreno”.10
§ 10. A constituição de patrimônios de afetação separados de que trata o § 9o deverá estar declarada no memorial de incorporação. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)11
§ 11. Nas incorporações objeto de financiamento, a comercialização das unidades deverá contar com a anuência da instituição financiadora ou deverá ser a ela cientificada, conforme vier a ser estabelecido no contrato de financiamento. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)
A afetação poderá ser requerida no memorial de incorporação ou em momento posterior, mas até a conclusão da obra (Habite-se).
Havendo a constituição de Patrimônio de afetação após a venda das unidades, os Cartórios poderão exigir a anuência dos adquirentes, entretanto, como a legislação determina que o Incorporador possa sujeitar-se ao regime de Afetação, não é o correto.
Entretanto, independentemente do momento que se faça submeta ao regime, somente através da averbação na matricula é dada publicidade ao ato de constituição do patrimônio de afetação.
Para Luiz Guilherme Loureiro12, “A publicidade registral pode ser definida como garantia dos direitos reais inscritos e, tal como estão inscritos, da pessoa que consta como titular registral: e ainda como garantia da tutela dos interesses daqueles que confiando nas informações constantes do Registro, realizam negócios jurídicos imobiliários. A publicidade registral, assim, é uma presunção de veracidade e integridade do registro para todo aquele que confia no registro e inscreve o titulo de aquisição do imóvel”. Assim, havendo a averbação nesse sentido, não poderá haver constrições senão para o término da obra.
Outrossim, é imperioso salientar a questão da existência de garantia real dada a credores antes da constituição do patrimônio de afetação, face à garantia em si: Artigo 31-B: “Parágrafo único”. A averbação não será obstada pela existência de ônus reais que tenham sido constituídos sobre o imóvel objeto da incorporação para garantia do pagamento do preço de sua aquisição ou do cumprimento de obrigação de construir o empreendimento. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004).
2.2. Fiscalização pela comissão de representantes
O Patrimônio afetado será objeto de fiscalização a ser realizada pela Comissão de Representantes da Incorporação. Tal providencia está estabelecida no artigo 50, da Lei 4591/64: Art. 50. Será designada no contrato de construção ou eleita em Assembleia geral uma Comissão de Representantes composta de três membros, pelo menos, escolhidos entre os adquirentes, para representá-los perante o construtor ou, no caso do art. 43, ao incorporador, em tudo o que interessar ao bom andamento da incorporação, e, em especial, perante terceiros, para praticar os atos resultantes da aplicação dos arts. 31-A 31-F.
A Comissão de Representantes deverá ser composta por adquirentes, pessoas distintas do incorporador13. No caso de a obra iniciar sem que tenha havido venda, os adquirentes, à medida que as vendas forem se processando, deverão se mobilizar para constituir a Comissão. Os referidos representares têm poderes de fiscalização nos seguintes termos atribuídos pela lei.
Entretanto, as decisões dessa comissão poderão ser alteradas pelo voto da maioria absoluta dos adquirentes, tal qual dispõe o 14parágrafo 2º, do citado artigo.
Outrossim, no caso de quebra, caberá a 1/6 dos adquirentes convocarem assembleia no caso de haver omissão por parte da Comissão dos Representantes, isso por analogia ao paragrafo 1º, do artigo 31-F, da Lei 4.591/64, conforme entendimento de Luiz Antônio Scavone Junior15 que: Na ausência de dispositivo legal regulando a forma de convocação para essas alterações”.
A Comissão poderá delegar a sua função de fiscalização para terceira pessoa, que pode ser física ou jurídica, os quais terão conhecimento de informações sigilosas, comerciais e tributárias.
A remuneração16 das mesmas será suportada pela Comissão de Representantes e pela Instituição Financeira, nos termos do Artigo 31-C.
É importante ressaltar, que a Comissão será responsabilizada nos termos do artigo 186 e 927, do Código Civil Brasileiro nos casos de omissão, pela falta de fiscalização em que gere dano aos adquirentes.
2.3. Obrigações do Incorporador
A incorporação imobiliária submetida ao patrimônio de afetação, nos termos do Artigo 31-D, da Lei 4591/64, impõe ao incorporador uma série de responsabilidade, as quais visam facilitar a fiscalização da Comissão de Representantes.
Assim sendo, cabe ao incorporador adotar todas as providencias cabíveis para a administração e preservação do patrimônio de afetação, inclusive medidas judiciais; manter apartados os bens de cada incorporação, captar recursos necessários para a incorporação e aplicar na forma da legislação, preservando os recursos para a conclusão da obra; entregar a Comissão de Representantes, a cada três meses, demonstrativo do estado da obra e sua correspondência com o prazo pactuado ou os recursos financeiros que integrem o patrimônio de afetação recebido no período.
Além dessas obrigações, deve ainda o Incorporador manter e movimentar a conta do patrimônio de afetação, mantendo a escrituração contábil completa, sendo proibida a confusão patrimonial. Deverá ainda, entregar os balancetes à Comissão de Representantes a cada três meses relativo ao patrimônio de afetação e assegurar o livre acesso às informações a pessoa nomeada pelos representantes (artigo 31-C).
2.4. Extinção do Patrimônio de Afetação
A constituição do patrimônio de afetação visa garantir a construção e entrega das unidades, a segurança para os adquirentes. Também, pode-se dizer que atribui ao incorporador credibilidade à sua obra
Assim sendo, com a ocorrência das extinções das obrigações do incorporador, se extingue o patrimônio de afetação, da seguinte forma: “Ao incorporador optar pelo Regime de afetação (Artigo 31-A, da Lei 4.591/64) somente se desincumbirá da obrigação: I - averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento; II - revogação em razão de denúncia da incorporação, depois de restituídas aos adquirentes as quantias por eles pagas (art. 36), ou de outras hipóteses previstas em lei; e III - liquidação deliberada pela assembleia geral nos termos do art. 31-F, § 1o.
Portanto, uma vez cumpridas às obrigações, ou com a entrega das unidades mediante o registro dos títulos de domínio ou direito de aquisição ou pelo pagamento do financiamento, ocorrerá à extinção da obrigação.
3. DA FALÊNCIA DO INCORPORADOR
Na ocorrência da falência do incorporador essa não atinge o patrimônio de afetação conforme asseverado alhures, nos termos do Artigo 31-F, da Lei 4591/6417, com redação da Lei 10931/2004, contudo, será necessária a ratificação do mandato da Comissão de Representantes através de Assembleia própria em até 60 dias da quebra.
Se a comissão não convocar Assembleia, um sexto dos titulares das unidades ou o juiz da falência poderão convoca-la. Nessa assembleia poderá ocorrer ou a ratificação do mandato ou então a eleição de novos membros por 2/3 dos adquirentes e em segunda convocação por maioria absoluta; nessa oportunidade haverá a votação sobre a continuidade da obra.
O mandato outorgado e ratificado pela Comissão terá validade mesmo após a conclusão da obra e conferem poderes a essa de transmissão de domínio, direito, posse e ação, manifestar a responsabilidade do alienante pela evicção e imitir os adquirentes na posse das unidades respectivas, referido mandato terá.
Não havendo continuidade e a opção seja pela paralização e leilão da obra, nos termos da Lei 4591/64, artigo 31-F, paragrafo 14, o produto da venda será entregue aos adquirentes no prazo de cinco dias da data que tiver recebido o preço, na proporção do que foi pago.
A continuidade da obra implica no recebimento pela Comissão pelos valores ainda devidos pelos adquirentes, bem como se firmando contratos de financiamento e tudo o mais que seja necessário ao termino da incorporação. Nesse passo, tem-se que a Comissão de Representantes desempenhará o papel de dar continuidade e cabo da obra, a fim de atingir a finalidade, qual seja, entregar as unidades adquiridas. Por fim, ressalte-se que havendo saldo positivo de valores, o mesmo deverá ser entregue ao juízo da falência.