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Reforma da Previdência: será que vai resolver o déficit?

Agenda 18/04/2017 às 09:15

A reforma da previdência social afeta a vida de milhões de brasileiros. Não deve ser tratada de forma afobada, com base em dados parciais e equivocados.

Resumo: O artigo examina a influência da Desvinculação de Receitas da União (DRU) e do descumprimento do art. 195 da Constituição Federal nos chamados “déficit da seguridade social” e, em consequência “déficit da previdência social”. Aspecto relevante a ser observado é que na maior parte dos exercícios examinados a seguridade social apresentou a seguinte situação: com a DRU: resultado negativo; sem a DRU: resultado positivo. Além disso, o art. 195 da Constituição Federal não vem sendo cumprido em relação ao direcionamento das fontes de financiamento da seguridade social, a saber: a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) e a receita de concursos de prognósticos (loterias). Finalmente, são propostas algumas medidas para reverter o alegado déficit da previdência, antes de ser discutida a fixação de idade mínima para aposentadoria.

Palavras-chave: Reforma da Previdência. DRU - Desvinculação de Receitas da União. Seguridade Social. TCU - Tribunal de Contas da União.


1.Introdução.

Fala-se muito em déficit da previdência urbana e déficit da previdência rural. Por que também não se falar em déficit da previdência suburbana, visto que nenhum desses alegados déficits têm amparo constitucional.

A Constituição Federal (CF) trata do orçamento da seguridade social, e não do orçamento da previdência social, isoladamente.

Além do orçamento da seguridade social, existem: o orçamento fiscal referente aos Poderes da União e o “orçamento das estatais”, entendido como o orçamento de investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto (art. 165, § 5º, incisos I, II e III, da CF).

Portanto, não existe constitucionalmente um orçamento da previdência social a respeito do qual se possa tratar de déficit ou superávit.

No caso da seguridade social, que compreende a previdência social, a saúde e a assistência social, importantes fatores provocam resultado negativo (déficit) ou positivo (superávit).


2.A DRU e o déficit da Seguridade Social (Previdência Social).

Dados oficiais do Siafi, reproduzidos em relatórios do TCU, mostram que:

Ou seja, na maior parte dos exercícios a seguridade social apresentou a seguinte situação: com a DRU: resultado negativo; sem a DRU: resultado positivo.

O quadro abaixo, relativo ao período de 2004 a 2011, mostra a influência da DRU na Seguridade Social.

Em R$ bilhões

ANO

Páginas do Relatório do TCU

Com a incidência da DRU

Sem a incidência da DRU

Valor desvinculado em razão da DRU

2004

165 e 166

Negativo
(- 17,6)

Positivo
+ 12,1

- 29,7

2005

100 e 101

Negativo
(- 14,8)

Positivo
+ 19,1

- 33,9

2006

126 e 127

Negativo
(- 28,6)

Positivo  
+ 5,3

- 33,9

2007

159 e 160

Negativo
(- 21,9)

Positivo
+ 17,0

- 38,9

2008

149 e 150

Negativo
(- 31,7)

Positivo
+ 7,9

- 39,9

2009

204 e 205

Negativo
(- 66,6)

Negativo 
(- 30,3)

- 36,3

2010

214 e 215

Negativo
(- 56)

Negativo
(- 12,6)

- 43,4

2011

214 a 217

Negativo
(- 48,9)

Positivo
+ 3,9

- 52,8

Total desvinculado pela DRU da Seguridade Social no período de 2004 2011

Valor histórico:

- 308,8

Valor atualizado, com juros, até 7/10/2016:

- 744,3

Fonte: SIAFI

Os dados oficiais comprovam que a DRU é fator de essencial importância no resultado da seguridade social. Ela potencializa, e muito, o déficit da seguridade social e, por conseguinte, o da previdência social.

Com a nova DRU retirando 30% da seguridade social a partir de 2017, o alegado déficit da previdência social vai continuar aumentando, aumentando cada vez mais.

2.1     Uma questão muito importante:

Se a DRU não tivesse incidido na seguridade social no período de 2012 a 2015, o alegado déficit da previdência existiria? Será que realmente existiria tal déficit?

2.2       A DRU e o descumprimento da Constituição Federal.

A DRU muda a destinação da receita que deveria ir para a seguridade social. Tal mudança faz com que a seguridade social passe a financiar os outros orçamentos da União, a saber: o fiscal e o de “investimentos das estatais”, o que contraria o art. 195, caput, da CF.

Ao comprometer a efetividade da seguridade social, a DRU também contraria fundamentos e objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, as chamadas cláusulas pétreas, como o valor social do trabalho (art. 1º, inciso IV, da CF) e a redução das desigualdades sociais (art. 3º, inciso III, da CF).

2.3       A DRU e a operação “Lava Jato”.

A mudança de destinação efetuada pela DRU faz com que a seguridade social passe a financiar, dentre outros, o orçamento de “investimentos das estatais”.

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Informações e sentenças da chamada operação "Lava Jato" demonstram que nos últimos tempos a Petrobras, uma das chamadas “estatais”, direcionou grande parte de seus investimentos para o pagamento de propina.

Ou seja, pode-se afirmar que a seguridade social financiou o pagamento de propina efetuado pela Petrobras, e com isso comprometeu, e muito, as aposentadorias dos segurados, a assistência social e a saúde.


3.A DRU não serviu para o que foi criada.

Concebida para permitir a geração de superávit nas contas do governo da União, a DRU estava em plena vigência no ano de 2015 e o superávit dessas contas somente foi mantido por meio da chamada “contabilidade criativa”. Eliminada tal contabilidade, apesar da manutenção da DRU, foi apurado um déficit de mais de R$ 100 bilhões, segundo dados oficiais.

Ou seja, a DRU não serviu para gerar superávit nas contas do governo da União em 2015, mas comprometeu os recursos da seguridade social e, em consequência, os da aposentadoria de milhões de brasileiros.


4. As fontes de financiamento da Seguridade Social estabelecidas pelo art. 195 da CF

A Constituição Federal estabelece expressamente em seu art. 195 que a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Além desses recursos, são também fontes de financiamento as seguintes contribuições sociais: do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei; do trabalhador e dos demais segurados da previdência social; sobre a receita de concursos de prognósticos e do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar.

Em outras palavras, para o cumprimento do dispositivo constitucional (art. 195) devem ser direcionadas estritamente ao financiamento da seguridade social a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) e a receita de concursos de prognósticos (loterias), o que não ocorre.


5.Um “mero chute”, na linguagem do futebol.

Com a DRU desviando, ou melhor, desvinculando recursos da seguridade social e o art. 195 da Constituição Federal não sendo cumprido,

Qualquer fixação de idade mínima para aposentadoria com vistas a equilibrar possível déficit da previdência social é “mero chute”.

Utilizando a linguagem futebolística, pode-se dizer que as seguintes propostas seriam:

A idade mínima de 65 anos para a aposentadoria, a proposta do governo federal: uma bola fora, chutada na arquibancada.

A idade mínima de 120 anos para aposentadoria: uma bola na trave.

A idade mínima de 200 anos para a aposentadoria: um gol de placa, um gol de placa mesmo. Provavelmente com essa sugestão pode ser equilibrado o alegado déficit da previdência social.

Os fatos e a realidade estão a demonstrar que com a DRU incidindo sobre a seguridade social e o descumprimento do art. 195 da Constituição Federal, qualquer proposta de idade mínima para aposentadoria com vistas a equilibrar possível déficit da previdência é “mero chute”.


6. Como reverter o quadro conjuntural.

Para reverter o quadro do alegado déficit da previdência, antes de propor idade mínima para aposentadoria, há que se:

a) retirar a incidência da DRU da seguridade social e refazer os cálculos com a restituição do que a DRU retirou da seguridade social nos últimos vinte anos, pelo menos.

b) cumprir o disposto no art. 195 da Constituição Federal, quanto às fontes de financiamento da seguridade social;

c) estancar a grande quantidade de recursos que são desviados ilicitamente da seguridade social;

d) cobrar de quem efetivamente deve contribuição à seguridade social;

e) após a adoção dessas medidas, examinar se realmente é necessária uma reforma da previdência, e em que termos.


7.Considerações finais.

Os dados oficiais do Siafi, reproduzidos nos relatórios do TCU, demonstram que mantida a incidência da DRU na seguridade social e o descumprimento do art. 195 da CF:

a) a proposta do governo, na forma em que foi apresentada, não vai resolver nada, pois seus dados são parciais, equivocados e resultam de descumprimento de norma constitucional;

b) os argumentos apresentados a favor da referida proposta, ditos “técnicos”, não se sustentam tecnicamente.

A questão não é ser a favor ou contra a reforma da previdência social, mas sim tratar o assunto com responsabilidade e dentro dos ditames constitucionais.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 2 de abril de 2017.

BRASIL. Emenda Constitucional 93, de 8 de setembro de 2016. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc93.htm. Acesso em: 2 de abril de 2017.

Sobre o autor
Ivo Montenegro

<br>Graduado em Direito (Uniceub), Ciências Contábeis (UPIS), Administração (UPIS) e Processamento de Dados (Unb). Pós-graduado pela Escola de Governo (UFRJ) e em Didática de Ensino Superior (Uniceub). MBI – Master in Business Intelligence (UPIS). Professor de Administração Financeira e Orçamentária-I (AFO-I: Orçamento Público) por um período de 11 anos. Auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (TCU). Trabalha no Tribunal desde janeiro de 1985. Neste ano participou do 1º grande curso de Auditoria Operacional do GAO (U.S. Government Accountability Office) no TCU, ministrado pelo Senhor Jim Wesberry, na época Consultor Sênior em Instituições Internacionais de Auditoria e Treinamento do GAO. Em 1986 participou da implantação no TCU do módulo do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi). Assessor de Ministro por 28 anos. Assessorou o Relator da Lei Orgânica do TCU (Lei 8.443/1992), Ministro Luciano Brandão Alves de Souza. Assessorou por 2 vezes o Ministro Paulo Affonso Martins de Oliveira na relatoria das contas do governo da União, como coordenador. Assessorou por 2 vezes o Ministro Antônio Valmir Campelo Bezerra na relatoria das contas do governo da União, como coordenador. Assessor do Presidente. Assessorou o Ministro Valmir Campelo na Presidência do TCU durante o período de 2 anos. Desenvolveu várias atividades como assessor do Presidente, cabendo destacar a elaboração de minutas dos votos de desempate e a implantação do Grande Colar do Mérito do Tribunal de Contas da União; do Museu do TCU e do Espaço Cultural Marcantonio Vilaça. Por mais de 20 anos elaborou Declarações de Voto dos Ministros Paulo Affonso e Valmir Campelo acerca da apreciação pelo TCU das contas do governo da União. Assessorou o Ministro Valmir Campelo nas atividades e na relatoria dos processos relativos à Copa do Mundo Fifa de 2014. Dijur/TCU. Atualmente exerce atividade na Diretoria de Jurisprudência (Dijur) da Secretaria das Sessões do Tribunal de Contas da União, elaborando enunciados.<br><br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTENEGRO, Ivo. Reforma da Previdência: será que vai resolver o déficit?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5039, 18 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57165. Acesso em: 5 nov. 2024.

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