1 – INTRODUÇÃO
O Código de Processo Civil de 1973, apesar das inúmeras reformas sofridas, não foi capaz de solucionar o problema da morosidade que assola Judiciário Brasileiro. Talvez porque, a questão esteja entranhada no próprio sistema e, portanto, não seja mero resultado dos múltiplos meios de recurso previstos no códex que estabeleceu o procedimento.
Com o passar dos anos, tornou-se cada vez mais frequente o ajuizamento de demandas cuja controvérsia cinge-se a questão unicamente de direito, que eram passíveis dos mais diversos entendimentos em um mesmo Tribunal, porquanto ficava o recurso à mercê de Câmara ou Turma para o qual era distribuído, e aumentava sobremodo a insegurança jurídica a respeito de determinada matéria.
Podemos citar como exemplo cotidiano a questão atinente às verbas trabalhistas a que faz jus a pessoa física contratada pela Administração Pública, ainda que de forma irregular, pois não observados os preceitos contidos no art. 37, da Constituição Federal de 1988, quais sejam, a regra que é o concurso público e o caráter de excepcionalidade.
Em determinadas Câmaras de Direito Público do e. TJMG, o entendimento majoritário dos eminentes desembargadores é que será devido pela Administração o pagamento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - FGTS, outras não.
Outrossim, podemos exemplificar – dessa vez, hipoteticamente – com casos onde diversos consumidores são lesados por um defeito de fabricação em série de determinado automóvel ou outro bem considerado durável.
Logo, é perceptível que tanto nesses exemplos mencionados quanto em diversas outras matérias – seja de direito público ou privado – há divergência de entendimento nos tribunais superiores, o que é salutar para o direito, haja vista que o posicionamento que restar firmado como majoritário estará amparado por um arcabouço jurídico-doutrinário considerável, que terá se sobressaído frente aos demais após ampla discussão.
Destarte, ficavam as partes na dependência de qual órgão colegiado seria o responsável pelo julgamento da causa, para saber como se daria o deslinde processual, causando, pois, insegurança jurídica nos jurisdicionados.
Todavia, com o advento do Novo Código de Processo Civil, foram introduzidas pelo legislador pátrio inúmeras inovações, como o fito de – a longo prazo – contribuir para o fim da morosidade, aplicar os princípios constitucionais da celeridade e da razoável duração do processo, firmados no art. 5º, LXXVIII, CF/1988, e nos arts. NCPC, para trazer às partes litigantes uma efetiva prestação jurisdicional.
Uma das inovações foi o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR, que como o próprio nome diz, trata-se de instrumento cuja finalidade é auxiliar os tribunais no dimensionamento dos litígios repetitivos mediante uma cisão da cognição através de um “procedimento-modelo ou padrão”, ou seja, um incidente no qual serão apreciadas somente questões de direito comuns aos casos similares, deixando a decisão de cada caso concreto para o juízo do processo de origem, que deverá considerar em seu decisum as peculiaridades fático-probatórias de cada caso, sem destoar, todavia, do “padrão” jurisprudencial fixado em instância superior (Tribunais de Justiça ou Tribunais Regionais Federais)[1].
Assim, para que possamos fazer um estudo a respeito do referido incidente, devemos estudar alguns aspectos importantes como pressupostos de cabimento, natureza jurídica, objetivos, sem prejuízo da análise de outras questões importantes, como a existência em potencial de dos conflitos individuais e coletivos.
2 – NATUREZA JURÍDICA DO INSTITUTO
Antes de adentrarmos no estudo da natureza jurídica do IRDR, é imperioso definir o que são as demandas repetitivas. Logo, temos que as demandas repetitivas são aquelas demandas idênticas, seriais, que, em grandes quantidades, são propostas perante o Judiciário. Diz-se que as são idênticas por terem objeto e causa de pedir idênticas, ainda que mudem as partes[2].
Trata-se o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas de um instrumento processual destinado a produzir eficácia pacificadora de múltiplos litígios, mediante estabelecimento de tese aplicável a todas as causas em que se debata a mesma questão de direito, cujo objetivo é implantar um sistema uniforme de tratamento judicial a todos os litigante em potencial de modo a colocá-los em situação semelhante àquela disputada no caso tido como padrão[3].
Assim, sendo o IRDR um incidente, Fredie Didier afirma que se não houver um caso em trâmite no tribunal, não teríamos um incidente, mas um processo originário[4], o que seria uma afronta tanto à Constituição Federal, quanto às Constituições Estaduais, que são as detentoras do poder para fixar a competência originária dos tribunais regionais federais, STJ e STF, e dos tribunais de justiça, respectivamente.
Outrossim, foi o entendimento firmado pelo FPPC[5], no Enunciado nº 344: “A instauração do incidente pressupõe a existência de processo pendente no respectivo tribunal.”
Desta forma, o IRDR é considerado por Humberto Theodoro como um remédio processual de caráter coletivo que não pode, todavia, ser confundido com as ações coletivas, porquanto essas reúnem através de seu substituto processual várias ações em busca de um único provimento de mérito que tutele direitos subjetivos individuais homogêneos de todos os interessados substituídos[6].
Para Alexandre de Freitas Câmara, o processo civil deve se ater ao fato de que vivemos hoje em uma sociedade onde os interesses são coletivizados e que tem como característica marcante a despersonalização do indivíduo.
Destarte, considera natural o aparecimento de demandas em que se destaquem os interesses individuais homogêneos, decorrentes de uma origem comum, considerada como núcleo de homogeneidade que é formada pelo an debeatur e o quis debeatur, ou seja, a existência de relações idênticas e o devedor comum em todas as relações.
Por outro lado, é inarredável a existência de uma margem de heterogeneidade, composta pelo cui debeatur (o credor) e o quantum debeatur (a quantidade devida pelo devedor ao credor), que sustentam o alto número de demandas repetitivas[7].
A par dos entendimentos supramencionados, é certo que o IRDR tem natureza jurídica de incidente, cuja finalidade precípua é produzir eficácia pacificadora em múltiplos conflitos, a partir do julgamento de um caso padrão, fixando-se a questão de direito que deverá ser aplicada com observância das peculiaridades inerentes ao caso concreto.
3 – REQUISITOS DE ADMISSIBILIDADE
Conforme dispõe o art. 976, do novo CPC, devem ser observadas requisitos objetivos para que seja cabível a instauração do incidente. Dois encontram-se previstos no próprio artigo: I -efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito e II - risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica[8]. E o terceiro, embora não esteja expresso, é consectário lógico do sistema, que é a necessidade de existência de pelo menos um processo pendente de julgamento perante o tribunal.
Há, ainda, para Fredie Didier, um quarto requisito, considerado como negativo, que é a inexistência de instauração de recurso repetitivo – nos tribunais superiores – acerca da matéria que seria afetada pelo IRDR. Em outras palavras, não cabe o IRDR quando já afetado, no tribunal superior, recurso representativo da controvérsia para definição de tese sobre questão de direito material ou processual repetitiva (art.976, §4º, CPC)[9].
Humberto Theodoro acrescenta que o impedimento irá prevalecer quando já tiver sido acionado outro expediente procedimental com a finalidade de gerar precedente unificador de jurisprudência, e que deve prevalecer o mesmo princípio que veda o bis in idem, nos casos de litispendência[10].
Diante da disposição do art. 976, caput, que exige a existência simultânea dos requisitos acima descritos, estes são cumulativos, de modo que a ausência de um deles impede que o IRDR seja instaurado.
Para Didier, tais requisitos de admissibilidade denotam: (a) o caráter não preventivo do IRDR, (b) a restrição do seu objeto à questão unicamente de direito, não sendo cabível para questões de fato e (c) a necessidade de pendência de julgamento de causa repetitiva no tribunal competente[11], seja ela recursal ou originária.
Em suma, é a possibilidade de quebra da segurança jurídica e da isonomia, a partir dessas decisões conflitantes proferidas, que deve ensejar na instauração do IRDR, analisando-se a maior quantidade de argumentos possíveis para a fixação de tese jurídica a ser aplicada em casos futuros.
Nesse sentido, é possível afirmar que enquanto as demandas “idênticas” estiverem a ser decididas no mesmo sentido, não há utilidade na instauração do incidente. Caso ocorresse a instauração, o incidente encontraria barreiras atinentes à falta de interesse, pois não haveria risco de ofensa à isonomia.
4 – OBJETIVOS E LEGITIMIDADE
Quanto aos objetivos do IRDR, infere-se da própria natureza jurídica do instituto que este possui duas funções precípuas: a primeira é simplificar a prestação jurisdicional e evitar o abarrotamento de demandas repetitivas nos tribunais, atendendo assim aos princípios da duração razoável do processo, bem como da economia e celeridade processual; e a segunda é assegurar a uniformização jurisprudencial a respeito de determinado tema, garantindo assim segurança jurídica aos jurisdicionados.
No que tange aos agentes legítimos para propor o incidente, o art. 977 do Novo CPC traz em seu texto rol taxativo dos legitimados, quais sejam: a) o juiz da causa, para processos em primeiro grau; b) o relator, quando o processo estiver em grau de recurso em instância superior; c) pelas partes, em qualquer grau de jurisdição; e d) pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública.
7 - CONCLUSÃO
Desta forma, percebe-se que o incidente em análise visa resguardar a uniformidade, a coerência, a estabilidade e a integridade das decisões através da formação do sistema de precedentes, prezando sempre pela observância dos princípios atinentes ao direito processual civil e resguardando a segurança jurídica, especialmente nos tribunais de segundo grau.
Contudo, o agente competente para suscitar a instauração do IRDR deve observar, necessariamente, os requisitos de admissibilidade previstos no art. 926, do NCPC, mas para que haja sua instauração.
Por fim, pode-se afirmar que o incidente é, sem dúvidas, uma tentativa brilhante de impedir que os tribunais fiquem assoberbados – ainda mais – em razão de demandas repetitivas, e mais, para que possamos sentir os efeitos práticos da medida, é necessária uma profunda e eficiente reforma estrutural em nosso Judiciário.
8 - BIBLIOGRAFIA
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
BRASIL, Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>.
BRASIL, Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Instituiu o Código de Processo Civil. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm>.
CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro – São Paulo: Atlas, 2015.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: o processo civil nos tribunais, recursos, ações de competência originária de tribunal e querela nulitatis, incidentes de competência originária de tribunal. Fredie Didier Jr., Leonardo Carneiro da Cunha – 13ª ed., reformada – Salvador: Juspodivm, 2016.
Fórum Permanente de Processualistas Civis - FPPC. Disponível em <http://portalprocessual.com/enunciados-do-forum-permanente-de-processualistas-civis-2016/>.
NUNES, Dierle. O IRDR do Novo CPC: este estranho que merece ser compreendido, disponível in http://justificando.com/2015/02/18/oirdrnovocpcesteestranhoquemerecesercompreendido
THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Execução forçada, processo nos tribunais, recursos e direito intertemporal - Vol. III. 49ª ed. Ver., atual. e ampliada – Rio de Janeiro: Forense, 2016.
[1] NUNES, Dierle. O IRDR do Novo CPC: este estranho que merece ser compreendido, disponível in http://justificando.com/2015/02/18/oirdrnovocpcesteestranhoquemerecesercompreendido/
[2] CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro – São Paulo: Atlas, 2015. p. 477.
[3] JUNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil – Execução forçada, processo nos tribunais, recursos e direito intertemporal - Vol. III. 49ª ed. Ver., atual. e ampliada – Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 913-914.
[4] Didier Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: o processo civil nos tribunais, recursos, ações de competência originária de tribunal e querela nulitatis, incidentes de competência originária de tribunal. Fredie Didier Jr., Leonardo Carneiro da Cunha – 13ª ed., reformada – Salvador: Juspodivm, 2016. p.625.
[5] Fórum Permanente de Processualistas Civis.
[6] JUNIOR, Humberto Theodoro, obra citada.
[7] CÂMARA, Alexandre Freitas, obra citada, p. 477.
[8] Art. 976, CPC 2015 – Lei nº 13.105 de 16 de março de 2015.
[9] Didier Jr., Fredie, obra citada, p. 628.
[10] JUNIOR, Humberto Theodoro, obra citada, p. 915.
[11] Didier Jr., Fredie, obra citada, p.626.