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Racismo e Direito Penal:

análise de uma relação fabricada

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Agenda 23/05/2017 às 16:00

5 O RESULTADO DESTA POLÍTICA

Dar tratamento superficialmente igual através da legislação não foi suficiente para que a perseguição aos negros e pardos cessasse, vez que o sistema penal permanece criando e utilizando-se de estereótipos para determinar contra quem a força que lhe cabe será exercida. Não pode o Estado se eximir da culpa, colocando-a apenas nos agentes que participam deste processo discriminatório. O descaso, ao não dar a atenção necessária a este problema, o torna responsável por grande parte do problema. Deixando de fornecer a proteção necessária contra esta seletividade estigmatizante, fica turva a legitimidade do Estado para punir os desviantes, vez que deixa de cumprir suas funções, mas sempre exige da sociedade, em especial da marginalizada, que cumpram seus “deveres”.

As ações discriminatórias ocorrem durante todas as etapas que menciona Thompson, supradescritas, mas são mais facilmente perceptíveis nas fases que antecedem o processo criminal. Uma pesquisa da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), coordenada pela Professora Doutora Jacqueline Shinhoretto, revelou que dentre as mortes causadas em decorrência da atividade policial no estado de São Paulo, em uma análise de 734 casos, entre os aos de 2009 e 2011, 61% das vítimas eram negras, e 39% brancas. Esta diferença já é bem relevante e demonstra um problema; quando comparada à população total negra e branca dentro do Estado de São Paulo no ano de 2011, a tendência racista das abordagens torna-se latente: 14.287.843 negros e 26.371.709 brancos. A pesquisa ainda demonstrou a taxa de mortos a cada 100.000 negros é 1,4, e 0,5 entre os brancos, ou seja, a probabilidade de um negro ser morto pela polícia é quase 3 vezes superior ao do branco. No que tange as prisões em flagrante, a pesquisa demonstrou que a cada 100.000 negros, 35 são presos em flagrante, entre os brancos o número cai para 14. Por fim, a pesquisa conclui que “verifica-se racismo institucional no modo como o sistema de segurança pública opera, identificando os jovens negros como perigosos e os colocando como alvos de uma política violenta, fatal” [16].

O problema não está presente apenas dentro do Estado de São Paulo. Um Relatório de Desenvolvimento Humano, desenvolvido pela PNUD (programa das nações unidas para o desenvolvimento), revelou através de uma análise dos registros da polícia civil do Rio de Janeiro entre janeiro de 1998 e setembro de 2002 que dentre 1.880 mortos pela polícia 32,4% eram negros, 21,8 % eram pardos e 19,7 % brancos; ao desconsiderar os mortos cuja a cor/raça eram desconhecidos, o número de negros e pardos chega a 72%. Sequer precisa-se chegar ao mérito sobre a legalidade ou legitimidade da ação dos policiais para entender o problema abordado [17]. O fato dos negros serem as principais vítimas dos policiais, com larga diferença em relação aos brancos, demonstra que há uma ideia de periculosidade do homem negro, fazendo com que a reação dos policias seja mais severa contra este grupo. Como já fora dito, os agentes do Estado não são uma classe que vive de forma isolada da sociedade, eles não são seres que destoam da maioria, não possuem características tão únicas que lhes difere completamente dos que os rodeiam: são parte da mesma sociedade racista, e agem como os demais membros agiriam em tais circunstâncias. O ciclo, porém, se intensifica neste caso, vez que estão em constante contato com os estereótipos criados pelo sistema penal.

Em uma pesquisa realizada por Adorno, verificando crimes violentos julgados em primeira instância em São Paulo, em 1990, indicou:

“maior incidência de prisões em flagrante para réus negros (58,1%) comparativamente a réus brancos (46,0%). Tal aspecto parece traduzir maior vigilância policial sobre a população negro do que sobre a população branca. Há maior proporção de réus brancos respondendo a processo em liberdade (27%) comparativamente a réus negros (15,5%). Réus negros dependem mais de assistência judiciária proporcionada pelo Estado (defensoria pública e dativa, correspondendo a 62%) comparativamente a réus brancos (39,5%). Em contrapartida 60,5% dos réus brancos possuem defensoria constituída, enquanto apenas 38,1% dos réus negros se encontram nessa mesma condição. […] De todos os brancos que se dispuseram a apresentar provas testemunhais, 48% foram absolvidos e 52% condenados. Entretanto, entre os réus negros que se valeram desse exercício, 28,2% foram absolvidos enquanto 71,8% condenados. Finalmente, a maior inclinação condenatória também parece estar associada a cor da vítima. Réus brancos que agridem da mesma etnia revelam maior probabilidade de absolvição (54,8%) do que de condenação (42,2%). Quando o agressor é negro e a vítima é branca, o quadro se inverte. Entre estes, a proporção de condenados (57,8%) é superior à de absolvidos (45,2%). Tudo parece indicar, portanto, que a cor é poderoso instrumento de discriminação na distribuição da justiça” [18].

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Um relatório do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) concluiu que há “arbítrio excessivo na aplicação da pena, visto que vários juízes entrevistados admitem se basear na intuição, analisando a aparência e o “jeito” do réu” [19]. Ou seja, os preconceitos permeiam a aplicação da pena; a resposta punitiva do Estado, que deveria basear-se apenas em provas, é contaminada por opiniões. Que aparência tem o criminoso? O sistema penal parece já ter respondido de forma míope. O mesmo relatório revela também que “os Jecrims atendem proporcionalmente mais réus “brancos”, enquanto as varas criminais atendem proporcionalmente mais réus “negros”. Os Jecrims tem, como regra geral, penas muito mais brandas do que aquelas aplicadas nas varas criminais, e não raro são aplicadas penas diversas das restritivas de liberdade. Ou seja, até mesmo o modo como será punido é mais rígido de acordo com o grupo que o réu pertença. Não por acaso, Eric Holder ex-procurador geral dos Estados Unidos da América, afirmou que os negros – nos EUA – tem penas 20% mais longas do que os brancos [20].

Percebe-se, pelo exposto, que a discriminação está presente também depois de iniciado o processo. Os estigmas invadem o judiciário e pesam no julgo contra os negros. Não há etapa dentro deste penoso processo que escape da influência dos estereótipos.


6 CONCLUSÃO

Não é possível negar que haja uma relação entre o sistema penal e o racismo. Mais do que teorias bem elaboradas da década de 60, há um volumoso trabalho empírico voltado a expor as mazelas de um sistema que discrimina grupos e pessoas. As tentativas de suavizar o real efeito deste problema, não lhe dando a atenção necessária ou mudando o enfoque, evidenciam apenas que o seu enraizamento é tão profundo que, por ingenuidade ou má-fé, não parece interessante ao Estado combatê-lo. Para Vanzolini Figueiredo, “o mito da democracia racial obscureceu e atrasou a adoção de medidas mais contundentes para o combate do racismo” [21].

As punições previstas pela legislação penal jamais atingiriam de forma determinante o funcionamento deste ciclo. Em primeiro lugar, como já fora demonstrado, porque elas agem mais contra determinados grupos sociais e contra os próprios negros do que contra os agentes que participam, voluntariamente ou não, deste processo. Em segundo, pois há um forte apelo subconsciente, pois criou-se a figura do criminoso no imaginário da população, e esta figura é alimentada todos os dias, em todos os estratos sociais, e com isso o ciclo permanece. Em terceiro, porque ainda que alguém reaja de modo conscientemente e objetivamente racista dentro destes procedimentos do sistema penal, isto raramente lhe tratá alguma consequência, pois ele atuará como o sistema age, assim, a sua atitude discriminatória estará protegida pelo modus operandi, já que, em última análise, é o modo padrão de atuação, e não destoante dos demais.

Será impossível pensarmos em um fim deste tipo de punição seletiva enquanto não se reconhecer o problema de forma geral. A inércia do Estado dá respaldo ao etiquetamento do negro como criminoso e sua consequente punição, seja através do processo criminal e execução da pena, seja através das mortes causadas por policiais quando em “confrontos com os suspeitos”.

Ademais, a dissolução do conceito negativo ao qual atrelou-se a ideia do negro é buscada através das lutas sociais e de políticas públicas. O dever de fomento do Estado, por ter dado início e ter sido conivente com tais estigmas, é imediato. Não podemos tratar, todavia, como a simples proclamação de igualdade, que vez além da negação da igualdade a ação discriminatória também ocorre através do “não-reconhecimento ou aniquilação das diferenças” [22]. Portanto, o reconhecimento da luta negra, sua história e a compreensão das suas origens culturais está intimamente ligado à desassociação do negro dos esteriótipos criados e mantidos pelo sistema penal e pela sociedade como um todo.


REFERÊNCIAS

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal; tradução Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Editora Revan, 6ª ed., 2011

SHECAIRA, Sérgio Salomão. CRIMINOLOGIA. 2ª ed. rev. atualiz. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

SILVEIRA, Fabiano Augusto Martins. Da criminalização do racismo: aspectos jurídicos e sociocriminológicos. Belo Horizonte – Editora Del Rey. 2007.

THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos: o crime e o criminoso – Entes políticos. Rio de Janeiro - Editora Lumen Juris, 1998

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo - Editora Saraiva 2012

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, v.1 – Parte Geral. 9ª ed. revist. e atualiz. São Paulo – Editora Revista dos Tribunais. 2011


CITAÇÕES

[1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, v.1 – Parte Geral. 9ª ed. revist. e atualiz. São Paulo – Editora Revista dos Tribunais. 2011, p. 70.

[2] Disponível em <http://www.geledes.org.br/historia-da-escravidao-negra-brasil/#gs.=QLl4M>. Acesso em 11 de maio de 2017.

[3] Disponível em <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7448#_ftn21>. Acesso em 11 de maio de 2017.

[4] Disponível em <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7448#_ftn21>. Acesso em 11 de maio de 2017.

[5] Disponível em <https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ael/article/viewFile/2575/1985> acesso em 10 de maio de 2017.

[6] SILVEIRA, Fabiano Augusto Martins. Da criminalização do racismo: aspectos jurídicos e sociocriminológicos. Belo Horizonte – Editora Del Rey. 2007, p.64.

[7] THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos: o crime e o criminoso – Entes políticos. Rio de Janeiro - Editora Lumen Juris, 1998, p.3.

[8] Disponível em <http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/cidadania-nos-presidios> Acesso em 09 de maio de 2017.

[9] SHECAIRA, Sérgio Salomão. CRIMINOLOGIA. 2ª ed. rev. atualiz. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 291.

[10] BARCELLOS, Caco. Rota 66 - Caco Barcellos apresentação de Narciso Kalili. — 29ª. ed. — São Paulo: Globo, 1997, capítulo 12.

[11] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal; tradução Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Editora Revan, 6ª ed., 2011, p. 177 – 178.

[12] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal; tradução Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Editora Revan, 6ª ed., 2011, p. 102.

[13] SILVEIRA, Fabiano Augusto Martins. Da criminalização do racismo: aspectos jurídicos e sociocriminológicos. Belo Horizonte – Editora Del Rey. 2007, p. 52 e 53.

[14] THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos: o crime e o criminoso – Entes políticos. Rio de Janeiro - Editora Lumen Juris, 1998, p. 50.

[15] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo - Editora Saraiva 2012, p. 395.

[16] Disponível em < http://www.ufscar.br/gevac/wp-content/uploads/Sum%C3%A1rioExecutivo_FINAL_01.04.2014.pdf> acesso em 13 de maio de 2017.

[17] SILVEIRA, Fabiano Augusto Martins. Da criminalização do racismo: aspectos jurídicos e sociocriminológicos. Belo Horizonte – Editora Del Rey. 2007, p. 46.

[18] ADORNO, Sérgio. Racismo, criminalidade violenta e justiça penal. 1995, p. 284 – 285 in SILVEIRA, Fabiano Augusto Martins. Da criminalização do racismo: aspectos jurídicos e sociocriminológicos. Belo Horizonte – Editora Del Rey. 2007, p. 44 – 45.

[19] Disponível em <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150325_ relatorio_ap licacao_penas.pdf> Acesso em 13 de maio de 2017.

[20] Disponível em <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/02/b948337bc7690673a39cb5cdb10994f8.pdf> Acesso em 13 de maio de 2017.

[21] FIGUEIREDO, Maria Patrícia Vanzolini. Legislação Penal Especial. São Paulo – Editora Saraiva. 2010, p. 67.

[22] SILVEIRA, Fabiano Augusto Martins. Da criminalização do racismo: aspectos jurídicos e sociocriminológicos. Belo Horizonte – Editora Del Rey. 2007, p.104.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Phillippe Oliveira. Racismo e Direito Penal:: análise de uma relação fabricada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5074, 23 mai. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57770. Acesso em: 22 nov. 2024.

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