1 INTRODUÇÃO
O sistema penal tem como objetivo declarado o controle e punição de determinadas ações e omissões, determinando limites e deveres dos agentes que atuam desde a investigação de um suposto delito até a fase de execução da pena, percorrendo todo o caminho através de diferentes instituições, que são interligadas de maneira não direta. Assim, embora haja diversos entes responsáveis dentro deste processo, cada um age, teoricamente, dentro dos limites que lhes são impostos, e com certa independência.
Um dos pilares de tal sistema pressupõe a igualdade das pessoas, sem que sejam feitas discriminações. Assim preconiza o artigo 5º, caput, da Constituição Federal, quando diz que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Ao fazer uma análise formal do sistema, atentando-se apenas à literalidade das Leis, poder-se-ia dizer que de fato há tal igualdade dentro do sistema penal, já que não foram feitas distinções formais de procedimento, abordagens policiais, penas ou mesmo de crimes. Desta forma, o sistema teria o mesmo efeito (leia-se agiria e puniria de forma igual) sobre todos.
No entanto, como nos ensina Zaffaroni e Pierangeli “o sistema penal se dirige quase sempre contra certas pessoas mais que contra certas ações” [1]. Isto quer dizer que, ao contrário de seu objetivo declarado, esse sistema age de forma discriminatória, dando um peso maior a conduta de certos agentes - ou abrandando a conduta de alguns -, ainda que exatamente igual a conduta praticada por outros. Na verdade, como se verá ao tratarmos das chamadas “cifras negras”, é comum que o sistema penal sequer aja contra certas condutas quando o agente que as praticou não esteja dentro de um estereótipo criminal, ou quando os agentes deste sistema acreditem que a conduta, apesar de crime, não seja passível da punição prevista em Lei.
Em relação aos grupos e pessoas que são discriminados dentro deste sistema, se dará especial atenção ao tratamento desigual fruto do racismo institucionalizado, promovido através dos agentes envolvidos neste longo procedimento. Isso porque, vítimas de políticas não institucionalizadas de extermínio e uma discriminação sistemática e secular, os negros pertencem a um grupo extremamente vulnerável da população.
2 RAÍZES PROFUNDAS
O uso de mão de obra escrava é uma das maiores atrocidades legais cometidas pelos Estados. Reconheceu-se determinados indivíduos como cidadãos, sujeitos considerados dignos de direito, e outros como “coisas”, e que deviam sujeição a outros, por serem sua propriedade. Além de negar direitos, as legislações impunham severas penas contra os escravos. A exploração da mão de obra negra começa no Brasil no século XVI, onde foi substituindo gradualmente a mão de obra indígena. Assim, pouco tempo após a chegada dos europeus nestas terras, e durante vários séculos seguintes, utilizou-se mão de obra escrava baseada em preceitos de etnia e origem. Estima-se que entre 1701 e 1810, mais de um milhão e oitocentos mil africanos foram desembarcados nos portos coloniais do Brasil [2]. Em 1824 a Constituição já previa, em seu artigo 179, que “a lei será igual para todos”. Todavia, ainda era permitido o uso de escravos.
A escravidão foi abolida formalmente em 1888, quando, sem qualquer assistência prestada aos ex-escravos, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea. Anos antes, diversas Leis foram promulgadas com o intuito de enfraquecer o uso de mão de obra escrava. Em 1850, com a proibição do tráfico negreiro, e em 1871, com a Lei que concedia liberdade para os filhos de escravos que nascessem após sua promulgação (lei do ventre livre), o movimento escravagista perdeu força, e o fim da escravidão já era esperado, ainda mais quando leva-se em conta a pressão que a Inglaterra fazia contra a escravidão por conta de seus interesses econômicos.
Apesar da abolição da escravatura, não havia suporte ao negro que, após ser retirado de sua terra, ou ter nascido escravo no Brasil, ainda carregava o estigma em razão de sua cor e características físicas. Desta forma, jogados na marginalidade, a perspectiva para seu desenvolvimento no meio social era quase nula. Aliado ao desamparo, ainda havia a discriminação constante, senão pela população em geral, por parte do próprio Estado. A exemplo disso está a criminalização da cultura negra, quando em 1890 promulgou-se uma Lei que previa prisão de dois a seis meses para quem praticasse capoeira, e assim seguiu até 1937.
Vale ressaltar ainda que a cultura negra continua sendo perseguida, embora tenha havido mudanças legislativas; isto porque o racismo contamina não só a visão sobre o indivíduo, como também o que é produzido pela população negra. A exemplo disto, dentro da música, temos o samba ou, mais modernamente, o funk; que tem raízes negras e pobres. Em se tratando de religião, não raros são os casos de perseguição contra as religiões de matriz africana, que buscam demonizar suas crenças e ofender seus seguidores.
Além da escravidão, a pseudo-ciência foi uma grande aliada na disseminação e reafirmação de ideais racistas. O chamado “racismo científico” utilizava-se de teorias frágeis e discriminatórias, com base em Darwin, para propagar a ideia da superioridade do branco em face dos demais. Através de teorias bioantropológicas, buscou-se legitimar a discriminação sob a égide da evolução. Partindo-se das ideias sobre evolução, criou-se uma justificativa para estigmatizar determinados grupos a partir de suas características físicas ou condutas. Como aduz Deborah Dettman “embora a criação de teorias discriminatórias sempre tivesse existido, pela primeira vez, uma lógica de discriminação fundada na defesa da raça real, poderia se avocar como científica” [3].
Cesare Lombroso, com sua teoria do criminoso nato, estudou inúmeros detentos bem como corpos de criminosos que faleceram, e concluiu que era possível determinar, através de características físicas, quem era o “homem delinquente”. A partir de suas teorias, somadas aos estudos de criminologia da época, nações fizeram políticas criminais com o intuito de realizar o aperfeiçoamento da raça [4].
As teorias eugênicas foram a base do extermínio de diversos povos. A disseminação da ideia de superioridade de determinadas raças, ou inferioridade de outras, ganhou apreço por aqueles que procuravam motivos para discriminar e matar determinados grupos, ao mesmo tempo que em difundiu como se ciência fossem os estereótipos infundados.
As correntes de branqueamento da população tinham por base a eugenia. Acreditava-se que o embranquecimento da população seria benéfico em ganhos sociais e econômicos. Miguel Couto, adepto da teoria eugênica, médico e parlamentar, defendeu na chamada lei de cotas, de 1934, que a imigração negra deveria ser proibida, e a asiática controlada. Para o parlamentar, assim como diversos outros que seguiam sua corrente, apenas os “indo-europeus” eram desejáveis, pois deles decorre o progresso e a riqueza de uma sociedade [5].
No Brasil, a primeira tentativa de punir o racismo veio com a Lei 1.390 de 3 de julho de 1951, conhecida como Lei Afonso Arinos. Tratava-se de uma contravenção penal que punia condutas que se baseassem em discriminação de raça ou de cor, quando determinado estabelecimento recusasse a oferecer seus serviços ou a empregar o indivíduo, e abrangia tanto os estabelecimentos privados quanto os órgãos públicos. No entanto, durante a sua vigência, apenas três casos foram levados à justiça [6].
Hoje é notória a tendência legislativa em defesa da pluralidade, e contra todos os tipos de discriminação; as ações afirmativas voltadas a determinados grupos e a criminalização de condutas discriminatórias evidenciam isto. No entanto, o grande desafio encontra-se neste momento no legado de todo este sofrimento. O resultado das consequentes afirmações de inferioridade e de tendências criminosas é este racismo velado, que age consciente e inconscientemente em todo o sistema penal, oriundo de uma sociedade corrompida por ideais que foram incutidos por séculos de desinformação, medo e ódio.
3 CIFRAS NEGRAS
Muitos cometem crimes, poucos são os condenados. A cifra negra refere-se aos crimes cometidos e não solucionados ou punidos. Entre a prática de uma conduta típica e antijurídica até a condenação há um longo caminho a ser percorrido. Aquele que for receber o estigma de “criminoso” deve passar por tal processo, e Thompson diz que as etapas marcantes neste processo são:
“a) ser o fato relatado à polícia; b) se relatado, ser registrado; c) se registrado, ser investigado; d) se investigado, gerar um inquérito; e) se existente o inquérito, dar origem a uma denúncia por parte do promotor; f) se denunciado, redundar em condenação pelo juiz; g) se, havendo condenação e expedido o consequente mandado de prisão, a polícia efetivamente o executa” [7].
Ao percorrer todo este processo, em cada etapa há uma perda significativa de pessoas que de fato cometeram um crime, mas não serão punidas formalmente pelo Estado. Vários fatores contribuem para a não punição: ninguém que tenha ciência do crime o relatou às autoridades competentes; sua conduta desviante ou não tem peso suficiente para os agentes que atuam em cada uma das fases, a ponto de lhes fazer dar o passo seguinte; não houve provas suficientes para dar continuidade ao feito, ou houve absolvição em juízo; houve corrupção de um agente (um novo crime) em alguma das fases, etc.
Embora haja conhecimento de que o número de crimes praticados destoa do número de crimes punidos, ou mesmo conhecidos, não é possível precisar sua quantidade ou qualidade, e os motivos são óbvios: uma parte ínfima de indivíduos vai voluntariamente revelar os crimes que praticou. A título de exemplo, segundo um relatório da Anistia Internacional, 85% dos homicídios no Brasil não são solucionados [8]. Um crime que, em geral, deixa vestígios tem uma taxa de apenas 15% de solução, isso ignorando o fato de que há homicídios que constam como desaparecimentos, causas naturais (por erro em perícias ou simulação), dentre outros.
Aqui, nos importa perceber que, apesar do volume de crimes cometidos, apenas alguns são punidos. Assim sendo, a atenção se volta para quando a ação ou omissão dos cidadãos e agentes a serviço do sistema penal tem como função a punição do desviante. Utiliza-se a palavra “quando”, pois é nítido que não há um desigual peso atribuído às mesmas condutas praticadas, e as qualidades de quem praticou o fato influenciam tanto, ou mais, do que sua ação.
4 O ETIQUETAMENTO E O RACISMO
A teoria do etiquetamento demonstra que, apesar da inúmera quantidade de crimes praticados todos os dias, e em todas as camadas sociais, apenas alguns dos atos são rotulados como desviantes, e essa rotulação depende da natureza do ato e do que as pessoas farão em face daquele ato [9]. Tendo ciência da cifra negra, indaga-se o motivo pelo qual há reações diferentes contra crimes idênticos, ou ainda, a razão pela qual certos crimes são demasiadamente perseguidos, enquanto que outros são ignorados ou não recebem atenção adequada do Estado.
Análises empíricas demonstram quais são os grupos e pessoas contra os quais o sistema penal tem preferência em agir contra. Caco Barcellos, ao fazer o levantamento de 4.179 casos registrados de tiroteio da Polícia Militar de São Paulo, chegou a conclusão de que o perfil das vítimas era “Homem jovem, 20 anos. Negro ou pardo. Migrante baiano. Pobre. Trabalhador sem especialização. Renda inferior a 100 dólares mensais. Morador da periferia da cidade. Baixa instrução, primeiro grau incompleto” [10]. Esse resultado não difere do que concluiu os teóricos do labelling approach, que enxergam nas camadas mais pobres da sociedade as principais reações do sistema penal.
Baratta leciona que as pesquisas demonstram que há diferença de atitude emotiva e valorativa de juízes, de acordo com a classe social que ocupam, e que isto os leva inconscientemente tanto a diferenças de análise sobre a culpabilidade quanto a própria personalidade do agente e sua tendência a voltar a delinquir. Baratta ensina também que até mesmo em crimes de menor relevância social, como os delitos de trânsito, a uma correlação entre a valoração da culpa e o status social do indivíduo [11]. Ao mesmo tempo, os chamados crimes de colarinho branco, que são cometidos por pessoas que em geral tem grande poderio econômico, gozam de prestígio social e não são vítimas de estereótipos, são raramente perseguidos, e com menos frequência punidos [12].
Como nos fala Fabiano Augusto:
“o racismo é coadjuvante do sistema penal na medida em que constrói simbolicamente o estereótipo do negro como criminoso (…) racismo e sistema penal proliferam-se associativamente: o preconceito racial formula o estereótipo do negro criminoso; o sistema penal reforça-o por meio de um chamamento presente ou futuro, com destaque para a atuação das células policiais” [13].
Desta forma, a discriminação racial é pressuposto para a estigmatização do negro como criminoso. A ação do sistema penal contra a população negra baseia-se, em grande parte, imbuída de estereótipos, e inúmeras vezes reage com excesso, orientando-se mais pelo suposto agente da ação delituosa, em detrimento da ação concretamente realizada.
Cria-se assim um ciclo: direcionando-se os esforços do Estado para punir determinados grupos, e cria-se no imaginário popular, que inclui também os agentes do sistema penal, a imagem detalhada de como seria o criminoso; quando são punidos, o volumoso número de pessoas com características semelhantes reforça a ideia de que o criminoso tem aquele perfil, e se tem aquele perfil é deve ser criminoso. O ciclo doentio permanece inquebrável, pois não se dá o status de delinquente a quem efetivamente delinquiu, mas apenas àqueles que foram pegos pelo sistema penal; e o sistema penal tem primazia por quem lhe é familiar. Destarte “os mecanismos punitivos impregnam o estereótipo de delinquente de maneira tão decisiva que, ao contrário de prevenir, lança o indivíduo na carreira de sucessivos desvios secundários [14].
É claro, pois, que o etiquetamento vai de encontro aos objetivos declarados da pena. Se a tendência, ao ser rotulado como criminoso, é voltar a delinquir, isso depõe contra a prevenção geral especial, pois, inviabiliza, ou ao menos dificulta, a chamada ressocialização. Assim, por qual motivo teria interesse o Estado em manter tal política? Zaffaroni leciona que “rotular um inimigo é um modo de canalizar mal-estar e vingança, pois colocar todo o mal na cabeça de um grupo é um recurso político fortíssimo, por mais amoral que seja, mas sempre muito eficaz [15].