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Os contratos atípicos e sua disciplina no Código Civil de 2002

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Agenda 06/10/2004 às 00:00

Sumário: 1. Considerações preambulares. 2. Os contratos atípicos e suas espécies. 3. A boa-fé objetiva, a função social do contrato e o princípio da proibição da onerosidade excessiva: inovações da teoria geral dos contratos do Código Civil de 2002 de aplicação indispensável aos contratos atípicos. 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas


1. Considerações preambulares

O presente estudo tem como escopo o tratamento dos contratos atípicos ou inominados e sua disciplina no Código Civil de 2002.

Destarte, primeiramente serão tecidas algumas considerações sobre os contratos atípicos, em suas duas modalidades, quais sejam, contratos atípicos propriamente ditos e contratos atípicos mistos, além da diferenciação destes em relação aos contratos coligados.

Passado este primeiro momento, tratar-se-á da disciplina dos contratos atípicos no novo diploma civil brasileiro (Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002), regulamentação esta contida na redação de seu art. 425, que dispõe ser lícito às partes a celebração dos contratos atípicos, desde que observadas as normas gerais em matéria de contratos estabelecidas naquele código.

Referido trabalho atentará para as normas gerais a que faz alusão tal dispositivo, mais precisamente para alguns dos princípios gerais em matéria contratual que visam a coibir os excessos de liberdade das partes contratantes, que muitas vezes conduzem ao desequilíbrio das avenças e ao enriquecimento de uma das partes do contrato.

Mencionados princípios, que de maneira inovadora, foram expressamente acrescentados à redação do Novo Código Civil, são os da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da vedação à onerosidade excessiva.

E por fim, no último estágio do presente estudo, será traçada uma conclusão a respeito da disciplina dos contratos atípicos na nova codificação civil, buscando, ainda que modestamente, nortear os aplicadores do Direito quando da interpretação dessa modalidade de contrato, de larga utilização nos dias atuais.


2. Os contratos atípicos e suas espécies

Os contratos, quanto à sua designação, dividem-se, doutrinariamente, em contratos típicos ou nominados, e atípicos, também chamados de inominados.

Os contratos nominados ou típicos abrangem as várias espécies contratuais que possuem nomem juris e servem de base à fixação dos esquemas, modelos ou tipos de regulamentação específica da lei. Inserem-se numa figura que tem disciplina legal, recebendo da ordem jurídica uma regulamentação.

Os contratos típicos ou nominados possuem, dessa forma, uma denominação legal e própria, estando previstos e regulados por norma jurídica, formando espécies legalmente definidas.

O Código Civil de 2002 rege e esquematiza vinte e três tipos dessa modalidade de contrato. Com efeito, são os seguintes os contratos típicos disciplinados pelo novo estatuto civil pátrio: compra e venda, troca, contrato estimatório, doação, locação de coisas, empréstimo, prestação de serviços, empreitada, depósito, mandato, comissão, agência, distribuição, corretagem, transporte, constituição de renda, seguro, jogo, aposta, fiança, sociedade, transação e compromisso.

Entre as espécies contratuais típicas abarcadas pelo novo diploma encontram-se alguns contratos empresariais, em decorrência da diretriz unificadora das obrigações civis e comerciais perseguida pela Comissão Elaboradora do Projeto de Código Civil de 1975 (1).

Em contraposição a essas figuras contratuais típicas, disciplinadas na lei, aparecem os contratos atípicos ou inominados.

Os contratos inominados ou atípicos afastam-se dos modelos legais, haja vista que não são disciplinados ou regulados expressamente pelo Código Civil, pelo Código Comercial ou por qualquer lei extravagante, sendo, todavia, permitidos juridicamente, desde que não contrariem a lei, os bons costumes e os princípios gerais de direito.

Na atividade empresarial, são exemplos de contratos atípicos o contrato de publicidade, o de hospedagem, o de mediação, o de cessão de clientela, a joint venture, entre muitos outros.

A possibilidade de celebração de contratos atípicos decorre do princípio da autonomia da vontade, sendo que tal prerrogativa encontra respaldo no art. 425 do Novo Código Civil brasileiro, que dispõe:

"Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código."

Os contratos atípicos decorrem da necessidade das partes na atividade negocial, já que impossível seria a regulamentação de todas as formas de relações intersubjetivas. Em decorrência disso, é certa a assertiva dantes formulada de que os contratos atípicos decorrem da autonomia da vontade privada.

A primeira observação que deve ser formulada diz respeito à terminologia "contratos atípicos ou inominados", bastante difundida na doutrina.

A nosso ver, a denominação "contrato inominado" não se mostra apropriada, sendo mais correto, tecnicamente, o uso da expressão contrato atípico, pois, muitas vezes, a espécie contratual possui nome, ou seja, é nominada, todavia, não se encontra regulamentada na lei (não possui tipicidade legal).

Álvaro Villaça Azevedo (2) diferencia com bastante precisão os contratos típicos dos atípicos:

Os contratos típicos recebem do ordenamento jurídico uma regulamentação particular, e apresentam-se com um nome, ao passo que os atípicos, embora possam ter um nome, carecem de disciplina particular, não podendo a regulamentação dos interesses dos contratantes contrariar a lei, a ordem pública, os bons costumes e os princípios gerais de direito.

Há ainda uma terceira espécie de contratos, qual seja, a dos contratos mistos, que resultam da combinação de formas contratuais típicas, atípicas, ou de típicas e atípicas.

Renomados juristas do passado, como Francesco Messineo (3) e Ludwig Enneccerus (4) elaboraram famosas classificações dos contratos atípicos, às quais aderiram muitos estudiosos da atualidade.

Orlando Gomes (5) subdivide os contratos atípicos em contratos atípicos propriamente ditos e mistos.

Para o mestre baiano, os contratos atípicos propriamente ditos são aqueles que, ordenados a atenderem a interesses novos, não disciplinados especificamente na lei, reclamam disciplina uniforme que as próprias partes estabelecem livremente, sem terem como paradigma qualquer padrão contratual pré-estabelecido.

Os contratos mistos, em sua classificação, são aqueles que se compõem de prestações típicas de outros contratos, ou de elementos mais simples, combinados pelas partes.

Assim, segundo Orlando Gomes, os contratos mistos resultam da combinação de contratos completos, prestações típicas inteiras ou elementos mais simples, formando-se, por meio dessa combinação, por subordinação ou conexão, uma nova unidade.

O Prof. Álvaro Villaça, em sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo, na qual tratou dos contratos típicos e atípicos, esboçou classificação dos contratos atípicos em: contratos atípicos singulares e contratos atípicos mistos.

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Leciona que os contratos atípicos singulares são as figuras atípicas individualmente consideradas. Seriam os contratos atípicos propriamente ditos da classificação do Prof. Orlando Gomes.

Já os contratos atípicos mistos, na sua classificação, se apresentariam: (a) com contratos ou elementos somente típicos; (b) com contratos ou elementos somente atípicos; e (c) com contratos ou elementos típicos e atípicos".

A classificação formulada pelo Prof. Villaça é, sem desmerecer o trabalho de tantos outros civilistas consagrados, mais acurada, visto que considera como atípico o contrato formado por dois ou mais contratos típicos completos.

Com efeito, na classificação feita por Orlando Gomes, o contrato surgido da junção de dois ou mais contratos típicos completos seria o por ele chamado de contrato de duplo tipo, cuja natureza continuaria sendo a de um contrato típico.

Entretanto, como bem ressalta o ilustre Prof. Álvaro Villaça (op. cit., p. 138), a combinação em um, de dois ou mais contratos completos, "em que circunstâncias sejam, não possibilita a consideração de cada avença como típica, isso porque as prestações desses contratos mesclam-se em um todo, sem possibilidade de separação. Todas as obrigações assumidas formam um só contrato, misto, ensejando sua rescisão, por exemplo, o descumprimento culposo de qualquer delas".

Nessa esteira, cumpre diferenciar os contratos atípicos mistos dos contratos coligados.

Assim, o Prof. Orlando Gomes (op. cit. p. 104), ao diferenciar os contratos mistos dos contratos coligados, assevera que "contrato misto é o que resulta da combinação de elementos de diferentes contratos, formando nova espécie contratual não esquematizada na lei. Caracteriza-os a unidade de causa". E continua, lastreado na lição de Ludwig Enneccerus, acentuando que,

em qualquer das suas formas, a coligação dos contratos não enseja as dificuldades que os contratos mistos provocam quanto ao direito aplicável, porque os contratos coligados não perdem a individualidade, aplicando-se-lhes o conjunto de regras próprias do tipo a que se ajustem.

E, conclui, asseverando que,

em resumo, distinguem-se na estruturação e eficácia as figuras dos contratos coligados e dos contratos mistos. Naqueles há combinação de contratos completos. Nestes, de elementos contratuais, enquanto possível a fusão de um contrato completo com simples elemento de outro. Pluralidade de contratos, num caso; unidade, no outro. (GOMES, op. cit., p. 105)

Nesse diapasão, o Prof. Villaça (op. cit., p. 138) leciona que

os contratos coligados, dois ou mais, guardam sua individualidade própria, sendo várias contratações autônomas, mas ligadas por um interesse econômico específico. Já os contratos atípicos mistos são várias avenças que se somam e que se integram de modo indissociável, não tendo cada qual vida própria; é, portanto, uma contratação única, complexa e indivisível.

No trato dos contratos atípicos, uma questão de notória importância é da necessidade de se impor limites à liberdade das partes quando da celebração desses ajustes.

Em razão do fato dos contratos atípicos resultarem, por sua própria natureza, da livre manifestação da vontade das partes, não raras são as vezes em que uma das partes é colocada em posição de inferioridade na contratação, suportando o cumprimento de cláusulas flagrantemente leoninas.

Como bem pondera o Prof. Álvaro Villaça (op. cit., p. 142),

a lei necessita fixar moldes gerais para os contratos atípicos, a fim de que a liberdade privada não vá além de seus limites.

A liberdade há que condicionar-se, emoldurando-se na lei, para ser liberdade condicionada, não ser liberdade escravidão, instrumento dos que atuam de má-fé, em detrimento da própria sociedade.

E prossegue:

O acanhamento de nossa legislação, no campo dos contratos típicos e atípicos, choca ante a intensidade da liberdade privada, que se nos coloca pela frente no âmbito contratual.

É verdade que a convenção faz lei entre as partes, mas a própria lei há que conter os limites dessa livre estipulação privada no sistema contratual, para que não fique esse sistema ao arbítrio das convenções, sem a indispensável intervenção do Estado, para diminuir, cada vez mais, os abusos, a fim de que, assim, se realize o fim do Direito, que é a Justiça, depois da Ordem e Segurança sociais (AZEVEDO, op. cit., p. 144).

Preocupado com o excesso de liberdade conferido às partes nos contratos atípicos, o citado autor vem defendendo há vários anos a inclusão no ordenamento jurídico brasileiro de uma teoria geral dos contratos atípicos, para que, desta forma, a liberdade das partes na contratação não se manifeste sem peias (6).

Tem ele como tímida a disciplina dos contratos atípicos no art. 425 do Código Civil de 2002, que, como mencionado, dispõe que "é lícito às partes formular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código".

E de fato lhe assiste razão. Todavia, resta claro que outra não pode ser a interpretação do dispositivo senão a de que se aplicam aos contratos atípicos os princípios gerais de direito contratual, entre os quais os inovadores princípios da vedação à onerosidade excessiva, o da boa-fé objetiva e o da função social do contrato, estes últimos, como se mencionará a seguir, verdadeiras cláusulas gerais (7). Sem se olvidar, evidentemente, que as contratações atípicas são válidas, ante o princípio da autonomia da vontade, desde que não contrariem a lei, a ordem pública, os bons costumes e os princípios gerais de direito.


3. A boa-fé objetiva, a função social do contrato e o princípio da proibição da onerosidade excessiva: inovações da teoria geral dos contratos do Código Civil de 2002 de aplicação indispensável aos contratos atípicos

Como mencionado, para que a liberdade de contratação não se manifeste de forma lesiva a uma das partes contratantes, há a necessidade de se impor limites à autonomia da vontade das partes.

A imposição desses limites é papel do qual não se pode afastar o Poder Judiciário.

O legislador de 2002, graças ao espírito socializador da Comissão Elaboradora do Código Civil, aquinhou o aplicador do direito com ferramentas poderosas para o exercício desse mister.

Três dessas ferramentas são os princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da vedação à onerosidade excessiva, aos quais, de maneira inovadora, o legislador fez expressa referência nos arts. 421, 422 e 478 do Novo Código Civil.

Analisemos uma a uma essas três grandes inovações da teoria geral dos contratos da nova codificação, de indispensável aplicação aos contratos atípicos.

3.1. A boa-fé objetiva

Na tradição do direito brasileiro, é conotada à expressão "boa-fé" a sua acepção subjetiva, assim constando do revogado Código Civil de 1916, entre outras passagens, nas normas dos artigos 221, caput e parágrafo único, e 490, caput e parágrafo único.

Contudo, a norma do art. 422 do Código Civil de 2002 trata da boa-fé em sua acepção objetiva.

A boa-fé subjetiva denota estado de consciência ou convencimento individual da parte de estar obrando em conformidade com o Direito. Diz-se subjetiva justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Contrapõe-se à boa-fé subjetiva a má-fé, também considerada subjetivamente como a intenção de lesar a outrem.

A boa-fé objetiva traduz-se em um modelo de conduta social, arquétipo ou standart jurídico segundo o qual, "cada pessoa deve ajustar a sua própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade" (8).

A boa-fé objetiva, que constitui uma grande inovação do Código Civil de 2002, contemplada em seu art. 422, não se trata propriamente de um princípio, mas sim de uma cláusula geral.

A cláusula geral, na lição de Prof.ª Judith Martins-Costa (9),

constitui uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado uma linguagem de tessitura intencionalmente "aberta", "fluida" ou "vaga", caracterizando-se pela ampla extensão de seu campo semântico. Esta disposição é dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe um mandato (ou competência) para que, à vista dos casos concretos, crie, complemente ou desenvolva normas jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar fora do sistema; estes elementos, contudo, fundamentarão a decisão, motivo pelo qual não só resta assegurado o controle racional da sentença como, reiterados no tempo fundamentos idênticos, será viabilizada, através do recorte da racio decidendi, a ressistematização destes elementos, originariamente extra-sistemáticos, no interior do ordenamento jurídico.

O advento das cláusulas gerais nas codificações modernas surgiu para se contrapor à rigidez das codificações oitocentistas, de elaboração casuística, a cujo modelo seguiu o revogado Código Civil de 1916.

Tais codificações buscavam contemplar nas suas disposições todos os fatos da vida, de forma que ao intérprete caberia tão-somente aplicar a vontade da lei ao caso concreto, pelo conhecido método de subsunção.

Com a inclusão de claúsulas gerais no Novo Código Civil brasileiro, possibilitou o legislador ao magistrado a solução de cada caso concreto, levando-se em conta não somente conceitos e princípios contidos no Código Civil, mas também os de outros sistemas, como os expressos na Constituição Federal e nas inúmeras leis esparsas, estas últimas modernamente chamadas de microssistemas.

Com efeito, o enunciado das cláusulas gerais, ao invés de traçar punctualmente a hipótese e as suas conseqüências, é desenhado como uma "vaga moldura", permitindo, pela vagueza semântica que caracteriza os seus termos, a incorporação de princípios, diretrizes e máximas de conduta originalmente estrangeiros ao corpus codificado, do que resulta, mediante a atividade de concreção desses princípios, diretrizes e máximas de conduta, a constante formulação de novas normas.

Assim, a inclusão dessas cláusulas gerais suscitará mobilidade ao novo sistema, tornando-o apto "a recolher e regular mudanças e criações supervenientes", consoante assentou o saudoso Prof. Josaphat Marinho, que foi relator do projeto de Novo Código Civil quando este ainda tramitava no Senado Federal (10).

A boa-fé objetiva exprime um dever de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade, e, principalmente, na consideração para com os interesses do outro.

Na seara contratual, a boa-fé objetiva concorre para determinar o comportamento devido pelas partes contratantes, funcionando como um limite ao exercício de direitos subjetivos.

Reza o art. 422 do Código Civil de 2002:

"Art.422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".

Com efeito, da boa-fé nascem, mesmo na ausência de regra legal ou previsão contratual específica, os deveres de proteção, cuidado, previdência e segurança com a pessoa e os bens da contraparte, de colaboração para o correto adimplemento do contrato; de informação, aviso e aconselhamento, que devem permear não só as fases de conclusão e execução dos contratos, mas também as fases pré e pós-contratual, consistindo em suma na adoção de determinados comportamentos, impostos pela boa-fé em vista do fim do contrato, dada a relação de confiança que o contrato fundamenta, ou seja, comportamentos variáveis de acordo as circunstâncias concretas da contratação, que deverão ser definidas pelo Poder Judiciário quando da análise do caso concreto.

Assim, cabe ao magistrado, no caso concreto, a aplicação da cláusula geral de boa-fé objetiva, concretizando o enunciado do art. 422 do novo Código Civil por meio da aplicação de preceitos, máximas de conduta e princípios presentes não só no próprio Código Civil, mas também em outros diplomas legais, inclusive na própria Constituição Federal.

3.2. A função social do contrato

Dispõe o art. 421 do Novo Código Civil brasileiro:

"Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato".

Esta norma, aposta no pórtico do Direito dos Contratos do Código Civil de 2002, constitui a expressão, no específico domínio contratual, do valor constitucional expresso como garantia fundamental dos indivíduos e da coletividade, insculpido no art. 5º, inciso XXIII, da Carta Constitucional de 1988, uma vez que o contrato tem, entre outras funções, a de instrumentalizar a aquisição da propriedade. Se a esta já não é mais reconhecido o caráter absoluto e sagrado de outrora (quando era tida como direito natural e inviolável do indivíduo), correlatamente ao contrato inflete o reconhecimento de que ele desempenha na vida social função que transpassa a esfera dos meros interesses individuais.

A atribuição de uma função social ao contrato é reflexo do fenômeno, verificado nas últimas décadas, de funcionalização dos direitos subjetivos.

Em razão desse fenômeno, o poder subjetivo de contratar e a forma de seu exercício são afetados pela funcionalização, que indica a atribuição de um poder tendo em vista certa finalidade, ou a atribuição de um poder que se desdobra como dever, posto que concedido para a satisfação de interesses não meramente próprios ou individuais, mas também dos interesses alheios ou meta-individuais.

Com efeito, o contrato, consoante frase dita e constantemente repetida na doutrina, é "a veste jurídica das operações econômicas", de modo que constitui sua função primordial instrumentalizar a circulação da riqueza, atual ou potencial, de um patrimônio para outro. A constituição econômica de uma sociedade, efetivamente, não é matéria de interesse individual ou particular, mas atinge e interessa a todos. Sendo assim, o contrato, "veste jurídica da circulação de riquezas", tem, inegavelmente, função social.

A função social do contrato foi inserida no Código Civil de 2002 não como mero princípio, mas, assim como a boa-fé objetiva, como verdadeira cláusula geral, com a função precípua de restringir a liberdade contratual absoluta, típica das codificações do século XIX, que, como é cediço, inspiraram o legislador do revogado Código Civil de 1916.

O Prof. Miguel Reale, em excelente publicação, ressaltando o espírito de socialidade de que está imbuído o Novo Código Civil, destacou a importância da cláusula geral da função social do contrato para a operacionalidade da "prevalência do coletivo sobre o individual", noção que inspirou os trabalhos da Comissão Elaboradora do novo diploma legislativo, a qual, como mencionado, foi por ele presidida:

O princípio da função social, que proclamado na Constituição, aí poderia permanecer como "letra morta", transforma-se em instrumento de ação no plano da lei civil (11).

Entretanto, consoante ressaltou a Prof.ª Judith Martins-Costa, a claúsula geral da função social do contrato não exerce somente uma função restritiva - condicionando ou colocando limites à liberdade contratual -, mas também uma função reguladora da disciplina contratual, devendo ser utilizada na interpretação, na integração e na concreção das normas contratuais particularmente consideradas, exemplificando:

a cláusula poderá desempenhar, no campo contratual que escapa à regulação específica do Código de Defesa do Consumidor, funções análogas às que são desempenhadas pelo art. 51 daquela lei especial, para impedir que a liberdade contratual se manifeste sem peias. Na sua concreção, o juiz poderá, avaliadas e sopesadas as circunstâncias do caso, determinar, por exemplo, a nulificação de cláusulas contratuais abusivas, inclusive para o efeito de formar, progressivamente, catálogos de casos de abusividade (MARTINS-COSTA, op. cit., p. 353).

Assim, de indiscutível mérito foi a inclusão da cláusula geral da função social do contrato no novo Código Civil, haja vista que a liberdade de contratar, modernamente, deixou de um direito subjetivo absoluto. Muito pelo contrário, o contrato, como instrumento de circulação de riqueza, interessa não só a uma pessoa, ou a um grupo delas, mas a toda coletividade.

3.3. O princípio da proibição da onerosidade excessiva

Passada a fase do esplendor individualista - final do séc. XVIII e todo séc. XIX -, convenceram-se os juristas de que a economia do contrato não poderia ser confiada ao puro jogo das competições particulares.

Deixando de lado outros aspectos, e encarando o negócio contratual sob a óptica de sua execução, verificaram que, vinculadas as partes aos termos da avença, são muitas vezes levadas, pela força incoercível das circunstâncias externas, a situações de extrema injustiça, conduzindo o rigoroso cumprimento do ajustado ao enriquecimento de uma e ao sacrifício da outra.

Percebendo que este desequilíbrio na economia do contrato afeta o próprio conteúdo da juridicidade, entenderam os juristas que não se deveria permitir a execução rija do ajuste, quando a força das circunstâncias ambientes viesse a criar um estado contrário ao princípio da justiça no contrato.

Assim, em virtude das injustiças que tais circunstâncias supervenientes à contratação estavam acarretando à justiça contratual, que ressurgiu um princípio que a desenvoltura individualista havia relegado ao abandono: o princípio da vedação à onerosidade excessiva.

Referido princípio nasceu entre os juristas da Idade Média, que baseados em um texto de Neratius, que versava sobre a aplicação da teoria da condictio causa data causa non secuta, assentaram que o contrato deveria ser cumprido no pressuposto de que se conservassem imutáveis as condições externas existentes quando da contratação; mas, se por outro lado, houvesse alterações nestas condições, a execução deveria ser igualmente modificada (contractus qui habend tractum sucessivum et dependentian de futuro rebus sic stantibus intelliguntur) (12).

O princípio da vedação à onerosidade excessiva é decorrência da teoria que, surgida entre os romanos da Idade Média, se tornou conhecida como teoria da imprevisão (13).

A teoria da imprevisão presume que nos contratos comutativos há presente uma cláusula, denominada cláusula rebus sic stantibus, que não se lê expressa, mas figura implícita, segundo a qual os contratantes estão adstritos ao cumprimento rigoroso do convencionado, no pressuposto de que as circunstâncias ambientes se conservem inalteradas no momento de sua execução, idênticas às que vigoravam no momento da formação do vínculo contratual.

Ocorre que, com o passar dos anos, a teoria da imprevisão acabou por ser deixada de lado, em virtude das correntes individualistas que emergiram, que a consideravam uma afronta ao princípio da obrigatoriedade dos contratos (pacta sunt servanda).

No Brasil, sempre houve certa resistência por parte da doutrina e dos pretórios em aplicar o princípio da vedação à onerosidade excessiva, pois não havia disposição expressa na lei civil que autorizasse sua aplicação.

Consoante narra Caio Mário da Silva Pereira (1995, p.100):

A primeira palavra francamente favorável à tese, entre nós, foi de Jair Lins, como desenvolvimento da teoria da vontade do negócio jurídico. Mas, em princípio, a resistência de nossos tribunais foi total. Em 1930, veio a lume famoso julgado de Nélson Hungria, abrindo a porta do pretório às novas tendências do pensamento jurídico. E, depois deste, diversos outros surgiram, ora admitindo em casos especiais a sua aplicação, ora aceitando-a em linhas estruturais generalizadas.

Resta a esperança de que, já nos primeiros anos de vigência do Código Civil atual, tal resistência deixe de existir de uma vez por todas, visto que os arts. 478 a 480 do referido diploma consignam expressamente o princípio da vedação à onerosidade excessiva, determinando que se resolva o ajuste ou diminuam-se as prestações naqueles contratos em que eventos supervenientes acarretem ônus excessivo para um dos contratantes.

Embora grande parte da doutrina entenda que a aplicação do princípio da vedação à onerosidade excessiva só tem cabimento naqueles contratos em que as prestações de cada uma das partes estejam pré-definidas - contratos comutativos-, a nosso ver, referido princípio deve também ser aplicado, ainda que de maneira relativizada (analisando-se cada caso concreto), aos contratos aleatórios, quando circunstâncias, totalmente imprevisíveis às partes no momento da contratação, acarretarem notório enriquecimento a um dos contratantes e demasiado ônus ou prejuízo ao outro.

Para que seja aplicado o princípio da vedação à onerosidade excessiva, restabelecendo-se o necessário equilíbrio entre as partes contratantes, devem estar presentes alguns requisitos: a) vigência de um contrato de execução diferida ou sucessiva; b) alteração radical das condições econômicas objetivas no momento da execução, em confronto com o ambiente objetivo no momento da celebração; c) onerosidade excessiva para um dos contratantes e benefício exagerado para o outro; e d) imprevisibilidade daquela modificação.

Sendo assim, a aplicação do princípio da proibição da onerosidade excessiva pelo juiz, quando a ele submetidos casos em que se observem os requisitos acima elencados, acarretará a resolução do contrato ou a modificação das prestações impostas ao contratante prejudicado, sendo que os efeitos da sentença retroagirão à data da citação, nos termos do art. 478 do Código Civil de 2002.

O princípio da vedação à onerosidade excessiva é a última grande inovação do Novo Código Civil analisada neste trabalho, e, sem dúvida, inserindo-se dentro da diretriz socializadora que orientou os trabalhos da Comissão de 1975, representa grande instrumento para se alcançar a justiça nos contratos.

Sobre o autor
José Alexandre Ferreira Sanches

Advogado em São Paulo (SP). Foi bolsista de graduação junto à FAPESP, tendo desenvolvido pesquisa na área de Direito Privado, com o tema “Contratos Empresariais no Novo Código Civil”.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANCHES, José Alexandre Ferreira. Os contratos atípicos e sua disciplina no Código Civil de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 456, 6 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5779. Acesso em: 23 nov. 2024.

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