1. Introdução
Acompanhando o magistério de Joaquim Canuto Mendes de Almeida, no Brasil, e Francesco Carnelutti, na Itália, o Ministério da Educação e Cultura editou a Resolução nº 03, em 25 de fevereiro de 1972, introduzindo no currículo dos cursos jurídicos brasileiros a disciplina Teoria Geral do Processo. Tal atitude veio a contemplar o domínio da chamada corrente unitarista do processo, que entende não haver diferença substancial entre o direito processual civil e o direito processual penal, que "não passam de faces de um mesmo fenômeno, ramos de um mesmo tronco que cresceu por cissiparidade [1]". Em outras palavras, o direito processual é substancialmente uno e "o processo civil se distingue do processo penal não porque tenham raízes distintas, mas pelo fato de serem dois grandes ramos em que se bifurca, a uma boa altura, um tronco único [2]."
A concepção unitária teria sido anunciada por Carnelutti em 1950, na obra Per una Teoria Generale del Proceso, contrariando seu pensamento anterior apresentado no artigo Figura giuridica del difensore, publicado na Revista di Diritto Processuale Civile, em 1940. Contudo, mesmo em seu Sistema di Diritto Processuale Civile, publicado em 1936, já anunciava que "a ciência do direito processual não alcançará seu ápice enquanto não se haja, solidamente, construído uma parte geral, em que os elementos comuns a todas as formas de processo encontrem a sua elaboração [3]."
Em resumo, o pensamento unitarista pode ser vislumbrado em sua essência no magistério de Giovanni Leone [4], para quem as bases do direito processual são comuns tanto ao processo civil quanto ao penal, em três aspectos: ambos tem por objetivo a atuação do Judiciário na solução da lide; em ambos o Judiciário só irá intervir com sua força após o exercício do direito de ação por parte do autor; e em ambos há a presença de três sujeitos processuais: o autor, o réu e o juiz [5].
José Frederico Marques [6], em seu valoroso Ensaio, apontava para o fértil intercâmbio existente entre o processo civil e o processo penal, valorizando ainda mais a unidade científica: "se o processo penal recebeu (ou vem recebendo) do processo civil seiva dogmático-jurídica para um fecundo florescimento científico, que assim substitui o débil e raquítico desenvolvimento doutrinário que anteriormente acusava, – o processo civil por outra parte, encontrou no processo penal substância publicística melhor preparada para a sua construção sistemática como ciência jurídica do direito público, e disciplina científica, destinada a metodizar as regras e princípios da atividade estatal incumbida de aplicar as normas da ordem jurídica às relações de direito privado."
Contudo, falar em unidade do direito processual não significa estabelecer absoluta identidade entre o processo civil e o processo penal, nem tampouco entender que este possa ser absorvido por aquele. O que se pretende com a Teoria Geral do Processo é, apenas, estabelecer o que seja comum entre os ramos do processo [7]. Aliás, a doutrina tradicionalmente comenta esta discussão referindo-se tão somente ao processo civil e penal. Contudo, o estudo da Teoria Geral do Processo deve alcançar também o processo trabalhista. Alguns doutrinadores chegam a incluir o direito processual penal militar e o direito processual eleitoral [8].
Seguindo este raciocínio, José Ovalle Fabela [9] conceitua a disciplina como sendo "la parte general de la ciencia del Derecho Procesal que se ocupa del estudio de los conceptos, principios e instituciones que son comunes a las diversas disciplinas procesales especiales." Na mesma linha o pensamento de Niceto Alcála-Zamora y Castillo [10], para quem a Teoria Geral do Processo seria "o estudo e exposição de conceitos, instituições e princípios comuns aos distintos ramos processuais, isto é, os componentes do tronco de que partem todas elas."
No Brasil não podemos tratar desta disciplina sem comentar – ainda que resumidamente – o magistério de Benedito Hespanha, professor da Universidade de Passo Fundo, autor do clássico Tratado de Teoria do Processo. Para ele a disciplina, de imediato, recebe denominação equivocada e a combate dizendo: "ora, se é teoria, já é geral [11]." Também apresenta interessante conceituação: "é a disciplina jurídica epistemológica que define o processo e o Direito Processual, estudando os conceitos e os princípios básicos da ação, da jurisdição, da relação processual, da norma processual, bem como todos os demais princípios que dão à Ciência do Direito Processual uma idéia global da dogmática da processualística jurídica [12]." Por que entende ser a Teoria do Processo uma disciplina filosófica? Porque, "conclusivamente, se pode dizer que a Teoria do Processo se justifica, como disciplina jurídica de natureza filosófica epistemológica [13], porque fornece uma visão global e de conjunto de toda a dogmática que consubstancia o conteúdo objetivo da Ciência do Direito Processual. A Teoria do Processo, operando com conhecimentos básicos do saber da Ciência do Processo, firma e mantém uma base comum da unidade científica do Direito Processual. Ora, se o processo cientificamente é um só, o Direito Processual, que tem no processo o seu objeto fundamental, também é um só. Pensamos que esta unidade científica só se torna possível, graças à Teoria do Processo [14]."
Outro aspecto importante que merece destaque neste trabalho é o que envolve a cultura jurídica – equivocada – que nasceu em torno do ensino da Teoria Geral do Processo no Brasil. Em nosso caso, o legislador tratou de fazer da figura do juiz o centro gravitacional do fenômeno processo, o que nos leva a acreditar que o estudo que fazemos atualmente no Brasil é de uma Teoria Geral do Processo Jurisdicional, porque desenvolvemos a idéia de que o processo ocorre apenas no âmbito do Judiciário. Não obstante, temos a ocorrência do processo na esfera do Legislativo (processo legislativo), Executivo (processo administrativo) e até dos particulares (respeitante ao processo desenvolvido na realização dos negócios jurídicos, incluindo a arbitragem) [15].
Aliás, sobre esta tendência legislativa de centralização do magistrado, é importante observar que trata-se de comportamento natural quando estamos em períodos não democráticos da história política brasileira. Por certo que, em nome da segurança do regime, a destinação de poder exagerado ao juiz é medida que se impõe urgente, mais adequada à situação ditatorial do que a possibilidade de os cidadãos por si mesmos encontrarem no âmbito do processo a solução adequada aos seus interesses. Se verificarmos as principais normas jurídicas em vigor atualmente (CPC, CPP e CLT), percebemos que foram concebidas em períodos não democráticos, reforçando a tese que indicamos. Contudo, após a Constituição Federal de 1988, várias medidas legislativas foram tomadas no sentido de aproximar gradativamente o processo a um modelo ideal de distribuição de justiça e conseqüente descentralização do poder de tomada de decisões, dividindo-o entre o juiz e os litigantes. [16]
2. Conteúdo da Teoria Geral do Processo
Com o desenvolver da ciência processual, que ocorreu lenta e gradativamente [17], a necessidade da nova disciplina foi ganhando corpo e, atualmente, não há instituições de ensino superior no Brasil que não a tenham incluído em suas grades curriculares [18]. Também não há estudioso do processo que não reconheça a sua importância, o que levou à produção de excelentes obras versando sobre o tema, como as concebidas por Benedito Hespanha, José da Silva Pacheco, Carreira Alvim, Albuquerque Rocha e Cintra, Grinover & Dinamarco, somente para citar os que preferimos.
No entanto, longo caminho teve que ser percorrido para que o conteúdo da Teoria Geral do Processo fosse definitivamente delimitado. É certo que trata-se de uma disciplina teórica envolvendo conhecimento comum a vários ramos do direito processual, o que significa dizer que a amplitude do temário torna-se inevitável. Então, como fixar o conteúdo da matéria sem torná-lo amplo em demasia e fugir do objetivo inicial? Como limitar o conteúdo e não torná-lo insuficiente para atingir o conhecimento teórico mínimo relativo aos três ramos do direito processual (civil, penal e trabalhista)?
Tourinho Filho [19], por exemplo, entende que as universidades poderiam elaborar um programa onde fossem fornecidos ao aluno ensinamentos a respeito de pretensão, lide, formas compositivas do litígio, ação, jurisdição, processo, procedimento, pressupostos processuais, sujeitos processuais, princípios constitucionais do Direito Processual, organização judiciária, atos processuais, seus vícios e teoria geral da prova
As lições de José da Silva Pacheco [20] bem indicam a tendência que restou preponderante em nosso país: "é inegável que o estudo básico de Direito Processual repousa sobre a ação, jurisdição e processo. Sem a ação, a jurisdição, inerte que é, não se movimenta e, desse modo, não constitui o processo, o que está a demonstrar a importância daquela para o conhecimento destes dois últimos institutos. Sem a jurisdição, outrossim, a ação não passaria de atividade inócua sem resultados eficazes. O processo, por seu turno, consiste no modo de proceder para a eficácia da ação e da jurisdição."
Temos, aqui, a chamada trilogia estrutural do processo [21], composta pelo estudo da jurisdição, da ação e do processo, e que será alvo de investigação pela Teoria Geral do Processo. Giuseppe Chiovenda defendia, referindo-se a esta concepção tríplice, que o processo, neste aspecto, recebia sua completa significação: "um lado supõe o outro, e nenhum deles pode ser estudado isoladamente de uma maneira proveitosa. Assim, na ciência do direito processual, resultam três grandes divisões que se completam reciprocamente: a teoria da ação e das condições de tutela jurídica, a teoria dos pressupostos processuais (propriamente, da jurisdição) e a teoria do procedimento [22]."
Certo é que alguns autores [23] incluem o estudo da defesa (exceção lato sensu) à Teoria Geral do Processo, o que termina por desfigurar a trilogia. Grande parte da doutrina, no entanto, prefere inseri-la como tópico de estudo do direito de ação porque desse é dependente em razão da bilateralidade da ação e do processo. Assim, tanto o autor (através da ação) quanto o réu (através da exceção) têm direito ao processo, e não há como se falar em ação sem se tratar da exceção, principalmente porque temos hoje constitucionalmente garantidos o direito ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LV, CF), ambos corolários do devido processo legal (art. 5º, LIV, CF).
3. Processo e Constituição
[24]Modernamente é inegável o profundo vínculo existente entre o direito processual e o direito constitucional, principalmente nos países onde os ordenamentos foram concebidos durante os regimes democráticos. Obviamente, isso não significa que nos regimes autoritários as constituições não tragam em seu texto dispositivos destinados a regular matéria processual – tomemos como exemplos as Constituições brasileiras de 1937 e 1967, das quais trataremos adiante. Contudo, na democracia é que o processo torna-se instrumento de realização da justiça, torna-se meio para a pacificação da sociedade através da composição dos conflitos de interesses. É na democracia que o judiciário, aplicador do direito ao caso concreto, irá exercer suas funções tendo como "roteiro obrigatório" as regras processuais ditadas pela legislação, sob pena de proferir decisões eivadas de vícios. Oportuna a lição de Baracho [25]: "como a Constituição sofre influência do sistema político, as orientações políticas recolhidas nos textos constitucionais contribuem, também, no desenvolvimento do processo. As vinculações entre o ‘sistema político’ e os ‘sistemas processuais’ são evidentes."
Contudo, como já afirmamos em outro trabalho [26], essa concepção atando por laços fortes o processo e a constituição é recente no direito brasileiro, pois embora todas as Cartas tenham trazido uma quantidade razoável de regras processuais – de maneira preponderante dirigidas ao processo penal – somente com a Constituição Federal de 1988 tais garantias foram efetivamente reconhecidas por todos aqueles que operam o direito. A explicação se deve ao fato de que o Brasil teve, na verdade, pequenos espaços de tempo em regime de estabilidade democrática, o que originava um descrédito natural dirigido às disposições constitucionais, principalmente aquelas voltadas a regular o processo e suas particularidades: atuação do Estado no exercício da função jurisdicional, as garantias individuais do cidadão, os remédios constitucionais etc.
O pioneirismo da análise envolvendo processo e constituição deve ser creditado ao uruguaio Eduardo Couture, que no final da década de quarenta, apontava para a união indissolúvel entre processo e Constituição. Para chegar à conclusão de que não há como a doutrina examinar os institutos processuais senão em perspectiva constitucional, utilizou-se dos ensinamentos de Hans Kelsen, para quem a ordem jurídica é um sistema de normas jurídicas escalonadas em diferentes camadas ou níveis, tendo a Constituição como norma fundamental norteadora de toda a legislação inferior a ela, incluindo a processual.
Assim, o processo apresenta-se como instrumento da tutela do direito, que somente é realizada através das previsões constitucionais. Neste passo a Constituição pressupõe a existência do processo, como garantia de defesa da pessoa humana, sendo que os Textos Constitucionais do século XX, com algumas exceções, reconhecem a necessidade de apresentarem "proclamação programática de princípio do direito processual" no conjunto dos direitos e garantias da pessoa humana [27]. No mesmo sentido opina Carlos Arellano García, da Universidade Nacional Autônoma do México, para quem "en la parte dogmática de una Constitución se contienem los derechos públicos subjetivos que tiene el gobernado como oponibles al poder público. Si en el proceso interviene el juzgador como autoridad y la parte como gobernado, es claro que las disposiciones constitucionales que rigen las relaciones entre gobernantes y gobernados le sean aplicables al proceso [28]."
Para a professora Ada Pelegrini [29], todo o direito processual "tem suas linhas fundamentais traçadas pelo direito constitucional, que fixa a estrutura dos órgãos jurisdicionais, que garante a distribuição da justiça e a declaração do direito objetivo, que estabelece alguns princípios processuais. Todo o direito processual, que disciplina o exercício de uma das funções fundamentais do Estado, além de ter pressupostos constitucionais – como os demais ramos do direito – é fundamentalmente determinado pela Constituição, em muitos de seus aspectos e institutos característicos. Alguns dos princípios gerais que o informam são, ao menos inicialmente, princípios constitucionais ou seus corolários."
Verificado este indiscutível envolvimento entre processo e constituição – fortalecido principalmente no final dos anos sessenta e princípio da década de setenta, quando passaram os estudiosos a dar ênfase à origem constitucional dos institutos processais básicos [30] – nasceu no seio das discussões doutrinárias uma nova posição científica: o direito constitucional processual. Tratamos por "posição científica" porque, naturalmente, não estamos a cuidar de um ramo da ciência jurídica, pois bem sabemos que para alcançar este status, deve a disciplina contar com independência científica e didática [31]. É apenas um ponto de vista metodológico e sistemático para o estudo das questões envolvendo o processo e a Constituição.
Assim, o direito constitucional processual compreende o estudo sistemático dos conceitos, categorias e instituições processuais, consagradas na Constituição. Em outras palavras, abrange a análise das disposições relativas ao processo contidas na Constituição, como por exemplo os princípios gerais do processo. No entanto, não devemos confundi-lo com o direito processual constitucional que cuida do estudo dos mecanismos processuais que garantem as normas constitucionais (habeas data, mandado de segurança, mandado de injunção, habeas corpus, ação popular, ação direta de inconstitucionalidade etc.).
Sabedores antemão de que o interesse principal da Teoria Geral do Processo será, portanto, pelo direito constitucional processual, concluímos que o estudo da trilogia estrutural do processo passa, necessariamente, pela análise dos dispositivos constitucionais que tratam de matéria processual. Vicente Greco Filho [32] chega a afirmar que a responsabilidade pela supremacia dos unitaristas deve-se ao entendimento que une intimamente o processo e a constituição: "a compreensão unitária do direito processual resultou, especialmente, da verificação de que o poder jurisdicional, como um dos poderes do Estado, é único, e sua estruturação básica encontra-se a nível da Constituição Federal, de modo que resulta inevitável a conclusão de que há algo comum a toda atividade jurisdicional."
4. O direito processual nas Constituições do Brasil [33]
A Constituição Federal de 1988 – sem dúvida – é a mais pura expressão do anseio da sociedade brasileira em retornar à democracia. Seus dispositivos, embora sejam alvo de duras críticas dos constitucionalistas, demonstram o desejo do legislador constituinte em atingir na maior amplitude possível todas as situações que entendesse cabíveis em uma nova Carta Constitucional. Daí, talvez, o exagerado número de temas que poderiam ser tratados pelo legislador ordinário.
Injustificável, por exemplo, a presença do mandamento de que "o Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal" (art. 242, § 2º). Em outros casos, a inserção definitiva de disposições na órbita constitucional servem como referência pessoal para o parlamentar responsável pela sugestão do texto. O ilustre professor Michel Temer, em matéria publicada pela Folha de São Paulo em 29/12/1999, tratou de informar aos leitores que o texto do art. 133 da Constituição Federal [34] é de sua responsabilidade: "de outro lado está a figura do advogado, indispensável à administração da justiça, como estabelecido no artigo 133, que tive a honra de fazer inserir na Constituição de 88 [35]".
Além disso, a Constituição traz um número considerável de normas que não possuem aplicação imediata, porque dependem de regra posterior que as complemente. São as chamadas regras não-auto-executáveis, que vêm divididas em três espécies: i) as normas incompletas: aquelas que não estão suficientemente definidas, como as normas que criam institutos processuais mas não esclarecem qual o procedimento aplicável; ii) as normas condicionadas: que embora pareçam definidas por completo foram condicionadas pelo constituinte a uma lei posterior, que precise seus elementos integrantes e; iii) normas programáticas: as que indicam planos ou programas de atuação governamental.
Contudo, tratando-se da temática processual, a atual Constituição merece nossa reverência – e disso falaremos no tópico seguinte. Antes, porém, vejamos o tratamento das questões processuais ao longo da história constitucional brasileira, utilizando alguns dos valorosos exemplos colhidos na obra de Roberto Rosas [36]:
a) A Constituição Política do Império do Brasil (1824), consagrou inicialmente o princípio da legalidade, alicerçado na máxima de que nenhum cidadão está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei (art. 179, I); previu que nenhuma lei seria estabelecida sem utilidade pública (art. 179, II), bem como a irretroatividade de seus efeitos (art. 179, III). Na esfera processual penal garantiu que ninguém poderia ser preso sem culpa formada, sendo assegurada a apresentação de nota de culpa (art. 179, VIII). Também ordenava que ninguém poderia ser sentenciado senão por autoridade competente, em virtude de lei anterior ao fato, na forma que esta prescrevesse (art. 179, XI) [37].
Quanto à atuação do Judiciário, cuidou de garantir sua independência (arts. 151 e 179, XII, primeira parte), mas inseriu mandamento de que nenhuma autoridade poderá avocar as causas pendentes, sustá-las, ou fazer reviver processos findos, numa clara referência à coisa julgada (art. 179, XII, segunda parte). Além disso, proibiu o foro de exceção (art. 179, XVII), instituiu o juízo arbitral (art. 160) e proibiu o início de qualquer demanda sem que restasse comprovada a tentativa de conciliação prévia (art. 161).
b) A Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil (1891), manteve a maioria das regras processuais contidas no Texto anterior. Inovou, contudo, ao criar a dualidade da legislação processual, sendo da competência da União legislar sobre o direito processual da justiça federal (art. 34, nº 23) e dos estados membros sobre o processo em geral (art. 63), surgindo os códigos estaduais de processo. Conta José da Silva Pacheco [38] que o primeiro estado a regular o processo foi o do Pará (1905), sendo seguido pelo Rio Grande do Sul (1909), Maranhão (1908), Bahia (1915), Espírito Santo (1915), Rio de Janeiro (1919), Paraná (1920), Piauí (1920), Sergipe (1920), Ceará (1921), Minas Gerais (1922), Rio Grande do Norte (1922), Pernambuco (1924), Santa Catarina (1928), São Paulo (1930) e Paraíba (1930). Lembra o autor que o Espírito Santo chegou a ter sucessivamente três códigos, enquanto Alagoas, Goiás, Mato Grosso e Amazonas não o tiveram. Estes três últimos estados utilizaram-se do Regulamento nº 737, de 1850, que disciplinava o processo das causas comerciais, até a entrada em vigor do CPC de 1939.
A Carta Republicana também cuidou de proclamar que "todos são iguais perante a lei" (art. 72, § 2º), além de garantir aos acusados a ampla defesa, com todos os recursos e meios essenciais ao seu exercício (art. 72, § 16). O habeas corpus pela primeira vez foi elevado à categoria de "remédio constitucional", ditando o art. 72, § 22: "dar-se-á o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade, ou abuso de poder". Antes, porém, tanto o Código Criminal (1830), o Código de Processo Criminal (1832) e a Lei 2.033 (1871) [39] fizeram referência ao habeas corpus.
c) A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1934), em termos processuais, foi a mais fértil das Cartas que antecederam a atual Constituição. Inicialmente reunificou a legislação processual, ao ditar que competia privativamente à União legislar sobre direito processual (art. 5º, XIX, a), bem como empreender a divisão judiciária da União, do Distrito Federal e dos Territórios, e organização dos juízos e tribunais respectivos (alínea b). A organização judiciária da justiça estadual ficaria a cargo dos respectivos estados membros (art. 104).
No âmbito dos direitos e garantias individuais (art. 113), esta Constituição garantiu aos cidadãos que a lei não prejudicaria o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (nº 3); proibiu a prisão do devedor de custas processuais (nº 30); previu a prestação da assistência judiciária aos necessitados pela União e estados membros, com total isenção das costumeiras despesas (nº 32); previu o princípio da inafastabilidade da jurisdição, ao ordenar que "nenhum juiz deixará de sentenciar por motivo de omissão da lei", hipóteses em que deveria decidir por analogia, princípios gerais do direito e eqüidade [40] (nº 37).
Contudo, a novidade revolucionária surgida em 1934 foi a instituição do mandado de segurança [41] (nº 33), no seguintes termos: "dar-se-á mandado de segurança para a defesa de direito, certo e incontestável [42], ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade. O processo [43] será o mesmo do habeas corpus, devendo ser sempre ouvida a pessoa de direito público interessada. O mandado não prejudica as ações petitórias competentes".
A revolução a que nos referimos é facilmente explicada. A chamada "doutrina brasileira do habeas corpus", defendia tese de que este remédio poderia estender-se ao restabelecimento de qualquer direito que tivesse como pressuposto a liberdade de locomoção. Em outras palavras, "caberia para garantir a liberdade física e para garantir a liberdade de movimentos necessária ao exercício de qualquer direito, desde que certo e incontestável [44]". Esforçando-se a doutrina e principalmente o Supremo Tribunal Federal neste sentido, algumas situações jurídicas que não encontravam a proteção exata em nosso quadro de ações, foram amparadas pela utilização analógica do habeas corpus, até a entrada em vigor da Constituição de 1934 e a consagração do mandado de segurança como ação típica para combater os atos abusivos que ferissem direito líquido e certo.
d) A Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1937), conforme aponta a doutrina [45], teve influência direta da Constituição da Polônia – daí os críticos e analistas da época denominá-la maliciosamente de "A Polaca" –, do fascismo de Mussolini vitorioso na Itália em 1922 e do nazismo implementado por Hitler na Alemanha, sob a argumentação de prevenir o país econômica e financeiramente após a crise mundial de 1929 [46]. Na história constitucional brasileira foi a primeira Constituição que dispensou o trabalho de representação popular constituinte, contrariando o modelo de sucesso dos constituintes de 1823. As variadas críticas podem ser resumidas nas lições de Paulo Bonavides e Paes de Andrade [47]:
"A Constituição de 1937, enfim, está na base do surgimento de uma burocracia estatal com pretensões legislativas, de um Poder Executivo centralizado e extremamente forte, de um Legislativo pulverizado e convertido em Conselho Administrativo. Ele é o reflexo de uma corrente autoritária de pensamento que subjugou nossas melhores esperanças democráticas. (...) A Constituição de 37 não respeitou nem mesmo seu próprio texto, concentrando direitos a uma única pessoa (o Presidente). Ela foi o biombo de uma ditadura que sequer tinha preocupações com os disfarces".
Em termos processuais – seguindo a mesma linha ideológica – a Constituição de 1937 apagou as luzes democráticas lançadas pela sua antecessora. De imediato, excluiu de seus dispositivos o mandado de segurança [48] e não exigia para a prestação jurisdicional a observância ao princípio do juiz natural. No âmbito da organização judiciária, extinguiu a Justiça Federal, ditando que seriam órgãos do Poder Judiciário (art. 90) apenas o Supremo Tribunal Federal, os juízes e tribunais estaduais e os juízes e tribunais militares.
Limitou o habeas corpus às situações que não configurassem punição disciplinar (art. 122, nº 16) e ignorou a importância do juiz natural, prevendo a possibilidade de criação de tribunal especial – que entendemos de exceção – para julgar os "crimes que atentarem contra a existência, a segurança e a integridade do Estado, a guarda e o emprego da economia popular" (art. 122, nº 17).
Ainda, como levanta Roberto Rosas [49], o controle da constitucionalidade da lei foi reduzido, conforme assinalava o art. 66, § 1º, porque quando o Presidente da República julgasse um projeto de lei inconstitucional ou contrário aos interesses da nação, poderia vetá-lo e devolvê-lo ao Parlamento. Se a lei fosse confirmada por dois terços dos presentes à votação, a decisão judicial ficaria sem efeito e a lei seria publicada. Em palavras conclusivas, "a inconstitucionalidade permanecia apenas ratificada pelo Congresso [50]".
e) A Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1946), no dizer dos historiadores mais respeitados [51], "nos traz a certeza de que toda ditadura, por mais longa e sombria, está determinada a ter um fim. E, no caso da ditadura de Vargas, pode-se dizer que a luz que se seguiu às trevas foi de especial intensidade: o liberalismo do texto de 46 deve ser motivo de orgulho para todos os brasileiros. Foi parâmetro importante para nossa recente experiência constituinte e há de ser lembrada com atenção e respeito".
No que tange à seara processual alguns elogios devem ser dirigidos àquela Carta promulgada em 18 de setembro. Além do restabelecimento do mandado de segurança (art. 141, § 24), ignorado por sua antecessora, podemos citar dois valorosos exemplos: i) a inafastabilidade da jurisdição – também chamada de princípio do controle jurisdicional, garante a todos os cidadãos o acesso ao Judiciário, que não pode recusar-se a decidir o que lhe for proposto ainda que a pretensão esteja desamparada pelo ordenamento jurídico [52]. A Constituição de 1946 previu que "a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual" (art. 141, § 4º); ii) instituição da ação popular [53] – este remédio constitucional (de origem romana) surgido da necessidade de defesa do interesse público e da moral administrativa através de fiscalização pelo cidadão, teve suas bases fixadas pela Constituição de 1946 em seu art. 141, § 38: "qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados, dos Municípios, das entidades autárquicas e das sociedades de economia mista".
f) a Constituição do Brasil (1967) [54], concebida no dramático período ditatorial que perdurou de 1964 até a Nova República, é um texto polêmico e contraditório, pois alguns de seus dispositivos claramente liberais colidem com a realidade do momento político do país. Como opinou Alcides de Mendonça Lima [55], "a Constituição Federal de 1967 aperfeiçoou muitas instituições; claudicou noutras; omitiu-se em algumas e retrocedeu – ainda bem! – em poucas".
Em termos processuais, como afirma Roberto Rosas [56], "a Constituição de 1967 trouxe várias novidades e modificações aos princípios constitucionais do processo". É claro que não poderíamos esperar inovações revolucionárias em favor dos cidadãos, porque o momento político assim não permitia. Contudo, não tivemos guilhotinadas algumas das conquistas presentes nas Cartas anteriores.
O mandado de segurança foi mantido (art. 150, § 21), sendo apenas limitado à proteção de direitos individuais, o que terminou por excluir das pessoas jurídicas a legitimação para propositura de tais ações [57]. Cabível seria o recurso ordinário ao Supremo Tribunal Federal quando o mandado de segurança ou o habeas corpus fosse denegado em única ou última instância por tribunais locais ou federais (art. 114, II, a) [58]. A ação popular (art. 150, § 31) também foi mantida, com a seguinte redação: "qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise a anular atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas".
O art. 150, que inaugura o Capítulo IV (Dos direitos e garantias individuais), trouxe outras disposições processuais importantes: protegeu as decisões judiciais já transitadas em julgado (§ 3º); manteve a inafastabilidade da jurisdição (§ 4º); garantiu que ninguém poderia ser preso senão em flagrante delito ou mediante ordem judicial de autoridade competente, sendo exigida a sua comunicação imediata ao juiz competente para conhecer do fato, sendo-lhe facultado o relaxamento em caso de ilegalidade (§ 12º); garantiu aos acusados em processo criminal o exercício da ampla defesa (§ 15º); proibiu os tribunais de exceção, em respeito ao princípio do juiz natural (§ 15º); instituiu que toda instrução criminal seria contraditória, garantindo a irretroatividade da lei, salvo nas hipóteses de benefício ao réu (§ 16º); proibiu a prisão civil por inadimplemento no pagamento de custas processuais ou multas (§ 17º); garantiu a soberania do júri popular (§ 18º); manteve o remédio do habeas corpus (§ 20º); assegurou o direito de petição em defesa de direitos ou contra abusos de autoridade (§ 30º); e garantiu a prestação de assistência judiciária aos necessitados (§ 32º).
g) A Emenda Constitucional nº 1 (1969), instituída pelo Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968, assinado pelo então Presidente da República, Costa e Silva, deu nova redação à Constituição de 1967, fortalecendo o Executivo. Alguns autores sustentam que a EC nº 1 veio a substituir a Constituição de 1967. Outros – como Pontes de Miranda, que acompanhamos – entendem que "não há Constituição de 1969, mas de 1967, cujo sistema não foi alterado pela Emenda nº 1, embora esta tenha promovido algumas modificações no seu texto [59]."
No que tange ao processo, iniciemos pelo comentário de uma disposição trazida pela Emenda Constitucional nº 1, em seu art. 153, § 18, cuja redação era a seguinte: "é mantida a instituição do júri, que terá competência no julgamento dos crimes dolosos contra a vida". Como podemos perceber pela simples leitura do mandamento, a expressão "soberania do júri" foi omitida pelo novo texto. Embora a competência do júri popular tenha sido mantida pela EC nº 1, resta evidente o abuso cometido pelo "Constituinte", porquanto as Constituições anteriores já consagravam a soberania do júri (1967) ou mesmo a soberania dos veredictos (1946) [60].
No entanto, a Emenda Constitucional nº 1 manteve quase na totalidade as disposições processuais contidas na Constituição de 1967. De relevante temos as mudanças implementadas em 1977 pela Emenda Constitucional nº 7, promulgada pelo então Presidente Ernesto Geisel, com base nas atribuições que lhe foram conferidas pelo AI-5.
Por tal emenda o princípio do juiz natural sofreu duro golpe em sua amplitude porque o art. 153, § 4º condicionou o exercício do direito de ação ao esgotamento das vias administrativas. Manteve a redação dos textos anteriores – "a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual" – prevendo que "o ingresso em juízo poderá ser condicionado a que se exauram previamente as vias administrativas, desde que não exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de cento e oitenta dias para a decisão sobre o pedido". As vias administrativas a que se refere o art. 153, § 4º poderiam ser criadas para decidir os litígios trabalhistas envolvendo a União, autarquias e empresas públicas federais e seus servidores (art. 110 e 111).
No tocante à inconstitucionalidade das leis, a Emenda nº 7 também foi fértil em inovações. Admitiu a criação de órgão especial nos Tribunais de Justiça com mais de vinte e cinco desembargadores (art. 144, V) para declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, pelo voto da maioria absoluta de seus membros (art. 116). Também autorizou ao Procurador-Geral da República o pedido de interpretação, em tese, de lei ou ato normativo federal ou estadual (art. 119, alínea l), bem como autorizou pedido de medida cautelar nas representações que oferecesse (art. 119, alínea p). Por último, criou a avocatória de qualquer causa para o Supremo Tribunal Federal, a pedido do Procurador-Geral da República, nas hipóteses de imediato perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou às finanças públicas, para fim de suspender os efeitos da decisão proferida e para que o conhecimento integral da lide lhe seja devolvido (art. 119, alínea o).