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A identificação compulsória pelo perfil genético e a hipérbole do direito ao silêncio

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Agenda 07/06/2017 às 15:46

A extração de material biológico para a identificação do investigado pelo perfil genético pode ser realizada compulsoriamente? Ou, do contrário, há, nesse proceder, alguma violação ao direito ao silêncio? Há, em verdade, um inegável superdimensionamento do alcance do princípio constitucional que consagra o direito ao silêncio.

As intervenções corporais são definidas por Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano como “as medidas de investigação que se realizam sobre o corpo das pessoas, sem necessidade de obter seu consentimento e, se necessário, por meio da coação direta, com o fim de descobrir circunstâncias fáticas que sejam de interesse para o processo, em relação com as condições ou o estado físico ou psíquico do sujeito, ou com o fim de encontrar objetos escondidos nele.”[3]

Trata-se, pois, de situações nas quais o indivíduo, sem perder a condição de sujeito de direitos, “deve se submeter a (ou suportar) determinadas ingerências corporais, com finalidades probatórias.”[4]

Poucas são as intervenções corporais previstas em nossa legislação, não havendo entre nós uma regulamentação sistemática do assunto. Nada obstante, o ordenamento jurídico brasileiro contempla algumas espécies do gênero intervenção corporal, sendo corriqueiramente lembradas, no ponto, a identificação criminal (datiloscópica, fotográfica e por coleta de material biológico para a obtenção do perfil), o exame grafotécnico (art. 174, CPP), os testes de alcoolemia e o exame do bafômetro/etilômetro (arts. 277 c.c 306, § 1º, I, CTB) etc.

As intervenções corporais, contudo, como bem observa Eugênio Pacelli, nem sempre vêm sendo admitidas pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, geralmente sob a equivocada fundamentação de desrespeito a um suposto princípio constitucional da não autoincriminação.[5]

Há, em verdade, um inegável superdimensionamento do alcance do princípio constitucional que consagra o direito ao silêncio. Da cláusula consoante a qual “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado” (art. 5º, inc. LXIII, CR/88), não se pode extrair a existência dos equivocadamente proclamados “direitos” (tupiniquins) à mentira;[6] à fuga;[7] à apresentação de documentação falsa para eximir-se do processo;[8] à omissão de socorro;[9] à imunidade contra a revista de bagagens em aeroportos;[10] etc.

Em virtude dessa noção amplíssima do direito ao silêncio, que vez ou outra encontra eco nos tribunais, está-se criando no Brasil – e somente aqui –, anota Pacelli, “um conceito absolutamente novo da não autoincriminação, ausente nos demais povos civilizados.” E, com a ironia que lhe é peculiar, dispara o autor: “esperamos que, no futuro, não se vá reconhecer eventual direito subjetivo ao homicídio, para fins de evitação da prisão pela prática de outro crime qualquer...”[11]

Encampamos, amplamente, a crítica feita à demasiada extensão que se tem dado em nosso país ao direito ao silêncio, que, em verdade, deve ficar restrito aos lindes do direito de não ser obrigado a se autodeclarar culpado (não depor contra si)[12] e servir como uma garantia individual de proteção contra intervenções corporais ilegítimas, o que não é o caso, particularmente, das modalidades de identificação criminal. Por essa razão, rechaçamos a pecha de que a identificação criminal – em qualquer de suas modalidades (fotográfica, datiloscópica e pelo perfil genético) – confronta com o brocardo nemo tenetur se detegere.[13]

Com efeito, calha ressaltar que a realização dos procedimentos de identificação criminal não importa aceitação de culpa, tanto que na hipótese do inciso IV do art. 3º da Lei 12.037/2009, a providência poderá ser pleiteada inclusive pela defesa, com o propósito de afastar a responsabilização criminal. Demais disso, se de um lado a Constituição da República consagra o direito ao silêncio, de outro, autoriza a realização da identificação criminal “nas hipóteses previstas em lei” (art. 5º, inc. LVIII).

Assim, pelo princípio da concordância prática[14] (ou da harmonização),

“não se pode querer emprestar valor absoluto ao direito de não produzir prova contra si mesmo, inviabilizando que o Estado possa colher as impressões digitais de alguém com a finalidade de registrar os dados da identidade física do provável autor do delito. Portanto, como se trata de um procedimento para tornar exclusiva determinada pessoa, evitando-se, assim, o indesejado erro judiciário, o ideal é concluir que o acusado não tem o direito de se recusar a colaborar com o Estado para sua individualização.

A assertiva de que o direito contra a autoincriminação não tem natureza absoluta é confirmada pelo próprio entendimento jurisprudencial acerca da impossibilidade de o direito ao silêncio abranger o direito de falsear a verdade quanto à identidade pessoal.”[15]

Dessarte, a realização das identificações datiloscópica e fotográfica não devem causar maior estranheza, sobretudo por serem consideradas modalidades não invasivas de identificação criminal.

Também não vemos maior problema na realização da identificação probatória pelo perfil genético. É que a dita providência cautelar (art. 3º, IV, c.c art. 5º, parágrafo único, ambos da Lei 12.037/2009) será necessariamente submetida ao filtro judicial, e somente será deferida (excepcionalmente) diante da presença dos requisitos intrínsecos às cautelares. Ademais, no exame da necessidade da providência, o magistrado deverá se atentar para a natureza e as circunstâncias do delito, sendo certo que a autoria de determinados crimes pode vir a ser fielmente demonstrada justamente por meio da identificação pelo perfil genético, como ocorre, por exemplo, com as infrações de natureza sexual.

E que não se pretenda:

“invalidar a providência com base em suposto direito a não autoincriminação. [...] Aliás, eis aqui cristalino exemplo da inadequação do argumento: a questão gira em torno da violação ou não (a depender do exame a ser realizado e de sua necessidade efetiva) de direitos materiais, como a integridade física e/ou psíquica da pessoa submetida à intervenção dessa natureza.

Então, desde que mantida a excepcionalidade da medida, controlada pela exigência de ordem judicial fundamentada (art. 3º, IV, Lei nº 12.037/09, com redação dada pela Lei nº 12.654/12), não vemos inconstitucionalidade na exigência. Os meios de coleta deverão respeitar a proibição de ingerências abusivas e desnecessárias, conforme estipulado em Tratados Internacionais sobre a matéria.”[16]

A extração – judicialmente autorizada – do material há de ser feita “por técnica adequada e indolor” (art. 9º-A da Lei 7.210/1984). Mas a grande questão que fica é: e se não houver disposição por parte do investigado de fornecer o material genético, poderá haver a coleta compulsória? O tema é dos mais polêmicos e divide a doutrina, conforme se vê:

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1ª corrente: Defende a concepção segundo a qual a coleta de material biológico para obtenção de perfil genético “deve ser lida à luz do princípio da vedação à autoincriminação, de maneira que, havendo recusa do capturado ou indicado, não se poderá obrigá-lo ao fornecimento.”[17] Isso porque, ao contrário do que ocorre no processo civil, com a distribuição dinâmica do ônus da prova (art. 373, § 1º, NCPC), no processo penal o indivíduo encontra-se sob o manto da presunção de não-culpabilidade, o que significa dizer que a totalidade da carga probatória está nas mãos do acusador. Logo, por esse raciocínio, o sujeito passivo não pode ser compelido a auxiliar o Estado a liberar-se de uma carga probatória que não lhe pertence.

A validade da identificação do perfil genético, portanto, está condicionada à forma de coleta do material biológico, conforme ensina Renato Brasileiro de Lima:

“como o acusado não é obrigado a praticar nenhum comportamento ativo capaz de incriminá-lo, nem tampouco a se submeter a provas invasivas sem o seu consentimento, de modo algum pode ser obrigado a fornecer material biológico para a obtenção de seu perfil genético. Todavia, se estivermos diante de amostras de sangue, urina, cabelo, ou de outros tecidos orgânicos, descartadas voluntária ou involuntariamente pelo investigado na cena do crime ou em outros locais, não há qualquer óbice a sua coleta, sem que se possa arguir eventual violação ao princípio do nemo tenetur se detegere.

[...] o Supremo[18] já se manifestou no sentido de que o acusado não é obrigado a fornecer material para realização de exame de DNA. Todavia, o mesmo Supremo também tem precedentes no sentido de que a produção dessa prova será válida se a coleta do material for feita de forma não invasiva (v.g., exame de DNA realizado a partir de fio de cabelo encontrado no chão). Idêntico raciocínio deve ser empregado quanto à identificação do perfil genético: desde que o acusado não seja compelido praticar qualquer comportamento ativo que possa incriminá-lo, nem tampouco a se sujeitar à produção de prova invasiva, há de ser considerada válida a coleta de material biológico para a obtenção de seu perfil genético.”[19]

Apesar de não exemplificarem hipóteses de legítimas intervenções corporais[20], dois famosos casos de coleta não invasiva de material genético são frequentemente lembrados pela doutrina, a saber: o caso Glória Trevi e o caso Pedrinho.

No primeiro, o STF[21] entendeu válida a coleta de material biológico da placenta, com propósito de se realizar exame de DNA para averiguação de paternidade do nascituro, contra a vontade da cantora chilena Gloria Trevi, haja vista que ela dizia ter sido vítima de estupro dentro do cárcere da polícia federal. Como a placenta foi recolhida por ocasião do parto, por ser um órgão que é expelido naturalmente nesse processo, validou-se judicialmente a providência probatória.

No segundo, à vista da recusa da investigada de se submeter à coleta de material genético, entendeu-se legítima a ação policial de arrecadar a ponta de um cigarro (contendo glândulas salivares) descartada pela suposta mãe do menino Pedrinho, o qual havia sido retirado do berçário da maternidade por uma mulher que publicamente passou a assumir a sua maternidade. A diligência policial possibilitou a análise do DNA e redundou na conclusão de que a investigada, de fato, não era a genitora do garoto.[22]

A chamada renúncia do interessado – lembrada no direito comparado como uma das várias exceções[23] às exclusionary rules (inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos), as quais mitigam sobremaneira a teoria dos frutos da árvore envenenada – também confere suporte de validade à prova obtida no caso Pedrinho, haja vista que o lixo descartado pela pessoa para ser recolhido pelo serviço de limpeza indica uma verdadeira renúncia ao direito à intimidade.[24]

2ª corrente (nossa posição): Sérgio Moro defende a possibilidade de realização compulsória do exame de DNA. Em seu ponto de vista,

“deve ser afastado como óbice a velha máxima latina de que ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. Como foi demonstrado, não existe base normativa para um direito genérico da espécie, resguardando a Constituição e a lei apenas o direito ao silêncio. Não há [...] argumentos jurídicos, históricos, morais e mesmo de direito comparado que autorizem a ampliação do direito ao silêncio para um direito genérico de não produzir prova contra si mesmo. A invocação de pretenso direito da espécie pela doutrina e jurisprudência brasileiras é mais fruto de um slogan do que de uma robusta argumentação jurídica. Portanto, há a possibilidade legal e constitucional, com limites no princípio da proporcionalidade, como os sugeridos, de colheita compulsória de material biológico do acusado e do investigado para exames genéticos em casos criminais.”[25]

A seu turno, Aury Lopes Jr. lembra que os direitos fundamentais não são absolutos e que, com o advento da Lei 12.654/2012, o legislador brasileiro autorizou a intervenção corporal – sem o consentimento do imputado – para obtenção de material genético, o que, em sua visão, fulminou a tradição brasileira de observância ao direito de não produzir prova contra si mesmo. São suas palavras:

“A nova lei altera dois estatutos jurídicos distintos: a Lei n. 12.037/2009, que disciplina a identificação criminal e tem como campo de incidência a investigação preliminar, e, por outro lado, a Lei n. 7.210/1984 (LEP), que regula a Execução Penal. Portanto, em duas situações (investigado e apenado), o sujeito passivo está obrigado a submeter-se a intervenção corporal (voluntariamente ou mediante coerção) para fornecimento de material genético. Com isso, fulminou-se a tradição brasileira de respeitar o direito de defesa pessoal negativo – nemo tenetur se detegere. [...]

A lei não diz (e nem precisaria), mas, em caso de recusa do imputado em fornecer o material genético, poderá a autoridade fazê-lo compulsoriamente, ou seja, 'à força'. A única 'garantia' é o emprego de técnica 'adequada e indolor'. A lei disciplina a retirada coercitiva, porque voluntariamente sempre esteve autorizada e nem precisaria de qualquer disciplina legal (integra o direito de defesa positivo).”[26]

A legislação internacional[27] também segue nessa trilha. Ad exemplum, o Código de Processo Penal de Portugal estabelece que, “por meio de exames das pessoas, dos lugares e das coisas, inspeccionam-se os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido.” (art. 171º, 1).

E, expressamente, dispõe que, “se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente” (art. 172º, 1), garantindo-se apenas que “os exames susceptíveis de ofender o pudor das pessoas devem respeitar a dignidade e, na medida do possível, o pudor de quem a eles se submeter.” (art. 172º, 3).

Com efeito, no que diz respeito especificamente à aplicação do nemo tenetur se detegere às provas que dependem da cooperação do investigado/réu para sua produção, “o direito norte-americano entende que não há violação do referido princípio em sua produção, como regra geral.”[28] Igualmente, como anota Odone Sanguiné, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH)

“considera que o direito a não se auto-incriminar concerne principalmente ao respeito à vontade do acusado de permanecer em silêncio. Está admitido, em princípio, pelo ‘nemo tenetur se detegere’, de maneira que fica fora do campo de ação do privilégio contra a autoincriminação a utilização no processo de informações que, embora obtidas pela acusação com o uso de poderes coercitivos, tenham uma existência independente da vontade do suspeito, como os documentos recolhidos por força de um mandado judicial. A coleta forçada de amostras biológicas do imputado, tais como a coleta de sangue, de urina e de tecidos para uma biópsia ou para exame de DNA, de hálito mediante o uso de bafômetro para um motorista suspeito de embriaguez, seriam em princípio legítimas, dado que o material usado na análise forense é obtido com procedimentos minimamente invasivos (pense-se nas coletas de sangue, cabelos ou tecidos corporais) ou por meio de procedimentos não invasivos, mas que exigem a colaboração do imputado (a coleta de urina, de saliva, de padrões vocais para comparação, etc.), desde que os órgãos investigadores se sirvam de métodos respeitosos da dignidade humana e do seu direito à saúde.”[29]

Igualmente, ao comentar previsão normativa do Código de Processo Penal alemão que permite a realização de exames genéticos nos suspeitos para fins criminais, Claus Roxin assevera “que o indivíduo não tem o dever de colaborar com as autoridades encarregadas da investigação mediante um comportamento ativo, contudo deve suportar intervenções corporais que possam contribuir definitivamente ao reconhecimento de sua culpabilidade como, por exemplo, deixar que se extraia sangue para aclarar eventual responsabilidade.”[30]

De mais a mais, aos que fazem uma leitura mais extensa do direito ao silêncio de modo a abarcar o (suposto) direito de não produzir prova contra si, convém observar que – para além das inovações trazidas pela advento da Lei 12.654/2012 – o Novo Código de Processo Civil foi taxativo ao estabelecer, em seu art. 379, que: “preservado o direito de não produzir prova contra si própria, incumbe à parte: I - comparecer em juízo, respondendo ao que lhe for interrogado; II - colaborar com o juízo na realização de inspeção judicial que for considerada necessária; III - praticar o ato que lhe for determinado.”

Assim, com a aplicação supletiva dessa regra ao processo penal (art. 3º, CPP), tem-se por válida a autorização judicial – prevista nos arts. 3º, inc. IV, c.c 5º, parágrafo único, da Lei 12.037/2009 – para a coleta de material biológico para a obtenção do perfil genético, sempre, por óbvio, respeitando-se a integridade física e a dignidade da pessoa.[31]

Diante desse quadro[32] (investigação de um caso concreto + necessidade da medida + autorização judicial para coleta de material biológico + utilização de método adequado e indolor + obséquio ao primado da dignidade da pessoa humana), parece-nos perfeitamente possível e condizente com o vetor da proporcionalidade[33], por exemplo, a retirada de um fio de cabelo[34] do investigado para a realização dos exames periciais, o que, a nosso aviso, no mais das vezes se afigura bem menos invasivo e agressivo do que as conhecidas buscas pessoais (“baculejos”) realizadas pela polícia, sem ordem judicial, com esteio apenas em fundadas suspeitas (art. 240, § 2º, CPP).[35]

Bem a propósito, Carlos Henrique Borlido Haddad anota que a admissão do exame de DNA compulsório no processo penal brasileiro não representa nenhuma inovação acerca das restrições a bens jurídicos que já suporta o acusado. E rememora que

“a pena privativa de liberdade, a prisão provisória de finalidade instrutória indireta, o monitoramento ininterrupto de diálogos, a sanção capital e a medida de segurança de caráter indeterminado são superlativamente mais lesivos do que a colheita do material orgânico, mormente em relação àquela que não possui o caráter de invasividade. É preciso apenas voltar os olhos para as provas e sanções atualmente existentes no processo penal e lembrar-se da existência de medidas de caráter restritivo para superar a cultura de intangibilidade absoluta do acusado.”[36]

Aliás, apenas para argumentar, convém dizer o Superior Tribunal de Justiça considerou válida a submissão de suspeitos por tráfico internacional de drogas – que haviam ingerido entorpecentes – a exames de raios-x, afastando, por conseguinte, a alegação de ofensa ao nemo tenetur se detegere. No caso, a Corte considerou que “a ingestão de cápsulas de cocaína causa risco de morte, motivo pelo qual a constatação do transporte da droga no organismo humano, com o posterior procedimento apto a expeli-la, traduz em verdadeira intervenção estatal em favor da integridade física e, mais ainda, da vida, bens jurídicos estes largamente tutelados pelo ordenamento.”[37]

Demais disso, a identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso (art. 7º-B, LIC) e, por força do princípio da especialidade da prova, somente poderá ser utilizada no caso coberto pela decisão judicial que autorizou a coleta do material, havendo, por assim dizer, uma vinculação causal. Tanto “há essa vinculação causal que o legislador define como limite de disponibilidade do material genético a prescrição do crime [art. 7º-A, LIC]. Ou seja, o uso está relacionado a este crime e a disponibilidade temporalmente regulada pela prescrição (ou a absolvição definitiva [...]).”[38]

De igual modo, parece-nos constitucional a identificação pelo perfil genético mediante a extração de DNA para formação de cadastro geral com vistas a viabilizar a apuração de fatos futuros, incidente apenas sobre os condenados por crimes praticados, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos delitos previstos no art. 1º da Lei dos Crimes Hediondos (art. 9º-A da LEP).

Ora, o banco nacional de perfis genéticos atende ao princípio da proporcionalidade, na medida em que somente os condenados por crimes gravíssimos é que serão submetidos à coleta; não há falar em violação da presunção de inocência se as pessoas sujeitas à extração do material já foram condenadas criminalmente;[39] o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético somente ocorrerá mediante requerimento e decisão judicial devidamente fundamentada (art. 93, inc. IX, CR/88); a inserção do material genético no banco nacional permitirá o desvendar de inúmeros crimes cuja autoria não se tem notícia, viabilizando tanto a condenação de culpados como a absolvição de inocentes, o que vai ao encontro da pretensão constitucional fundamental de expurgar do nosso sistema o erro judiciário (“o Estado indenizará o condenado por erro judiciário [...]” - art. 5º, LXXV).

Ademais, com o intuito de resguardar os direitos fundamentais à intimidade e à privacidade, não só os dados obtidos terão caráter sigiloso, sujeitando aquele que os utilizar para fins inadequados à responsabilização civil, penal e administrativa (art. 5º-A, § 2º, Lei 12.037/2009), como também as informações genéticas armazenadas não poderão revelar traços somáticos ou comportamentais da pessoa, exceto determinação genética de gênero, em respeito à dignidade da pessoa humana e às normas constitucionais e tratados internacionais sobre direitos humanos (art. 5º, §1º, Lei 12.037/2009).

De mais a mais, em excelente artigo sobre o tema, Márcio Adriano Anselmo e Guillherme Silveira Jacques demonstram que os bancos de perfis genéticos são uma realidade no mundo e lembram, por exemplo, “que os Estados Unidos possuem um banco de dados com 10 milhões de perfis genéticos de indivíduos condenados e, em 26 dos 50 estados, além de coletarem amostras de condenados, também coletam amostras de DNA de detidos/suspeitos.” E prosseguem destacando que “esse banco de dados (CODIS) já auxiliou 169.000 investigações, conforme se pode observar na própria informação disponível no site do FBI [...].”[40]

Mesmo que o condenado por algum dos crimes mencionados no art. 9º-A da Lei de Execução Penal tenha cometido o delito antes da vigência da Lei 12.654/2012, a coleta do perfil genético poderá ser realizada sem que se avente qualquer ofensa ao princípio da irretroatividade da lei penal (art. 5º, inc. XL, CR/88). Isso porque, com a extração do DNA, não se está a criar nova espécie delitiva nem tampouco a recrudescer a sanção imposta ao preso em razão da prática da infração penal pela qual se viu condenado. Ao contrário, a coleta do perfil genético configura procedimento de cunho administrativo, verdadeira modalidade de identificação criminal.

O processo penal hodierno não pode mais operar sob a lógica probatória do processo penal ortodoxo. O processo penal estruturado no século passado, tendo por foco a realidade das infrações penais cometidas pelos conhecidos meliantes Caio, Tício, Mévio e Semprônio não responde mais aos anseios da atualidade. Antes, as identificações criminais fotográficas e datiloscópicas eram o ápice da tecnologia. Hoje, estes meios não bastam.

Vivemos a era do direito probatório de terceira geração, com a possibilidade de utilização de provas invasivas, altamente tecnológicas, que permitem alcançar conhecimentos e resultados inatingíveis pelos sentidos e pelas técnicas tradicionais. Interceptações telefônica, ambiental e telemática; quebras de ERB, de sigilo bursátil, fiscal e bancário; scanner corporal; identificação pelo perfil genético, e tantas outras diligências probatórias, não podem mais ser relegadas em detrimento da “hipérbole” do direito ao silêncio.

Sobre os autores
Vinícius Marçal

Promotor de Justiça-GO. Professor do G7 Jurídico e do VipJus. Ex-delegado de Polícia do Distrito Federal. Foi examinador de diversos concursos públicos de ingresso na carreira do Ministério Público. Autor de obras jurídicas.

Cleber Masson

Doutor e Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Foi assessor da Procuradoria-Geral de Justiça e Diretor da Associação Paulista do Ministério Público. Professor de Direito Penal. Promotor de Justiça do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARÇAL, Vinícius; MASSON, Cleber. A identificação compulsória pelo perfil genético e a hipérbole do direito ao silêncio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5089, 7 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58233. Acesso em: 2 nov. 2024.

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