3. PKOs, legitimidade e segurança: simetria de dinâmicas
O fim da guerra fria, que consolidou a predominância das ideias da democracia liberal, gerou, na área da segurança, o alargamento de seu objeto e, concomitantemente, ensejou demandas por novas formas de legitimação das instituições internacionais. Em razão disso, instituições relativas à segurança desapareceram (e.g. Pacto de Varsóvia), surgiram (e.g. Tribunal Penal Internacional, Conselho de Direitos Humanos) e foram reestruturadas (e.g. OTAN), a fim de se adaptarem ao mundo despido de polaridades definidas. Além disso, instituições outrora secundárias – por causa de sua irrelevância dentro do antagonismo bipolar - adquiriram maior importância e, ao mesmo tempo, apresentaram alterações significativas em sua essência e em seu modus operandi.
As operações de paz das Nações Unidas (peace keeping operations, PKOs) são exemplo de instituição que, no decorrer dos anos 1990, adquiriu maior relevância e, por causa disso, passou a ser mais demandada de duas formas distintas: os atores, estatais e não estatais, começam a requerer, com maior freqüência, a criação de PKOs; essas intervenções passaram a ser requeridas em situações cada vez mais perigosas e contrárias à proposta de neutralidade nos conflitos, o que tem acarretado modificação na essência dessas operações. Em decorrência das mudanças na concepção internacional de legitimidade, as operações tornam-se, progressivamente, mais relacionadas à realização de certos objetivos considerados essenciais pela sociedade internacional, como, por exemplo, promoção da democracia e proteção dos direitos humanos. Concomitantemente, a atuação dessas missões torna-se objeto de interesse público e suscita questionamentos variados da sociedade civil e de alguns Estados, os quais cobram a existência de mecanismos mais efetivos de accountability no âmbito das PKOs.
3.1. As Operações de Manutenção de Paz das Nações Unidas (Peace Keeping Operations, PKOs)
As Operações de Paz das Nações Unidas foram concebidas como forma de uso legal e limitado do uso da força no âmbito internacional, com a finalidade de prevenir a deflagração, a disseminação e a intensificação de conflitos armados. Embora tenham sido freqüentes desde a fundação da ONU, as operações não estão expressamente previstas na Carta de São Francisco. Sua legalidade decorre, por conseqüência, de interpretação sistemática do documento constitutivo da ONU, principalmente daquelas regras referentes à amplitude da competência da Assembléia Geral (art. 11, 1, da Carta da ONU)[39] e do Conselho de Segurança (art. 24, 1, da Carta da ONU)[40]. Este, especialmente, constitui órgão fundamental na execução de quaisquer medidas coercitivas, inclusive nos casos de uso moderado da força pelos empreendimentos de promoção e de construção da paz, operações que, na atualidade, são consideradas multidimensionais (ou complexas), uma vez que envolvem, em grande medida, finalidades múltiplas e recursos humanos civis.
Em suas versões iniciais, as PKOs objetivavam apenas atuações pontuais e preventivas. Em termos materiais, por isso, eram caracterizadas pelo porte de armamentos defensivos e por limitados contingentes militares, os quais eram adequados à realização de missões simples, expressamente consentidas e, em alguns casos, apoiadas pelas partes em conflito. A experiência das primeiras operações de paz (e.g. UNTSO, Oriente Médio, 1948; UNEF I, Sinai/Faixa de Gaza, 1956; ONUCA, Congo, 1960; UNYOM, Iêmen, 1963; UNFICYP, Chipre, 1964; UNIPOM, fronteira entre Índia e Paquistão, 1965), ainda durante o interstício de guerra fria, possibilitou a formulação de princípios que deveriam reger as sua ações militares. Esses princípios, segundo Eugênio Diniz[41], podem ser sistematizados da seguinte forma:
a) condução pelos funcionários da ONU: os efetivos militares pertencem aos Estados, mas eles agem em nome das Nações Unidas, ainda que, em caso de infração à norma de conduta militar, sejam julgados pela jurisdição de seus respectivos países;
b) consentimento das partes envolvidas no conflito: a interferência da ONU deve ser legitimada pelas autoridades locais, sob pena de violação do inciso 7 do art. 2.º da Carta[42];
c) imparcialidade em relação às partes em conflito: os contingentes da ONU não atuarão como aliados de nenhuma das partes, ainda que objetivem a minimização das baixas de ambas;
d) uso restrito da força: os militares da ONU só poderão agir em legítima defesa e nos limites do mandato da missão.
Marrack Goulding, que presidiu o Departamento de Operações de Paz da ONU, acrescenta, ao lado dos princípios mencionados acima, a contribuição militar estatal. Como as Nações Unidas não dispõem de exército regular, as forças armadas dos Estados - trajadas, na maior parte das vezes, com partes de indumentária que remetem à organização (capacetes azuis) - devem ser usadas na execução das operações, após a conclusão de acordo entre o Conselho de Segurança e o Estado militarmente engajado.
Como é possível inferir desses princípios, as PKOs tinham atuação limitada, e seu papel, no âmbito da segurança internacional, era secundário. Considerando que a lógica de poder da guerra fria perpassava todas as instituições internacionais (principalmente as diretamente relacionadas à segurança), não havia, em regra, espaço político para o exercício multilateral da força, se destituído dos fundamentos ideológicos predominantes nos blocos antagônicos.
Principalmente após o final da bipolaridade, as características das operações de paz tradicionais foram sendo substancialmente alteradas. Marrack Goulding[43], por exemplo, em classificação elaborada na primeira metade da década de 1990, influenciada pela ascensão desse novo fenômeno, descreve seis modalidades distintas de operações, muitas delas diretamente baseadas nos dispositivos do Cap. VII:
A primeira modalidade consiste no posicionamento preventivo das tropas da ONU antes do início das hostilidades armadas. Esse tipo de ação, que coincide com o conceito de diplomacia preventiva do relatório, objetiva aumentar o custo político da agressão para as partes antagônicas.
O segundo tipo são as tradicionais operações de manutenção de paz, cujo período de maior desenvolvimento foi durante a guerra fria. O objetivo dessas operações clássicas é a criação de condições para a negociação política. Esse tipo de missão pode ser subdividido em três outros: b1) missões de observação, como na região da Kashemira; forças armadas de infantaria, como no Chipre, na Síria, no sul do Líbano e na Croácia; e operações (armadas ou desarmadas) adjuntas às missões de imposição de paz, como estabelecida na fronteira entre Iraque e Irã.
A terceira modalidade é constituída de operações para apoiar a execução de entendimento abrangente, acordado, em momento anterior, pelas partes adversárias. Entre as atividades concernentes a essa espécie de operação, podem ser citadas: o monitoramento de armistícios, a destruição de armas, o treinamento de novas forças armadas e de contingente policial, a supervisão do funcionamento da administração pública, a verificação do respeito aos direitos humanos. Goulding admite que o cumprimento desse tipo de missão é, muitas vezes, incompatível com a observância do princípio da imparcialidade.
A quarta modalidade é composta de missões de proteção ao fornecimento de ajuda humanitária durante o conflito armado, da forma como foi intentada na Somália e na Bósnia e Herzegovina. Nas duas situações, as forças da ONU enfrentaram a resistência de grupos armados que atuavam além do controle dos governos locais, aspecto que dificultou a consecução dos mandatos.
O quinto tipo, na verdade, não é exatamente missão de manutenção da paz, uma vez que envolve medidas impositivas de força. Esse tipo de operação ocorre em países nos quais as instituições públicas foram largamente desestruturadas, resultando em elevado grau de anarquia e de anomia. As missões do Congo e da Somália apresentaram essas características.
A sexta modalidade, novamente, não pode ser classificada como missão de manutenção de paz, pois é constituída de elevado grau de emprego da força. Essas operações, chamadas de imposição de cessar-fogo. São diferentes do terceiro tipo, uma vez que implicam a possibilidade do uso da força mesmo na ausência de acordo formal entre as partes.
Essa classificação de Goulding consiste na tentativa de compreender, com maior precisão, o fenômeno das PKOs, que se alterou profundamente ao longo do tempo. Ela, entretanto, não é suficiente para compreender as conexões contemporâneas entre as operações de paz e as novas demandas da segurança contemporânea.
3.2. Novo papel das PKOs na segurança internacional
A complexidade dos cenários de conflito, a observância dos preceitos da Carta de São Francisco (e.g. promoção dos direitos humanos, art. 1.º da Carta[44]) e os insucessos de algumas operações foram determinantes para que esses princípios fossem reinterpretados. Em determinadas situações, a imparcialidade na zona de combate, por exemplo, poderia significar a conivência em relação a atos violadores de direitos humanos, o que contrariaria preceito basilar da organização. O consentimento das partes, por sua vez, não poderia ser requisito absoluto para ação, uma vez que, em certas situações, a segurança da população civil e o fornecimento de ajuda humanitária mínima não são autorizados pelas lideranças combatentes. Os princípios das operações, por conseqüência, tiveram de ser readaptados às situações mais complexas e violentas, a fim de que a busca por resultados concretos não colocasse em risco os componentes da operação e as populações afetadas pelo conflito.
Essa readaptação dos princípios regentes das PKOs deve, entretanto, ser compreendida no contexto de grandes mudanças internacionais, as quais acarretaram a redefinição do conceito de segurança e da concepção de legitimidade. Como o objeto da segurança foi ampliado, tornou-se juridicamente viável a adoção de medidas de força com a finalidade de proteger valores e instituições diferentes do Estado. As PKOs, por isso, passam a ser direcionadas à consecução de situações e de valores compatíveis com a nova concepção de legitimidade, mesmo que, para isso, afaste-se ideia de diplomacia preventiva, expressa no Cap. VI da Carta da ONU. Se considerada a classificação de Goulding, nota-se a progressiva tendência de aproximação de uma das partes em conflito, geralmente daquela qualificada como legitima, conforme os padrões internacionalmente vigentes. Ao lado disso, a admissão de operações de imposição de paz implica o aumento da letalidade das forças militares, bem como o claro uso do Cap. VII da Carta da ONU, o que pressupõe autorização do Conselho de Segurança. As PKOs, dessa forma, ao apresentarem características de verdadeira intervenção militar, tornam-se instrumentos de grande relevância na governança da segurança internacional.
Corroborando esse raciocínio, pode-se afirmar que as missões decorrentes de Resoluções do Conselho de Segurança que, expressamente, citam o capítulo VII, como, por exemplo, UNMIBH (Resolução 1088/1996 do CS, Bósnia Herzegovina)[45], UNMIS (Resolução 1590/2005, Sudão)[46], MINUSTAH (Resolução, 1608/2005, Haiti)[47], estão em desconformidade com os princípios tradicionais das operações de paz e com as disposições do Cap. VI, em especial com o princípio da neutralidade, pois assume-se, nesses casos, que uma das partes do conflito, geralmente aquela em sintonia com os pressupostos de legitimidade internacional pós-guerra fria, está correta e, por isso, deve ser favorecida.
Além disso, deve-se notar que, se atuarem com fulcro no Capítulo VII, as forças da ONU são autorizadas a usar os meios necessários para cumprimento do mandato, inclusive o uso quase irrestrito de força militar, o que torna difícil diferenciar a PKO do simples uso de força autorizado pelo CS como ocorreu na Guerra do Golfo. Essas novas modalidades de PKOs, ressalvadas suas especificidades, são, em seus aspectos formais (autorização legal por órgão competente) e materiais (grande letalidade, tipo de armamento, estratégia de combate), instrumentos de intervenção humanitária.
A nova percepção da legitimidade e a redefinição do conceito de segurança, além disso, afetam as PKOs de duas formas distintas: por um lado, requer-se, por meio da conversão concomitante das PKOs em polícia e exército da sociedade internacional, a progressiva extensão desse tipo de operação coletiva a situações de conflitos militares mais graves (e.g. guerras generalizadas) e a casos de violações domésticas aos direitos humanos (intervenções humanitárias), por outro, exigem-se amplos mecanismos de transparência e de controle das missões. A primeira consequência pode ser inferida da ideia cada vez mais disseminada de responsabilidade de proteger (responsibility to protect, R2P)[48], que consiste no dever dos Estados e da sociedade internacional em salvaguardar os indivíduos contra graves contra quatro tipos penais: genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade.
Essa tipologia coincide, quase integralmente, com as previsões do Estatuo de Roma, documento de instituiu o Tribunal Penal Internacional, sediado em Haia. A segunda consequência pode ser exemplificada pela proposta brasileira de responsabilidade ao proteger (responsibility while protect, RWP)[49], que, na qualidade de desdobramento da R2P, exige a criação de parâmetros claros para todos os tipos de intervenções militares, bem como mecanismos de accountability específicos para essas operações.
As ideias de responsabilidade de proteger e de responsabilidade ao proteger concernem diretamente ao tipo de PKO constituído no período que se seguiu ao fim da guerra fria. Ambas não podem ser compreendidas sem o entendimento da dinâmica das relações internacionais que resultou na mudança na concepção de legitimidade internacional, desvinculada dos preceitos realistas, e no alargamento da perspectiva de segurança em direção à proteção do ser humano.