1-O Artigo 73 do CP e a Aberratio Ictus
O artigo 73 do Código Penal trata do erro na execução, versando sobre fato que na fórmula latina tomou a referência de "aberratio ictus".
O citado dispositivo se refere a hipóteses quando por acidente ou erro na execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa. Inicialmente, é de consignar que o dispositivo, ao referir-se a acidente ou erro na execução está, na verdade referindo-se a um fato que resultará não de dolo direito ou eventual, mas a rigor de culpa. O vocábulo acidente está relacionado à situação não desejada, assim como a figura do erro. Estaremos, portanto, tratando de resultados preterdolosos, significa, decorrentes de culpa, mas resultantes de uma ação dolosa.
Também é pertinente a correta individualização do erro na execução frente a institutos assemelhados, como sejam, o error in personam e a aberratio criminis.
O error in personam liga-se à incorreta representação subjetiva em relação à vítima. O agente pretende atingir a B, mas engana-se quanto a sua identidade, a acaba atingindo a C. O caso nada tem com o erro na execução, que também pode estar presente, concomitantemente. Já na aberratio ictus, "não se cuida de ausência de representação do fato no espírito do agente, nem de representação destoante da realidade" [1]. Neste caso, o agente pretende atingir a B, sabe exatamente quem, é e inicia a execução do delito contra este, mas por acidente ou erro na execução, não desejados, e portanto preterdolosos, vem a atingir a C.
A aberratio criminis muito se assemelha a aberratio ictus. O fator diferencial é que na aberratio criminis, ocorre resultado diverso, ou seja, crime diverso. Há, portanto, ofensa a bem jurídico diverso.
O erro na execução pode ter unidade simples ou complexa. A primeira ocorre quando somente o terceiro é atingido. A segunda ocorre quando, além do terceiro, também a vítima efetivamente pretendida é atingida.
Mas a questão nodal da presente abordagem resulta da remissão feita pelo artigo 73 ao artigo 70, ambos do Código Penal, o qual (este último) traz a fórmula do concurso formal. A problemática está relacionada especialmente à tentativa de homicídio quando ambas as vítimas são atingidas.
Haverá concurso formal de duas tentativas, de uma tentativa com lesão, ou absorção de um dos fatos?
Passemos à análise das hipóteses.
2- As hipóteses
Antes de tratarmos das hipóteses possíveis no que tange à aberratio ictus com unidade complexa e tentativa, mister ressaltar que quando ocorre dolo eventual a questão deixa de existir.
Com efeito, se há dolo eventual em relação ao terceiro, então aplica-se a regra do concurso formal impróprio, que na prática implica dizer que haverá dois delitos dolosos.
Feita esta ressalva, temos que o Código Penal refere-se à aplicação da regra do concurso formal, em caso de unidade complexa, e a doutrina, ao tratar da matéria não esclarece quais os delitos do concurso em caso de tentativa.
No caso do homicídio, por exemplo, se duas pessoas são atingidas, resultando uma ferida e outra morta, tem se afirmado que há punição pelo crime consumado acrescido pelo aumento decorrente do concurso. Mas pergunta-se: para os fins de denúncia, será denunciada uma tentativa de homicídio e um homicídio consumado, ou uma lesão e um homicídio consumado? E se for um dos delitos lesão, deverá ser sempre leve ou poderá ser grave ou gravíssima?
Os questionamentos são pertinentes, pois a lesão do terceiro não era desejada, mas tem na sua cadeia causal um comportamento motivado por animus necandi, ou seja, o dolo da conduta é de matar, mas o resultado em relação ao terceiro é culposo. Considerar um crime consumado e uma tentativa de homicídio seria injusto, pois estaria parificando a atuação daquele que pretende efetivamente matar duas pessoas e acaba por ferir uma e matar a outra, com a daquele que agiu pelo ânimo de matar uma pessoa, mas por acidente ou erro na execução vem a ferir também outra.
Por outro lado, se fôssemos denunciar uma lesão e um homicídio não poderíamos nos furtar a constatação de que a lesão em verdade é culposa, e não há lesão culposa grave ou gravíssima. Logo, qualquer que fosse a gravidade efetiva da lesão, teria de ser considerada leve. A única forma de considerar a lesão grave seria alvitrar-se a presença de dolo eventual, mas neste caso, como já referido, teríamos dois delitos dolosos.
A mesma ponderação vale para o caso de duas pessoas restaram lesionadas em uma tentativa de homicídio. A segunda lesão é culposa, não podendo ser considerada uma tentativa de homicídio em relação à pessoa efetivamente atingida. Por outro lado, não se pode considerar a presença de uma lesão leve, se na realidade não é, e de uma tentativa.
3- Soluções
A fim de evitar toda a problemática de qualificação do fato em relação ao terceiro, propõem-se algumas soluções.
No caso de ser visado A e atingido B, o qual morre, devendo ser punido delito consumado a denúncia teria o seguinte teor.
"No dia..., por volta das... h, na rua...., em...., fulano de tal, mediante disparos de arma de fogo (apreendida, e descrita, ou não apreendida), matou a B, causando-lhe as lesões descritas no auto de exame de necropsia da fl.... que refere.....
Na ocasião, o denunciado efetuou disparos visando atingir a A, que é seu cônjuge (conforme certidão da fl... do IP), os quais por erro na execução vieram a atingir a C, causando-lhe as lesões acima descritas, que lhe ocasionaram a morte."
A quesitação, como propõe Saulo Brum Leal [2], seria:
"1º quesito: No dia..., por volta das... h, na rua...., em...., fulano de tal, efetuou disparos de arma de fogo (apreendida, e descrita, ou não apreendida), contra A, os quais, por erro na execução, vieram a atingir a B, causando-lhe as lesões descritas no auto de exame de necropsia da fl...?
2º quesito- Estas lesões ocasionaram a morte da vítima?"
No caso de ambos serem atingidos ambos, morrendo B, a denúncia seria, por exemplo:
"1º Fato- No dia.... de... de..., por volta das...h, na rua... em..., fulano de tal, mediante disparos de arma de fogo (apreendida ou não apreendida, e no primeiro caso descrita), tentou matar A, causando-lhe as lesões descritas no auto de exame de corpo de delito da fl..
Na ocasião, após um desentendimento, o denunciado sacou da arma cima referida e efetuou disparos contra a vítima, somente não consumando seu desiderato homicida por circunstâncias alheias a sua vontade, qual seja, o rápido socorro médico.
2º Fato- Nas mesmas circunstâncias de tempo e local acima referidas, fulano de tal mediante disparos de arma de fogo, matou B, causando-lhe as lesões descritas no auto de exame de necropsia da fl.
Na ocasião, o denunciado efetuou disparos com a arma supra referida visando atingir A, alguns dos quais, por erro na execução, vieram a atingir a vítima, a qual em decorrência das lesões cima descritas, veio a falecer"
Na quesitação vêm primeiro os quesitos da tentativa, inclusive os da defesa, e posteriormente os do homicídio consumado, sendo os seguintes exemplos relacionados a B:
"1ºquesito- No dia.... de... de..., por volta das...h, na rua... em..., fulano de tal, efetuou disparos de arma de fogo contra A, alguns dos quais, por erro na execução vieram a atingir a B, causando-lhe as lesões descritas no auto de necropsia da fl....?
2º quesito: Estas lesões ocasionaram a morte da vítima? "
É preciso que sejam quesitadas tanto a tentativa como a morte, para que possa ser confirmado o duplo resultado, e, portanto, se viabilize a aplicação da regra do concurso.
No caso de vir a ser atingidos A e B, morrendo A, o efetivamente pretendido, aplica-se a mesma regra, porém com inversão no que se refere à denúncia.
E no caso de serem atingidos ambos sem morte? Denuncia-se, nos moldes acima já referidos, uma tentativa e uma lesão, seguindo-se a quesitação também da mesma forma, somente não havendo o quesito da letalidade no que se refere à lesão.
Mas e se a lesão for grave, deve ser? No caso de ser ferido A, vítima visada, e B, vindo este a morrer não resta dúvida de que a lesão em A foi dolosa, e, portanto pode ser qualificada como grave ou gravíssima.
O problema existe quando A e B são atingidos, sem morte, pois em tese, poderia acontecer de a lesão em B, que é, na realidade, preterdolosa, ter pena mais grave do que a tentativa de homicídio em A.
De fato, operada uma redução de metade em virtude da tentativa em uma pena que já fora fixada no mínimo legal, pode resultar na hipótese do homicídio em pena de 03 anos. Já a lesão gravíssima pode ter, no caso concreto, sua pena fixada em 04 anos, por exemplo. Claro que isto é muito difícil, pois as circunstâncias judiciais serão, em regra, semelhantes para ambos os casos, mas não é impossível. Basta pensar-se, por exemplo, em delito que deixa graves seqüelas em relação a B.
Diante da possibilidade de que a lesão, que é preterdolosa, tenha pena mais elevada que a tentativa de homicídio, deve ser feita sua qualificação como grave ou gravíssima, pois consoante a regra do artigo 70 do CP, deverá ser aplicada a pena mais grave aumentada pelo concurso.
Mas neste caso, enfrentamos toda a série de problemas já referidos. Se a lesão é culposa não pode ser qualificada como grave ou gravíssima. Por outro lado, considerá-la dolosa significará produzir um fictício dolo de lesão contra o terceiro.
A situação muito se assemelha à denominada culpa imprópria, que ocorre no excesso culposo na legítima defesa, onde um ato doloso é punido a título de culpa.
De fato, em ambas hipóteses temos ações dolosas das quais se originam comportamentos culposos.
Como a aplicação do artigo 70 do CP se dá sem reservas e sem maiores especificações, por certo que deveremos aferir todas as circunstâncias também da lesão preterdolosa, que poderá, inclusive, como já visto, em tese, ter pena maior do que o delito cometido contra a vítima desejada, sendo a pena que servirá de base para aplicação do aumento referente ao concurso.
Então, no caso de uma tentativa de homicídio em A, que o atinge, e que também vem a lesionar B, a denúncia deverá articular a tentativa, e quanto à lesão em B, a descreverá seja ela leve, grave ou gravíssima. Ad exemplum:
"2º fato- No dia..., por volta das... h, na localidade de...., em.... /RS, fulano de tal, mediante golpes de faca (apreendida ou não), ofendeu a integridade física de B, causando-lhe as lesões descritas no auto de exame de corpo de delito da fl....,cuja conseqüência foi a perda de um membro, no caso (descrever).
Na ocasião, o denunciado desferia golpes em A, momento em que, por erro na execução, veio a atingir a vítima B, causando-lhe as lesões acima descritas."
Mas não podemos considerar uma dupla tentativa de homicídio, a não ser que exista dolo eventual, pois não podemos punir o agente por um dolo de morte inexistente em relação ao terceiro. Por outro lado, à semelhança do que ocorre com a culpa imprópria, não podemos considerar a lesão no terceiro como um delito culposo "puro", porque a sua base está uma ação dolosa. Ademais, isto teria a implicação de termos sempre uma lesão leve. Na maior parte dos casos isto não teria influência alguma, pois a pena da tentativa de homicídio é maior, e serviria de base para a exasperação do concurso. Porém, como já referimos, pode haver um caso onde a lesão é mais grave do que o delito tentado contra a vida.
Esta fórmula fica no meio termo entre a lesão culposa e a tentativa de homicídio.
Temos, assim, uma lesão preterdolosa que é descrita como dolosa. Em uma questitação, ficaria:
"No dia.... de... de.... na localidade de..., em.../RS fulano de tal desferiu golpes de faca em A, que causaram-lhe as lesões descritas no auto de exame de corpo de delito da fl..?
- Assim procedendo, o réu fulano deu início ao ato de matar A, qual somente não se consumou por circunstâncias alheias a sua vontade, qual seja a intervenção de terceiros, que socorreram a vítima?
-No dia.... de... de.... na localidade de..., em.../RS fulano de tal desferiu golpes de faca em A, quando por erro na execução, veio a atingir a B, causando-lhe as lesões descritas no laudo de exame de corpo de delito da fl.... ?
-Estas lesões implicaram a perda de membro, qual seja (descrever qual)?"
Note-se que a existência de uma tentativa em relação a A já foi quesitada, e é prescindível, e até pouco recomendável, a renovação do quesito quando tratamos do fato preterdoloso. Nos basta aferirmos quando quesitamos o fato relativo a B somente à existência da lesão e sua qualificação, pois a esta altura, a tentativa em relação a A já é fato julgado.
Resta, ainda, uma última hipótese que é aquela na qual A é atingido e B tem sua vida ou saúde posta em perigo. Mas aqui, teríamos uma situação na qual B não foi efetivamente atingido, o que exige o artigo 73 do CP. Seria, portanto, uma situação de aplicação direta do artigo 70 do Código Penal, devendo ser descrito o delito de perigo após o homicídio consumado ou tentado, mencionando-se na capitulação o artigo 70, e não o 73, do Código Penal.
4-Conclusão
A aberratio ictus deveria ter recebido um tratamento mais específico de nosso legislador. O dispositivo do artigo 73 do Código Penal deveria ter determinado por qual delito também seria denunciado o agente quando atingisse o terceiro. Deveria ter dito como seria considerado o delito em relação a ele. No exemplo de duas pessoas serem atingidas em uma tentativa de homicídio, se o Código esclarecesse como seria considerado o delito, não teríamos os problemas acima referidos. Simplificando, deveria o artigo 73 do CP, afirmar: aplica-se a regra do artigo 70, considerando-se o delito em relação ao terceiro como doloso (ou culposo).
Tal medida seria de bom alvitre porque o artigo 70 refere-se ao concurso formal que ocorre no mais das vezes como dois delitos dolosos. Mas no caso da aberratio ictus, o que há é um delito preterdoloso. A dificuldade surge na prática, porque este delito preterdoloso será considerado para o fim de aplicação da regra do concurso formal. Se no mais das vezes não há dificuldade alguma, pode ocorrer de a pena do delito em relação ao terceiro ter importância, e neste caso, a qualificação deste delito como doloso ou culposo, ou a sua qualificação ou não devem ser consideradas, e ficamos perplexos diante de uma lacuna.
A solução, portanto, reside em denunciar-se o delito contra a vítima efetiva como se doloso fosse, inclusive mencionando-se suas qualificadoras, acrescendo-se no segundo parágrafo uma referência ao erro na execução.
Tal fato deverá ser submetido à quesitação,em caso de Júri, normalmente, sendo, porém, despicienda a menção do delito tentado em relação à vítima visado quando da quesitação do delito cometido em relação ao terceiro.
Notas
1 Alberto Silva Franco et alii, Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, RT, 7ª edição, 2001, v. I, p. 1367.
2 Júri Popular, Livraria do advogado, 4ª edição, 2001. p. 260 e seguintes.