INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa analisar o instituto do erro no Direito Penal. Tema de bastante complexidade e que causa muita confusão, o equívoco criminal possui diversas espécies, as quais se distinguem, muitas vezes, apenas por pequenas peculiaridades.
O primeiro capítulo desta obra destina-se à explanação de um breve histórico sobre o surgimento do estudo do equívoco penal. Tudo isso para contextualizar a análise do erro na sociedade atual. Nesta primeira parte, será ainda demonstrada a diferença entre erro e ignorância.
No segundo capítulo, será tratado a respeito das Teorias que se formaram ao longo do tempo, em razão da tentativa de se entender e de uniformizar as análises e as consequências do erro. Iniciando-se pelas Teorias do Dolo, trataremos, antes de tudo, da Teoria Extremada do Dolo. Após, será vista a Teoria Limitada do Dolo. Em seguida, passaremos a nos debruçar sobre as Teorias da Culpabilidade, com enfoque nas principais: Teoria Extremada da Culpabilidade e Teoria Limitada da Culpabilidade. Por fim, nesta parte do trabalho, será ainda observada a Teoria dos Elementos Negativos do Tipo, a qual tem relevância no contexto das causas de justificação, porque entende que, quando presente alguma delas, resta existente também um elemento negativo do delito.
No Capítulo 3, será estudado o erro de tipo e as suas espécies. O erro de tipo é o que incide sobre as elementares circunstanciais ou sobre qualquer dado agregado ao tipo. A partir daqui, veremos a subdivisão entre erro de tipo essencial e acidental. O primeiro liga-se aos elementos principais do tipo e divide-se em evitável e inevitável, causa que identifica as consequências para o agente (na primeira hipótese, há exclusão do dolo e punição a título culposo, caso haja previsão em lei, e, na segunda, do dolo e da culpa). O segundo (acidental) liga-se aos dados secundários do tipo e divide-se em erro sobre o objeto, erro sobre a pessoa, erro na execução ou aberratio ictus (por acidente ou por erro no uso dos instrumentos da execução), resultado diverso do pretendido e erro sobre o nexo causal (em sentido estrito ou dolo geral). Ainda neste Capítulo, será visto o erro sobre as qualificadoras.
No Capítulo 4, analisaremos o equívoco determinado por terceiro. Após, veremos esta modalidade de erro em confronto com o concurso de pessoas.
No Capítulo 5, trataremos de erro de tipo em comparação ao delito putativo por erro de tipo e crime impossível. Aqui, será explicado em que consiste o termo “putativo” e as consequências jurídicas para o agente que incide em cada um dos três institutos, os quais configuram situações bem distintas.
A seguir, no Capítulo 6, estudaremos as descriminantes putativas. É sabido que descriminante é uma causa que exclui o delito, cancelando, desta forma, o caráter ilícito do fato típico perpetuado por um sujeito. Neste contexto, as causas legais autorizadoras deste resultado são: legítima defesa, estado de necessidade, exercício regular do direito e estrito cumprimento do dever legal. Porém, esta parte do trabalho visa explicar o caso em que o agente, incorrendo em erro sobre a existência fática ou jurídica ou sobre os limites de uma causa de exclusão da ilicitude, acredita estar amparado por uma dessas causas, quando não está realmente.
Posteriormente, no Capítulo 7, observaremos o erro de proibição, com suas diversas espécies. Neste ponto, será visto o erro de proibição com enfoque nas suas modalidades principais: erro de proibição direto, quando o agente se equivoca a respeito de uma norma proibitiva; e o erro de proibição indireto, quando o indivíduo supõe presente uma norma permissiva (excludente de ilicitude). Ademais, seguiremos analisando o erro de proibição mandamental ou injuntivo, que é aquele incidente sobre os crimes omissivos próprios ou impróprios, quando o equívoco recai sobre uma norma mandamental. Ainda, será visto o erro de proibição de validade e o hermenêutico ou de interpretação da norma ou de subsunção. Após isto, será estudada a diferença entre erro de proibição e delito putativo por erro de proibição.
No Capítulo 8, faremos uma breve exposição do erro de tipo permissivo, o qual será analisado mais profundamente no Capítulo seguinte, quando em comparação com outros institutos.
Portanto, no Capítulo 9, distinguiremos o erro de tipo permissivo e o erro de proibição indireto, além do erro de tipo essencial e o erro de proibição direto.
Ao final, no Capítulo 10, exemplificaremos as hipóteses estudadas através de casos reais retirados da jurisprudência e da imprensa.
Neste contexto, este trabalho procura se aprofundar no estudo do erro no Direito Penal, com enfoque no equívoco que recai sobre as causas de antijuridicidade. Por isso que, à primeira vista, a ideia desta obra é dar mais amplitude para o estudo do erro de tipo permissivo e do erro de proibição indireto. No entanto, o tema do equívoco penal é todo interligado, não permitindo que se faça uma análise isolada. Assim, é necessário analisar outros institutos conexos, para que haja uma melhor compreensão do assunto, sem que ocorra confusão, já que o tema, por si só, é bastante carregado de complexidades.
O estudo do erro justifica-se no fato de que não há como impor consequências jurídico-penais aos agentes que praticam o mesmo fato, quando um estava encoberto pelo equívoco e o outro tinha plena noção da conduta que estava sendo perpetrada. A fim de se impedir a responsabilidade objetiva, necessário se faz a análise particularizada do caso concreto, avaliando o elemento subjetivo que impeliu o sujeito ativo à prática do ilícito.
Diante disso, a análise do equívoco criminal, apesar de ser cheia de peculiaridades, complexa e trabalhosa, é imprescindível, porque aquele que comete uma conduta delituosa motivado pelo engano possui aspectos subjetivos que necessariamente devem ser apreciados pelo julgador. Não bastasse isso, também devem ser considerados, além dos aspectos subjetivos (internos do agente delituoso), os fatores externos ou fáticos que o influenciaram na perpetração da infração.
1. BREVE HISTÓRICO DO ERRO NO DIREITO PENAL
Para fins de situar o presente estudo no contexto social em que estamos inseridos, é mister analisar o histórico dos institutos a serem abordados.
O estudo do erro é um dos assuntos mais complexos do Direito Penal. Todos os elementos que compõem a estrutura do crime estão relacionados ao erro. Na antiguidade, os romanos foram os primeiros a investigar e a tentar compreender o erro.
A primeira tentativa de classificação do equívoco penal esteve atrelada à distinção entre o que seria “erro de fato” e “erro de direito”.
Atualmente, o erro é conceituado como vício da vontade, aquele que causa uma falsa percepção da realidade e tanto pode incidir sobre os elementos estruturais do delito (erro de tipo), quanto sobre a ilicitude (erro de proibição).
Não pode ser confundido com a ignorância, porque “erro é a falsa ideia ou o falso sentido que se tem de alguma coisa. A ignorância é a falta de conhecimento, pelo que é, então, mais ampla que o erro, pois revela a falta total de ideia.”1.
Cezar Roberto Bitencourt recomenda, para uma melhor compreensão do estudo do erro, no Direito Penal contemporâneo, que se deixe para trás as antigas concepções romanas a respeito de erro de fato e erro de direito, porquanto não guardam necessariamente identidade com as espécies de equívocos penais que temos atualmente2.
A antiga classificação de erro de fato e erro de direito baseava-se na situação fática. O que temos hoje é um sistema reestruturado com base no equívoco sobre a tipicidade ou a ilicitude.
Não se pode confundir o desconhecimento da ilicitude de um comportamento com o desconhecimento de uma norma legal. A ilicitude de um fato está na relação de contrariedade que se forma entre o fato e o ordenamento jurídico3.
Importante destacar a explicação de Alcides Munhoz Netto, para quem “a ignorância da lei é o desconhecimento dos dispositivos legislados, ao passo que a ignorância da antijuridicidade é o desconhecimento de que a ação é contrária ao Direito. Por ignorar a lei, pode o autor desconhecer a classificação jurídica, a quantidade da pena, ou as condições de sua aplicabilidade, possuindo, contudo, representação da ilicitude do comportamento. Por ignorar a antijuridicidade, falta-lhe tal representação. As situações são, destarte, distintas, como distinto é o conhecimento da lei e o conhecimento do injusto”4.
O erro de proibição refere-se à efetiva inexistência, no sujeito ativo, no momento da ação delituosa, da consciência da ilicitude de sua conduta.
No entanto, nem sempre o dever jurídico coincide com a lei moral ou é intuitivo para todas as pessoas.
Por exemplo, nem todos sabem que, ao encontrar tesouro em terras alheias, devem destinar metade do achado ao dono do imóvel (art. 169. do Código Penal).
Conforme pondera Cesare Beccaria:
Enquanto o texto das leis não for um livro familiar, como um catecismo, enquanto elas forem redigidas em língua morta e não conhecida do povo, e enquanto forem, de maneira solene, mantidas como oráculos misteriosos, o cidadão que não puder aquilatar por si próprio as consequências que devem ter os atos que pratica sobre a sua liberdade e sobre seus bens estará dependendo de um pequeno número de homens que são depositários e intérpretes das leis. Ponde o texto sagrado das leis nas mãos do povo e, quantos mais homens o lerem, menos delitos haverá5
Este problema levou Welzel a reestruturar o conceito de consciência da ilicitude, introduzindo-lhe um novo elemento: o dever de informar-se.
Neste contexto, a culpabilidade passou a exigir a potencial consciência da ilicitude, sendo necessário questionar se houve negligência ou falta do dever concreto de o agente procurar informar-se sobre a ilicitude da conduta perpetrada.
Outra vem a ser a culpabilidade, a partir da concepção do homem como um ser responsável (autodeterminação conforme a um sentido). Com o finalismo se opera um giro copernicano na sistemática jurídica do delito: o atuar humano é uma atividade ordenada finalisticamente, o que exige o exame de seu conteúdo subjetivo (vontade), não se tratando de simples processo de natureza casual, objetivo e “cego”; a tipicidade inclui elementos objetivos (tipo objetivo) e elementos subjetivos (tipo subjetivo); a ilicitude tem conteúdo objetivo e subjetivo, sendo o injusto pessoal (desvalor da ação e desvalor do resultado); e a culpabilidade entendida como normativa pura (imputabilidade, exigibilidade de conduta diversa e potencial consciência da ilicitude).6
Nesta etapa, a introdução do dolo no elemento subjetivo do tipo facilitou muito a compreensão do crime e, graças à Teoria Finalista, ficou clara a diferença entre “erro de tipo” e “erro de proibição”, os quais serão estudados mais profundamente em tópicos específicos deste trabalho.
2. TEORIAS QUE SE DESENVOLVERAM NA TENTATIVA DE EXPLICAR O ERRO
Para que haja uma melhor compreensão do erro no Direito Penal, assunto de grande complexidade na disciplina, imprescindível se faz o estudo das teorias que se desenvolveram na tentativa de explicar o instituto.
2.1. Teoria Extremada do Dolo
É a mais antiga das teorias. Aqui, o dolo está inserido na culpabilidade e a consciência da ilicitude (que precisa ser atual) no próprio dolo.
Para esta corrente, há o dolo normativo, que compõe-se de vontade, previsão e conhecimento da realização de uma conduta proibida.
Defende que o erro, exclui sempre o dolo, quando inevitável (por anular o elemento normativo, que é a consciência da ilicitude, ou por anular o elemento intelectual do dolo, que é a previsão) não importando se o caso enquadra-se em erro de tipo ou de proibição. Não distingue as hipóteses e este é o problema desta teoria.
2.2. Teoria Limitada do Dolo
Na busca de preencher as lacunas deixadas pela teoria anterior, esta afirmou que o “conhecimento atual da ilicitude” equivaleria à “cegueira jurídica” ou à “inimizade ao Direito”.
Para Mezger, haveria situações em que o infrator (em geral, um delinquente habitual) demonstraria tamanho desprezo ou indiferença com os valores apresentados pelo ordenamento jurídico, que, mesmo não sendo possível provar que conhecia a ilicitude de sua conduta, deveria ser castigado por crime doloso.
Aqui, Mezger substituiu o “conhecimento atual da ilicitude” pelo “conhecimento presumido” e deu origem ao combatido Direito Penal do Autor.
Seria, portanto, presumido o dolo quando a ignorância da ilicitude decorresse de “cegueira jurídica” ou “animosidade com o Direito”, conceitos cuja incerteza jurídica impossibilitaram a aceitação desta teoria7.
As teorias do dolo foram expostas neste trabalho apenas pelo valor histórico que apresentam, em virtude do fato de que, com o surgimento das teorias da culpabilidade, perderam importância.
2.3 Teoria Extremada da Culpabilidade
Neste pensamento, o dolo resta separado da consciência da ilicitude. O dolo é transferido para o injusto, passando a fazer parte do tipo penal.
A consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa passam a fazer parte da culpabilidade.
Em conclusão: se o erro incidir sobre elemento intelectual do dolo, certamente o excluirá e, como consequência, o tipo penal também será anulado (erro de tipo); e, se o erro for sobre a potencial consciência da ilicitude, será afastada a culpabilidade (erro de proibição).
No erro de tipo, o erro vicia elemento intelectual do dolo (previsão) e será excluído o dolo, porém, por restar a culpabilidade ilesa, poderá ser configurado crime culposo, caso haja previsão do delito na modalidade imprudente.
No erro de proibição, o erro atinge a consciência da ilicitude, que agora está localizada na culpabilidade, logo, quando inevitável, exclui a culpabilidade e impede a condenação.
Porém, quando evitável, atenua a pena, mas a condenação se impõe ainda por crime doloso.
O problema é que, para a Teoria Extremada, qualquer erro sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação deveria ser tratado como erro de proibição, da mesma forma que um erro sobre uma justificativa relacionada aos limites ou à existência de uma norma.
2.3. Teoria Limitada da Culpabilidade
O dolo permanece situado no tipo e a consciência da ilicitude na culpabilidade.
Continua a adotar o erro de tipo como excludente do dolo e aceita, quando for o caso, o crime culposo, além de defender o erro de proibição inevitável como causa de exclusão da culpabilidade e consequente impossibilidade de punição a qualquer título (por dolo ou culpa).
No entanto, quando comparada à corrente anterior, esta implica em profundas divergências no referente à hipótese em que o erro recai sobre uma causa de justificação.
Esta teoria distingue o erro que incide sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação e o classifica como erro de tipo permissivo e o erro que atinge a existência ou a abrangência de uma causa de justificação e o categoriza como erro de proibição.
O erro de tipo permissivo tem o mesmo efeito do erro de tipo: exclui o dolo, mas permite a punição culposa, caso haja previsão.
O erro de proibição anula a culpabilidade, se inevitável, ou atenua a pena, se evitável, conforme já visto.
Esta é a corrente adotada pelo sistema penal brasileiro:
O código penal brasileiro de 1984, no seu art 20 § 1, deixou expressa a adoção da teoria limitada da culpabilidade, não obstante, os defensores da teoria estrita da culpabilidade tentaram promover uma releitura do texto legal. De qualquer forma, há um grande continente doutrinário que reconhece a opção legislativa, especialmente porque está explícita no item 17 da exposição de motivos do projeto.8
Como já dito, o Código Penal adota a Teoria Limitada da Culpabilidade, onde temos a potencial consciência da ilicitude como elemento da culpabilidade e dentro da potencial consciência da ilicitude temos o erro de proibição como gênero.
O dolo está no tipo e a conduta passa a ser dolosa ou culposa.
2.4. Teoria dos Elementos Negativos do Tipo
Outra corrente que se esforçou na tentativa de entender melhor e explicar o instituto do equívoco no Direito Penal, foi a Teoria dos Elementos Negativos do Tipo.
Os seguidores deste pensamento criaram o chamado “tipo total de injusto”, o qual abrangeria também as causas de justificação, como “elementos negativos do tipo”.
Neste contexto, sendo o crime um “injusto tipificado”, tudo que anule o injusto acarretará, também, o desaparecimento da tipicidade.
Há críticas de que esta teoria faz uma identificação inadequada de tipicidade e de antijuridicidade.
Isso porque, se as causas de justificação excluem o injusto, passam a ser características negativas do tipo.
Neste sentido, o dolo abrangeria não somente os elementos constitutivos do tipo incriminador, mas também a ausência de causas de justificação.
Explica-se: não há dolo, quando presente uma causa justificante; assim, o erro nas descriminantes putativas fáticas seria erro de tipo e como tal, excluiria o dolo9.
No entanto, é muito difícil que, durante a ação, o agente tenha representação além dos elementos estruturais do tipo penal.
Ainda, é pouco defensável que o sujeito ativo da infração tenha plena noção de que, na hipótese, ausentes estão a legítima defesa, o estado de necessidade, o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular do direito.
Jescheck ensina que:
Se os elementos de justificação fossem elementos negativos do tipo, o dolo deveria referir-se também à sua ausência. Na grande maioria dos casos, o autor não pensa nisso, nem sequer no sentido de uma vaga consciência concomitante (Mitbewusstsein). Tampouco pode dizer-se que mediante a consciência da justificação desapareça já o desvalor da ação do fato delituoso, já que o mesmo não desaparece enquanto o autor crê subjetivamente atuar com apoio no Direito, mas somente quando se unem a consciência da justificação e a situação justificativa.10
Assim, pode-se concluir que diversos estudiosos se debruçaram no estudo do erro para o Direito Penal e, ante a complexidade do tema, diversas foram as teorias criadas.
Contudo, para o Brasil, maior relevo deve ser dado ao estudo da Teoria Limitada da Culpabilidade, vista no item anterior, eis que é a adotada pelo ordenamento jurídico vigente, conforme já explanado.
3. ERRO DE TIPO E SUAS ESPÉCIES
O erro de tipo é a ignorância incidente sobre as circunstâncias elementares ou qualquer dado agregado ao tipo.
Trata-se de equívoco/falsa percepção sobre a realidade; o agente não sabe exatamente o que está acontecendo ao seu redor, embora julgue saber.
É um erro fático, no mundo material/real.
Um exemplo de erro de tipo: João se apodera de material de construção que encontrou na rua, imaginando tratar-se de coisa abandonada. Na verdade, o material era de Pedro, o qual reformava sua casa. João não sabia que subtraía coisa alheia, incorrendo, portanto, em erro de tipo.
Outro exemplo: um estudante, durante uma festa de formatura, leva para casa o paletó de seu colega, julgando ser o seu, visto que ambos são iguais. O estudante agia de boa-fé, pois acreditava estar levando seu próprio paletó para casa. Contudo, caso seu colega presenciasse a cena, sabendo que se tratava de seu próprio paletó, poderia considerar a prática de um furto, sem saber que o outro estudante agia em erro e, neste caso, poderia o proprietário do paletó, inclusive, até reagir em legítima defesa, por ato considerado injusto praticado por alguém que está movido por erro.
Portanto, o agente preenche todos os elementos de um tipo penal, concretizando, dessa forma, uma conduta delituosa, sem ter conhecimento de que o faz, eis que age de boa-fé.
O erro situa-se nos pressupostos fáticos de uma circunstância ou de uma elementar.
O erro de tipo possui algumas subespécies, que serão vistas a seguir.
Ele subdivide-se em erro de tipo incriminador e erro de tipo permissivo.
O erro de tipo incriminador, por sua vez, possui como espécies erro de tipo essencial e erro de tipo acidental.
O erro de tipo permissivo, segundo, Luiz Flávio Gomes, trata-se de uma espécie de erro sui generis11.
3.1. Erro de tipo essencial
Ocorre quando o agente pensa estar agindo licitamente. O erro recai sobre dados principais do tipo penal. Se avisado do erro, o sujeito para de agir criminosamente.
Presente no art. 20. do Código Penal:
Art. 20. - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
Por exemplo: um caçador atira em um arbusto, pensando que lá está escondido um animal, porém, ao se aproximar, percebe que matou alguém.
Neste caso, o infrator ignorava a elementar “alguém” do tipo de homicídio.
Para saber quais serão as consequências deste erro para o sujeito ativo do delito, é imprescindível analisar se o agente incorreu em erro evitável ou inevitável.
3.1.1. Erro de tipo essencial evitável e inevitável e suas respectivas consequências jurídicas
Em primeiro lugar, é imprescindível aferir a possibilidade de se evitar o erro.
Para tanto, existem duas correntes.
1ª Corrente: é preciso que se invoque a figura do “homem médio”. Se o homem médio é capaz de evitar, então o erro é evitável. Esta é a seguida pela maioria da doutrina e da jurisprudência.
2ª Corrente: observa as circunstâncias do caso concreto. Avalia o grau de instrução e a idade do agente, além do momento e local do crime, para saber qual era a previsibilidade do sujeito ativo. A doutrina moderna vem aplicando esta teoria.
Neste sentido: uma vez que se comprove que o erro era inevitável apesar de ter o agente atentado para os cuidados necessários, será excluído o dolo e a culpa; uma vez que se observe que o erro era evitável pela diligência ordinária, será excluído apenas o dolo, restando a responsabilidade a título de culpa, desde que o tipo penal traga esta previsão, já que nem todos os crimes são punidos na modalidade imprudente.
Conclui-se, portanto, que: a) o erro inevitável exclui o dolo, porque não tem consciência, já que se trata de erro essencial e exclui a culpa, porque, se é inevitável, é porque é imprevisível e, se é imprevisível, não tem culpa, a qual precisa de previsibilidade; b) o erro evitável exclui o dolo, porque é erro essencial do mesmo jeito e, portanto, não há consciência e não exclui a culpa, quando prevista no tipo, porque, sendo evitável, era previsível.
3.2. Erro de tipo acidental
Esta espécie ocorre quando o erro recai sobre dados secundários do tipo.
O fato, aqui no erro de tipo acidental, é que o agente visa produzir um ilícito e, quando avisado do equívoco, corrige os caminhos ou sentido da sua conduta, para continuar a agir de forma ilícita.
O agente, sabendo que pratica um fato típico, responde pelo crime. O erro acidental não exclui o dolo.
São várias as espécies, as quais serão vistas separadamente nos tópicos seguintes: erro sobre o objeto; erro sobre a pessoa; erro na execução ou aberratio ictus; resultado diverso do pretendido ou aberratio criminis; e erro sobre o nexo causal ou aberratio causae (que engloba erro sobre o nexo causal em sentido estrito e dolo geral ou erro sucessivo).
3.2.1. Erro sobre o objeto
Nesta espécie de erro de tipo acidental, o indivíduo imagina estar atingindo um objeto material, mas atinge outro.
Conforme ensina Cléber Masson: “A” imagina estar subtraindo um relógio Rolex, avaliado em R$ 30.000,00 (trinta mil reais), no entanto, acaba furtando uma réplica, que custa aproximadamente R$ 500,00 (quinhentos reais)12.
Aqui, deve ser observada a teoria da concretização, pela qual o agente responde pelo ilícito efetivamente praticado.
No exemplo, responderá pelo furto da réplica.
Neste tipo de erro, é preciso ter cuidado, porque o equívoco não pode interferir na essência do delito, caso contrário, será erro essencial e não acidental, trazendo como resultados os já apreciados no item 2.1.1.
O erro de tipo acidental é irrelevante sob o ponto de vista de interferência na tipicidade penal.
O agente preencheu os requisitos do art. 155. do Código Penal: “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel” e responderá por furto.
Contudo, na apreciação do caso concreto, o magistrado poderá entender que se trata simplesmente de objeto, cujo valor é irrisório, aplicando, assim, o princípio da insignificância, o qual exclui a tipicidade do fato, quando preenchidos seus pressupostos.
Para a jurisprudência, os requisitos de aplicação do princípio da insignificância são: mínima ofensividade da conduta; nenhuma periculosidade social da ação; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada.13
3.2.2. Erro sobre a pessoa
Nesta espécie de erro de tipo acidental, o indivíduo, pensando atingir uma vítima, confunde-se, afetando pessoa diversa da pretendida.
Aqui, aplica-se a teoria da equivalência, ou seja, deve-se levar em consideração, para fins de aplicação de pena, as qualidades da pessoa visada, conforme prevê o art. 20, § 3º, do Código Penal: “O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime”.
Por exemplo: “A” pretende matar seu próprio pai, porém, confunde-se e mata o seu vizinho.
Neste caso, “A” responderá por homicídio com a agravante genérica relativa ao delito praticado contra ascendente [art. 61, inciso II, “e”, do Código Penal - Art. 61. – “São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: (...) II - ter o agente cometido o crime: (...) e) contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge;”], eis que, pela teoria da equivalência, devem ser consideradas as qualidades da vítima virtual.
3.2.3. Erro na execução ou aberratio ictus
Aqui, precisamos ter um pouco mais de cuidado.
O erro na execução incide sobre a pessoa, porque erro sobre a “coisa” é “erro sobre o objeto”.
Está previsto no art. 73. do Código Penal:
Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo-se ao disposto no § 3º do art. 20. deste Código. No caso de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender, aplica-se a regra do art. 70. deste Código.
Explica Cléber Masson14 que, ao contrário do erro visto no item anterior, o agente não se confunde quanto à pessoa que gostaria de atacar, mas age de forma desastrada, atingindo pessoa diversa apenas por “errar o alvo”, durante a prática dos atos executórios.
O agente, visando atingir determinada pessoa, por inabilidade ou outro motivo, erra na execução do crime, ofendendo pessoa diversa.
No erro sobre a pessoa (visto no item anterior), o infrator, apesar de ter executado perfeitamente o delito, atinge vítima diferente da pretendida.
No erro na execução, embora o sujeito ativo represente de forma correta a vítima, erra na execução do ilícito.
Exemplo: “A”, visando matar “B”, seu desafeto, atira com arma de fogo contra ele, porém, por erro na pontaria, acaba atingindo “C”.
O agente responderá pelo crime considerando-se a vítima pretendida, eis que o art. 73. do Código Penal remete ao 20, § 3º: “O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime”.
Esta é a simples solução que se dá ao erro na execução com resultado único (é o art. 73, primeira parte, do Código Penal): resolve-se o caso apenas com a aplicação da Teoria da Equivalência.
Contudo, a dificuldade surge quando se trata de erro com resultado duplo ou unidade complexa (art. 73, parte final, do Código Penal).
Nestes casos, o agente atinge também a pessoa pretendida.
Por exemplo: quer matar o pai, mas, por erro na execução, mata o vizinho e causa lesão corporal no pai.
A Doutrina explica que15, neste caso, o Código Penal determina a aplicação do concurso formal próprio ou perfeito (art. 70, caput, do Código Penal, 1ª parte): o juiz aplica a pena do crime mais grave, aumentando-a de 1/6 a 1/2.
O percentual de aumento varia de acordo com o número de resultados delituosos produzidos culposamente.
Porém, devemos ter muito cuidado neste ponto, eis que o concurso formal explicado deve ser empregado apenas quando as demais pessoas atingidas o forem culposamente.
Em caso de dolo, mesmo que eventual, não há falar em concurso formal próprio, mas sim impróprio ou imperfeito, quando haverá o acúmulo das sanções (regra do cúmulo material), eis que os resultados criminosos derivam de desígnios autônomos.
Ainda, existem duas correntes que também tentam solucionar este problema:
1ª Corrente: responde por homicídio doloso consumado do pai e lesão corporal culposa do vizinho em concurso formal. Defendida pelo Professor Damásio de Jesus.
2ª Corrente: responde por tentativa de homicídio do pai em concurso formal com homicídio culposo do vizinho. Adotada por Heleno Cláudio Fragoso.
Esta foi a visão geral do erro na execução, que possui ainda subespécies: por acidente e erro no uso dos instrumentos de execução.
3.2.3.1. Por acidente
Não há erro no golpe. Há desvio na execução.
A pessoa visada pode ou não estar presente no local.
Exemplo: a mulher, pretendendo matar o marido, ministra veneno em seu suco. Porém, quem tomou o suco e morreu foi o filho do casal.
Outro exemplo: “A” coloca uma bomba no carro de “B”, para que exploda quando acionado. Porém, naquele dia, quem utiliza o carro e morre é a esposa de “B”.
Aqui, não há qualquer erro no golpe, que foi perfeito.
3.2.3.2. Por erro no uso dos instrumentos de execução
Aqui, ocorre erro no golpe.
A pessoa visada está no local.
É o exemplo dado quando da explicação geral de erro na execução: “A”, visando matar “B”, seu desafeto, atira com arma de fogo contra ele, porém, por erro na pontaria, acaba atingindo “C”.
3.2.4. Resultado diverso do pretendido
É também chamado de aberratio criminis ou aberratio delict.
Fora dos casos do item anterior (2.2.3), quando por acidente ou erro no uso dos meios da execução, o indivíduo atinge bem jurídico diverso do pretendido.
Está previsto no art. 74. do Código Penal:
Fora dos casos do artigo anterior, quando, por acidente ou erro na execução do crime, sobrevém resultado diverso do pretendido, o agente responde por culpa, se o fato é previsto como crime culposo; se ocorre também o resultado pretendido, aplica-se a regra do art. 70. deste Código.
No item anterior, a relação era entre duas pessoas. Neste item, a relação é entre pessoa e objeto (ou entre dois crimes).
Este dispositivo disciplina a situação em que, por acidente ou erro na execução do crime, sobrevém, na situação, resultado diverso do pretendido.
Assim, o infrator desejava praticar um determinado crime, mas, por erro, acaba por cometer delito diferente do pretendido.
No entanto, a regra do art. 74. do Código Penal deve ser afastada quando o resultado pretendido é mais grave que o resultado produzido, hipótese em que o agente responde pelo resultado pretendido na forma tentada.
Clássico exemplo doutrinário é o do sujeito que atira uma pedra em direção a uma vidraça, visando praticar o crime de dano, mas, por erro na pontaria, atinge um indivíduo que passeava pela rua, causando nele lesão corporal.
Consequências:
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Unidade simples/resultado único: no exemplo, é o caso em que o agente atinge somente a pessoa. Responde pelo resultado produzido (e não há falar em teoria da equivalência, porque os bens são distintos) diverso do pretendido, na forma culposa, caso seja prevista a cominação de pena para o delito culposo. Na hipótese, cumprirá pena por lesão corporal culposa.
Unidade complexa/resultado duplo: no exemplo, é o caso em que o agente atinge a pessoa culposamente e também a vidraça. Ocorrerá concurso formal. Aplica-se a pena mais grave aumentada de 1/6 a 1/2, variando o aumento de acordo com o número de crimes produzidos a título de culpa.
Na situação 2, temos que cuidar, porque, se o crime culposo for menos grave ou se não houver previsão da modalidade culposa, será desprezada a regra do art. 74. do Código Penal.
Conforme explica Cléber Masson16, se “A” efetua disparos de arma de fogo para matar “B”, mas não o acerta e quebra uma vidraça, o sistema geral do “resultado diverso do pretendido” indicaria a absorção da tentativa de homicídio pelo dano culposo e, como o dano culposo não tem previsão legal, a conduta seria atípica.
Contudo, ainda que o legislador tivesse estabelecido reprimenda para o delito de dano na sua forma imprudente, este não seria capaz de absorver a tentativa de homicídio, ante a indiscutível maior gravidade do delito previsto no art. 121. do Código Penal.
Assim, neste caso, deve o agente ser punido por tentativa de homicídio.
3.2.5. Erro sobre o nexo causal
Esta modalidade não tem previsão legal, é fruto da construção doutrinária.
Aqui, o agente produz o resultado almejado, porém, com nexo causal diverso do pretendido.
A doutrina divide este erro em duas espécies: erro sobre o nexo causal em sentido estrito e dolo geral.
3.2.5.1. Erro sobre o nexo causal em sentido estrito
Ocorre quando o agente, mediante “um só ato”, provoca o resultado visado, porém, com outro nexo.
Por exemplo: o infrator empurra a vítima de um penhasco, para que ela morra afogada, mas ela bate a cabeça numa pedra e morre, em razão de traumatismo craniano.
Ele conseguiu o resultado visado, porém, com outro nexo.
O nexo visado era o afogamento. O nexo realizado foi o traumatismo craniano. Conseguiu o resultado visado, porém, com outro nexo.
3.2.5.2. Dolo geral
Também conhecido como aberratio causae ou erro sucessivo.
O infrator, mediante conduta efetuada com “pluralidade de atos”, provoca o resultado pretendido, porém, com outro nexo.
Não se pode confundir esta hipótese com a do item 2.2.5.1, eis que, na anterior, o indivíduo pratica o delito mediante apenas “um ato”.
Por exemplo: “A” efetua disparos contra “B”. Pensando que “B” já está morto, joga seu corpo no mar. “B”, então, morre por afogamento, fruto do segundo ato de “A”.
O nexo visado era o disparo, mas o real foi o afogamento.
3.2.5.3. Consequências do erro sobre o nexo causal
De acordo com o princípio unitário, o agente responde pelo resultado causado, que era o que ele queria, mas com o nexo real.
Atenção, no entanto, sobre a qualificadora que será empregada ao condenado, neste caso.
Será considerado o meio de execução que o agente desejava empregar para a consumação e não aquele que, acidentalmente permitiu a ocorrência do resultado17.
3.2.6. Erro sobre as qualificadoras
Para alguns doutrinadores, como Damásio de Jesus18, esta modalidade de erro trata-se de erro de tipo essencial.
Aqui, o sujeito tem a falsa percepção da realidade, no referente a uma qualificadora do crime.
Um exemplo é o caso em que o “A” furta um automóvel após adquirir, mediante fraude, a chave verdadeira do carro.
O indivíduo acredita estar praticando o delito de furto qualificado pelo emprego de chave falsa, previsto no art. 155, § 4º, inciso III, do Código Penal:
Art. 155. - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
(...)
Furto qualificado
§ 4º - A pena é de reclusão de dois a oito anos, e multa, se o crime é cometido:
(...)
III - com emprego de chave falsa;
Porém, na verdade, não há incidência da qualificadora citada, eis que a chave é verdadeira.
Esta modalidade de equívoco penal não é capaz de afastar nem o dolo nem a culpa, no que se refere à modalidade básica do delito.
Subsiste o delito de furto, na hipótese, porém a qualificadora deve ser afastada, por falta de dolo.