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O efeito da morte na solidariedade passiva

Agenda 18/11/2004 às 00:00

1. INTRODUÇÃO

É bem sabido que a morte, fato jurídico de alta relevância, desencadeia uma série de efeitos que afetam profundamente as relações jurídicas entre os indivíduos. As conseqüências deste evento ao qual estaremos todos submetidos um dia se alastram por todo o Código Civil e são também encontradas no instituto da solidariedade.

Trata o presente trabalho de algumas considerações acerca dos efeitos infligidos por este evento na composição e estruturação das obrigações onde figuram no pólo passivo uma multiplicidade de indivíduos ligados entre si pelo vínculo da solidariedade.

Antes de adentrar nos referidos efeitos, faz-se mister a exposição de alguns conceitos que nos irão ser de grande valia para uma melhor compreensão do assunto.


2. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA

:

A obrigação solidária é um instituto presente no direito civil brasileiro caracterizado por uma multiplicidade de credores (ativa) ou devedores (passiva) que possuem entre si um vínculo jurídico específico que os torna responsáveis conjuntamente pelo crédito ou pelo débito, conforme o caso.

O Código Civil brasileiro de 2002 (CC/02) é claro ao dispor em seu art. 264 que, verbis "Há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado a dívida toda". Nesse mesmo sentido Silvio da Salvo Venosa ensina que "...a solidariedade é modalidade especial de obrigação que possui dois ou mais sujeitos, ativos ou passivos, e, embora possa ser divisível, pode cada credor demandar e cada devedor é obrigado a satisfazer a totalidade, com a particularidade de que o pagamento feito por um devedor a um credor extingue a obrigação quanto aos demais coobrigados [1]".

Todavia é importante ressaltar que apesar de existir uma multiplicidade de sujeitos, ou como prefere Caio Mário da Silva uma pluralidade subjetiva, o elemento objetivo da relação obrigacional é singular, isso que dizer que qualquer que seja o número de devedores o débito é sempre único.

É justamente dessa pluralidade subjetiva e unidade objetiva que decorre a possibilidade, por parte do credor, de exigir o cumprimento integral da obrigação por qualquer um dos devedores, sendo que, após a resolução da relação obrigacional reclamada pelo credor, nasce para o devedor que efetuou o pagamento da prestação devida, o direito de receber dos demais devedores solidários o correspondente à quota-parte de cada um (direito de regresso).


3. OBRIGAÇÕES DIVISÍVEIS E INDIVISÍVEIS.

Antes de passarmos a análise dos efeitos da morte de um dos devedores solidários, faz-se necessário que sejam apresentadas algumas considerações a respeito da divisibilidade das prestações, uma vez que os efeitos produzidos apresentam-se diversos quando diversas também são as obrigações.

Preliminarmente cabe ressaltar que o nome "obrigações divisíveis ou indivisíveis" é tecnicamente errado, uma vez que a divisibilidade não reside na obrigação em si, mas sim em seu elemento objetivo, ou seja, na prestação. É a prestação, e não a obrigação que possui caráter divisível ou não. Todavia, como a doutrina adota largamente o emprego da expressão obrigação divisível e obrigação indivisível, seguimos o mesmo caminho.

Em apertada síntese, podemos afirmar que "divisíveis são as obrigações possíveis de cumprimento fracionado e indivisíveis são aquelas que só podem cumprir em sua integralidade" [2].

Destaca-se aqui a importância da diferenciação entre divisibilidade material e jurídica. Sob o enfoque unicamente material tudo pode ser dividido, entretanto não é sob esse aspecto que devemos nos concentrar. A divisibilidade aqui apontada trata-se da divisibilidade jurídica, a qual encontra ressonância no art. 87 do livro II do CC/02, livro que trata de matéria referente aos bens, verbis "Bens divisíveis são os que podem fracionar sem alteração na sua substância, diminuição considerável de valor ou prejuízo do uso a que se destinam". Maria Helena Diniz define com maestria a questão ao ministrar que "São divisíveis os bens que puderem ser fracionados em partes homogêneas e distintas, sem alteração das qualidades essenciais do todo, sem desvalorização e sem prejuízo ao uso a que se destinam, formando um todo perfeito." [3]

O conceito de divisibilidade aqui aplicado aos bens conserva suas características quanto as obrigações, nesse sentido, "A obrigação indivisível é aquela cuja prestação só pode ser cumprida por inteiro por sua natureza, por motivo de ordem econômica ou alguma razão determinante do negócio jurídico, não comportando sua cisão em várias obrigações parceladas distintas, pois uma vez cumprida parcialmente a prestação, o credor não obtém nenhuma utilidade ou obtém a que não representa a parte exata da que resultaria do adimplemento integral" (Adcoas, n. 90.323, 1983).

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Dessa forma, a divisibilidade encontra-se na possibilidade ou não do adimplemento de total da obrigação. Sempre que seja possível o cumprimento da prestação de forma parcela sem que o detentor do crédito sofra algum tipo de prejuízo, estaremos diante de uma obrigação divisível. Não existindo essa possibilidade, a obrigação será indivisível.


4. EFEITO DA MORTE DE UM CO-DEVEDOR SOLIDÁRIO

Como já anteriormente exposto os co-devedores estão ligados entre si pelo vínculo jurídico da solidariedade, sendo cada um responsável pelo montante total da dívida perante o credor. Isto posto, imaginemos A, B e C, devedores solidários em relação ao credor D. O que acontece se em virtude de um acontecimento qualquer, qualquer um dos co-devedores vier a falecer? Certo é, que uma série de circunstancias decorrem desse evento, as quais iremos explicar agora.

No caso de um dos devedores solidários falecer deixando apenas um herdeiro, este assume a posição deixada pelo "de cujus" inclusive no tocante à solidariedade com relação aos demais devedores. Entretanto, o herdeiro do devedor falecido só será responsabilizado pelo adimplemento da obrigação até a medida de sua herança. Sendo assim, se o dito devedor deixou um patrimônio equivalente a R$ 20.000,00 e uma dívida no valor de R$ 35.000,00, seu herdeiro ao ser demandado na justiça ficará obrigado a pagar apenas o equivalente aos R$ 20.000,00 deixados pelo "de cujus", subsistindo para o credor o direito de cobrar os outros R$ 15.000,00 dos demais devedores.

No caso de algum dos co-devedores falecer deixando mais de um herdeiro, estes serão considerados como um devedor solidário em relação ao credor e aos demais devedores, sendo que a condição de solidariedade extingue-se entre os herdeiros, perdurando, porém, quanto a estes e os demais co-devedores. Assim, inexiste o vínculo solidário entre os herdeiros, ficando cada um responsável pelo equivalente às respectivas quotas-partes perante o credor, isso se o detentor do crédito demandar seu cumprimento após a partilha da herança, caso contrário "...o monte responderá por toda a dívida, em razão de os herdeiros formarem um grupo que, em conjunto, pode ser demandado por todo o débito [4]". Podem, ainda, os herdeiros optarem pela constituição de um procurador que representará seus interesses e assumirá o posto deixado pelo "de cujus" na relação obrigacional inclusive no tocante à solidariedade. Este procurador, se demandado pelo credor, responderá por todo o patrimônio que formar o espólio, sendo obrigado a cumprir a prestação por inteiro se assim for possível.

Dessa forma, os herdeiros do "de cujus" que figurava como co-devedor de uma obrigação solidária qualquer só responderão até o limite de seus respectivos quinhões hereditários. Todavia, isso não se aplica aos casos onde a prestação devida é indivisível, pois como dispõe o art.276 do CC/02, verbis "Se um dos devedores solidários falecer deixando herdeiros, nenhum destes será obrigado a pagar senão a quota que corresponder ao seu quinhão hereditário, salvo se a obrigação for indivisível; mas todos reunidos serão considerados como um devedor solidário em relação aos demais devedores."

Certo é que nenhuma dívida ultrapassará a pessoa do devedor. Podendo, porém, seus herdeiros serem responsabilizados até o montante da herança deixada. Tal princípio infere-se a partir da garantia constitucional expressa no art. 5º, XLV "nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento dos bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor patrimonial transferido". Entretanto, ao analisarmos apressadamente o dispositivo supracitado dá-se a entender que existe um choque entre a redação do inciso e o princípio constitucional elencado, o que não é verdade. Quando o texto legal diz que os herdeiros só responderão na medida de seus respectivos quinhões hereditários, salvo se a obrigação for indivisível, deve-se entender que caso a obrigação seja de caráter indivisível poderá esta ultrapassar a quota correspondente ao que cada herdeiro recebeu como herança, nunca, porém, incidindo sobre o patrimônio pessoal dos herdeiros. Isto quer dizer que a dívida poderá exceder o quinhão do herdeiro demandado adentrando na parte correspondente aos outros herdeiros sem, entretanto, atingir o patrimônio individual do herdeiro.

Imaginemos a situação em que o "de cujus" deixa como herança para seus dois herdeiros um touro premiado, e que este mesmo touro é dado como garantia em um empréstimo. Após a partilha cada um dos dois herdeiros passa a ser proprietário do equivalente à metade do touro. Ocorre que o falecido não restituiu o dinheiro auferido por meio do empréstimo celebrado por este ainda em vida e o detentor do crédito (credor) resolve executar a garantia oferecida pelo falecido contra um de seus herdeiros. Segundo o princípio constitucional supramencionado o herdeiro seria responsável por apenas o equivalente à metade do touro (quantia correspondente ao seu quinhão hereditário), todavia, como se trata de uma obrigação indivisível devido à natureza da prestação, o herdeiro demandado se vê obrigado a entregar o touro em sua integralidade, ultrapassando, assim, a medida de seu quinhão hereditário e adentrando o quinhão correspondente ao outro herdeiro. Conseqüentemente, o outro herdeiro mesmo não possuindo vínculo de solidariedade em relação ao primeiro, sendo que tal vínculo não existe entre os herdeiros de um co-devedor solidário, se vê obrigado a concorrer com o mesmo para a resolução da obrigação, uma vez que esta possui caráter indivisível.

Sobre o assunto Maria Helena Diniz ensina que "O falecimento de um dos devedores solidários não rompe a solidariedade, que continuará a onerar os demais co-devedores, pois os herdeiros responderão pelos débitos do falecido, desde que não ultrapassem as forças da herança. Com o óbito do devedor solidário, dividir-se-á a dívida, se divisível, em relação a cada um dos herdeiros, pois cada qual só responderá pela quota respectiva, salvo se a obrigação for indivisível, hipótese em que os herdeiros serão considerados, por ficção legal, como um só devedor solidário relativamente aos outros co-devedores solidários. [5]"

Ante ao exposto conclui-se que mesmo existindo uma dívida de caráter indivisível deixada por um co-devedor solidário, seus herdeiros nunca poderão ser demandados além da quantia a que corresponder ao montante da herança deixada pelo falecido.


5. CONCLUSÃO:

Como foi apresentado no presente escrito, mesmo que ocorra a morte de um dos devedores solidários poderá o credor opor seu crédito contra os herdeiros deste. Essa possibilidade corrobora a finalidade a qual se destina o instituto da solidariedade, qual seja, reforçar o vínculo obrigacional de forma a oferecer ao credor uma maior segurança quanto à percepção dos créditos a que tem direito.

Entretanto, mesmo sendo os herdeiros do devedor solidário falecido obrigados para com a dívida deixada, é assegurado a estes o direito de que tal dívida jamais poderá onerar parte de seus respectivos patrimônios pessoais, ainda que indivisível seja a obrigação.


NOTAS

1 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil : Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 131.

2 VENOSA, Id, Ibidem, p. 124.

3 DINIZ, MARIA HELENA. Código Civil Anotado. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, pg. 98.

4 OROZIMBO NONATO apud CAIO MÁRIO, Instituições de Direito Civil, Vol III, 1994, pág. 73.

5 DINIZ, MARIA HELENA, Id, Ibidem, p. 233

Sobre o autor
Rafael de Paula Gomes

acadêmico do curso de Ciências Jurídicas do Instituto de Ensino Superior de Brasília – IESB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Rafael Paula. O efeito da morte na solidariedade passiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 499, 18 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5901. Acesso em: 22 dez. 2024.

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