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Multiparentalidade: prevalência de interesses meramente patrimoniais?

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Em razão da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 622, na qual admitiu-se a multiparentalidade, surge o questionamento: teria o Judiciário aberto as portas para demandas meramente mercenárias?

Resumo: Em razão da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 622, no leading case RE n. 898.060/SC sob repercussão geral, na qual admitiu-se a multiparentalidade, isto é, a possibilidade de coexistência dos vínculos biológico e afetivo, sem que haja hierarquia entre eles, este artigo tem por escopo analisar as possíveis consequências patrimoniais. Isto porque a admissão de filiação biológica e socioafetiva, de forma concomitante, gera encargos decorrentes do poder familiar para ambos os pais, inclusive quanto ao direito aos alimentos e sucessórios, podendo o filho se beneficiar desta dupla proteção. Com isso, surge o questionamento se a decisão do STF não teria aberto espaço para demandas de reconhecimento de paternidade, baseadas em interesses exclusivamente patrimoniais.

Palavras-chave: multiparentalidade; filiação biológica; filiação afetiva; poder familiar; direitos sucessórios; alimentos; paternidade responsável.


1 INTRODUÇÃO

Em setembro de 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) admitiu a multiparentalidade, no Tema 622, sob repercussão geral, cujo leading case é o Recurso Extraordinário n. 898.060/SC, de Relatoria do Ministro Luiz Fux.

Trata-se de decisão paradigmática, pois, ao acolher a possibilidade da coexistência de paternidade socioafetiva com a paternidade biológica, reconhece-se que não há prevalência do vínculo biológico em detrimento do afetivo, admitindo-se, finalmente, a importância do afeto nas relações familiares, alçando-o como valor jurídico. 

Ao apreciar o tema, sob repercussão geral, o plenário do STF, por maioria dos votos, aprovou a seguinte tese: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios".[3] 

Enfim, admite-se a existência de dois pais, ou duas mães, com todas as consequências jurídicas inerentes a uma paternidade, inclusive a incidência dos direitos sucessórios. Resta, finalmente, esclarecida a discussão doutrinária se eventual vínculo socioafetivo excluiria o genitor biológico de suas responsabilidades decorrentes do poder familiar.

Após a decisão, não demorou muito a surgirem vozes na doutrina alertando sobre as consequências e os reflexos que esta decisão do STF, ousada e necessária, teria nas relações familiares.

Dentre estes alertas, destaca-se, neste artigo, o receio de que a posição do STF possa gerar demandas mercenárias, baseadas em interesse puramente patrimonial, seja quanto ao direito aos alimentos, seja relativo aos direitos sucessórios.

Teria o STF “aberto as portas do Judiciário para filhos que somente se interessam pelos pais biológicos no momento de necessidade ou ao se descobrirem como potenciais herdeiros de fortunas”?[4]

Em que pese se tratar de uma preocupação legítima, o Direito de Família não deve ficar engessado em razão deste receio, conforme se demonstrará a seguir. 


2 DAS RAZÕES PARA O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE

          Aborda-se, a seguir, alguns dos argumentos jurídicos a fundamentar o necessário e, diga-se de passagem, tardio do reconhecimento da multiparantalidade.

2.1 Dos novos contornos familiares e o reconhecimento do valor afeto

Com a evolução social, percebe-se a modificação na estrutura familiar brasileira, que passa a ter novos arranjos, à margem da figura clássica e estática do casamento entre homem e mulher.

A partir da Constituição Federal de 1988, o modelo de família matrimonializada e hierarquizada cede espaço à instituição familiar formada pelo vínculo afetivo, não importando a sua estrutura.

Em que pese os avanços trazidos pela Constituição Federal, irradiando os seus efeitos na legislação infraconstitucional, sobretudo com a despatrimonialização do Direito Civil, o legislador não consegue acompanhar as rápidas mudanças sociais.

Ressalta-se que a Carta Magna traz hipóteses meramente exemplificativas de modelos familiares, além da clássica formação pelo casamento, como a união estável (art. 226, §3°) e a família monoparental (art. 226, §4°).

Todavia, a inexistência de regulamentação acerca de todas as possibilidades de arranjos familiares não impede que novas formações, diversas do modelo tradicional, sejam protegidas pelo Direito.

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Pelo contrário, conforme observa o Ministro Luiz Fux, “É o direito que deve se curvar às vontades e necessidades das pessoas, não o contrário, assim como um alfaiate, ao deparar-se com uma vestimenta em tamanho inadequado, faz ajustes na roupa, e não no cliente”.[5]

Reconhece-se, enfim, o valor jurídico do afeto, há muito já defendido pela doutrina.

É preciso, portanto, pensar a família sob uma concepção eudemonista. Nas palavras do Ministro Luiz Edson Fachin:

 Sob as relações de afeto, de solidariedade e de cooperação, proclama-se, com mais assento, a concepção eudemonista da família: não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família e o casamento existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade.[6]

Nessa perspectiva, não pode mais haver prevalência do vínculo biológico sobre o afetivo. Não há outra solução senão reconhecer a equivalência e a coexistência de ambos.

2.2 Da Dignidade da pessoa humana e a busca da felicidade

Acerca do tema, invoca-se ainda, a dignidade da pessoa humana, princípio meta-jurídico e fundamento do nosso Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, CF).

Immanuel Kant, na formulação do seu imperativo categórico, conclui que o ser humano deve sempre ser um fim em si mesmo, nunca um meio para um fim.

É, pois, o indivíduo quem deve guiar a sua vida, sendo senhor do seu próprio destino, não podendo ser, em hipótese alguma, objeto das criações legislativas. Não se pode exigir que o indivíduo se encaixe em formulações e institutos pré-concebidos pelo legislador, sob pena de inadmissível objetificação daquele.

Trazendo o postulado para a seara do Direito de Família, “tem-se que a dignidade humana exige a superação de óbices impostos por arranjos legais ao pleno desenvolvimento dos formatos de família construídos pelos próprios indivíduos em suas relações afetivas interpessoais”.[7]

Conclui-se que a dignidade da pessoa humana confere ao indivíduo a possibilidade de que ele escolha o formato de família que bem desejar, de acordo com as suas relações afetivas interpessoais, mesmo que elas não estejam previstas em lei.

O direito à busca da felicidade está estritamente ligado à dignidade da pessoa humana. O direito à busca da felicidade faz com que o indivíduo seja o centro do ordenamento jurídico-político, que deverá reconhecer que aquele possui capacidade de autodeterminação, de autossuficiência e a liberdade de escolher seus próprios objetivos.

Deve-se permitir, portanto, que o indivíduo busque a sua felicidade, de acordo com as suas preferências e concepções, protegendo-o de indevidas ingerências do Estado. É o Estado quem deve se curvar às escolhas do indivíduo e não o contrário.

A busca pela felicidade engloba, inevitavelmente, a família, já que esta é o locus de realização do indivíduo.

Por sua importância, a família é a base da sociedade e tem especial proteção do Estado, conforme dispõe o artigo 226 da Constituição Federal. Ressalta-se que esta proteção deve se dar contra terceiros, mas também contra o próprio Estado, que não deve se imiscuir nas relações afetivas e privadas dos indivíduos.

2.3 Da inexistência de hierarquia entre a filiação biológica e a afetiva

A filiação está elencada como direito da personalidade no art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente: “O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça”.

A doutrina conceitua a filiação como a relação de parentesco, em linha reta, no primeiro grau, que vincula uma pessoa àqueles que a geraram, ou a receberam como se a tivessem gerado, baseado no afeto e na solidariedade. Ou seja, filiação é a relação de parentesco que vincula ascencionalmente os filhos aos pais.

Possui a mesma natureza jurídica da paternidade, mudando apenas o enfoque de análise: a filiação é considerada de filho para pai, enquanto a paternidade analisa-se pelo prisma dos pais.

Há, atualmente, três critérios para o estabelecimento da filiação: jurídico, biológico e socioafetivo.

No primeiro, a paternidade é presumida de acordo com o art. 1.597 do Código Civil (pater is est quem nuptiae demonstrat), independente da correspondência ou não com a realidade. No critério biológico, a definição da filiação tornou-se possível graças à popularização do exame de DNA.

Por fim, a filiação socioafetiva ganhou destaque por ser fundada no melhor interesse da criança e na dignidade da pessoa humana. [8]

A Constituição Federal de 1988 motiva a paternidade sociológica no caput do art. 227, quando assegura à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à convivência familiar[9]. No §6º do mesmo artigo, garante a todos os filhos os mesmos direitos, não importando sua origem (regra da igualdade).

Elenca-se, ainda, como fundamento constitucional o princípio da paternidade responsável, vinculado ao melhor interesse da criança (art. 277, §7º, CF); e o princípio da prevalência do elemento anímico affectio nas relações familiares.[10]

Em âmbito infraconstitucional, a filiação socioafetiva confirma-se no Código Civil, quando o art. 1.593 dispõe que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”. Assim, pode-se considerar que essa “outra origem” abrange a afetividade.

Validando todos esses dispositivos está o princípio da dignidade humana, pois ela “protege o homem em sua vivência familiar, ainda que nenhum vínculo de sangue exista em sua constituição”.[11] 

A prova fática da paternidade afetiva é a posse do estado de filho, sempre presente quando há uma relação de carinho entre pai e filho. Assim define Vanessa Ribeiro Corrêa Sampaio Souza:

A paternidade afetiva tem, como base fática para o seu estabelecimento, a denominada posse de estado de filho, estando esta materializada sempre que se consiga visualizar a existência de todos os elementos pertinentes a uma concreta e efetiva relação filial, levando-se em consideração o comportamento daqueles que a integram.[12]

Por não haver legislação brasileira que defina tal conceito, ao contrário de países europeus como França e Portugal, a doutrina defende que a posse de estado se configura quando há a presença dos elementos nome, trato e fama.

O nome se caracteriza nos casos em que o filho usa o patronímico do pai, representando a vontade da família de que o mesmo lhe pertença; ou apenas quando há o tratamento de pai e filho entre as partes. Considera-se o nome como o fator menos importante, sendo que a posse do estado de filho pode ser reconhecida com apenas os outros dois elementos.

O trato é a própria relação de cuidado e afeto entre ambos, por isso é considerado o elemento imprescindível. A fama se dá no momento em que os demais familiares e a sociedade conheçam essa relação paternal.

Somado às demais características, o fator temporal também se faz necessário a fim de constatar a manutenção e estabilidade desse relacionamento, possibilitando segurança e bem-estar ao filho.

A posse de estado de filho está presumida no art. 1.605 do Código Civil, o qual autoriza a prova da filiação quando existirem fatos já certos.

Ambicionando reconhecer e proteger o direito à filiação, a Constituição Federal de 1988, no §6º de seu art. 227, estabeleceu a igualdade entre todos os filhos. Abandonou-se a classificação discriminatória do Código Civil de 1916 entre os filhos legítimos e ilegítimos.

O Código Civil reproduziu o §6º do art. 227 da Constituição Federal e determinou que “Os filhos havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

Conforme lição de Maria Berenice Dias:

Não mais se pode dizer que alguém só pode ter um pai e uma mãe. Agora é possível que pessoas tenham vários pais. Identificada a pluriparentalidade, é necessário reconhecer a existência de múltiplos vínculos de filiação. Todos os pais devem assumir os encargos decorrentes do poder familiar, sendo que o filho desfruta de direitos com relação a todos.[13]

Havendo a possibilidade de diferentes modalidades de filiação e a obrigatória igualdade entre elas, imprescindível também acolher a coexistência entre os diferentes vínculos de filiação, sem hierarquia entre eles.

2.4 Da paternidade responsável

A expressão “paternidade responsável” não se limita às obrigações do homem, compreende também a maternidade responsável. Poderia ser substituída por parentalidade responsável, tradução correta de parental responsibility, termo inglês que serviu de inspiração ao constituinte brasileiro.[14]

A paternidade responsável foi erigida à direito constitucional, com previsão expressa no art. 227 da Constituição Federal. Posteriormente, foi lembrada infraconstitucionalmente no Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 3º e 4º) e no Código Civil, no inciso IV do art. 1.566.

A paternidade responsável, reformulação da responsabilidade civil, consiste na obrigação dos pais de assistir, criar e educar os filhos, provendo suas necessidades materiais básicas, bem como as biopsíquicas. Isto é, os genitores tem o dever de assistir moral, afetiva, intelectual e materialmente sua prole.

Sobre o tema, interessante a observação de Maurício Kenji Yonemoto:

(...) a fim de observar o princípio constitucional da paternidade responsável, há de se considerar que não se deve limitá-la à idéia da procriação ou, simplesmente, à escolha do momento de ter filhos, mas no dever de consciência do futuro pai/homem, mulher ou mesmo o casal, da responsabilidade decorrente desta paternidade, ou seja, nos deveres que pesam sobre o pai em relação a seu filho, quanto à observação dos direitos deste, com o seu cumprimento da melhor forma possível. [15]

No mesmo sentido, observa Guilherme Calmon Nogueira da Gama:

(...) a parentalidade responsável representa a assunção de deveres parentais em decorrência dos resultados do exercício dos direitos reprodutivos- mediante conjunção carnal, ou com recurso a alguma técnica reprodutiva. Em outras palavras: há responsabilidade individual e social das pessoas do homem e da mulher que, no exercício das liberdades inerentes à sexualidade e à procriação, vêm a gerar uma nova vida humana cuja pessoa- a criança- deve ter priorizado o seu bem-estar físico, psíquico e espiritual, com todos os direitos fundamentais reconhecidos em seu favor.[16]

Haveria, portanto, uma afronta ao princípio da paternidade responsável (art. 226, § 7º, da CF/88) caso fosse permitido que o pai biológico ficasse desobrigado de ser reconhecido como tal pelo simples fato do filho já ter um pai socioafetivo.

Todos os pais devem assumir os encargos decorrentes do poder familiar e o filho deve poder desfrutar de direitos com relação a todos, não só no âmbito do direito das famílias, mas também em sede sucessória.

Sobre as autoras
Karine Azevedo Egypto Rosa

Graduada em Direito, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ, pós-graduada pela Universidade Candido Mendes em Direito Penal e Processual Penal e aprovada nos concursos para defensor público na Defensoria Pública do Estado do Mato Grosso e Defensoria Pública do Estado da Bahia.

Ana Luisa Imoleni Miola

Defensora Pública do Estado do Paraná

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Karine Azevedo Egypto; MIOLA, Ana Luisa Imoleni. Multiparentalidade: prevalência de interesses meramente patrimoniais?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5189, 15 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59183. Acesso em: 22 nov. 2024.

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