Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Principais discussões na doutrina e na jurisprudência sobre os tratados de direitos humanos de conteúdo trabalhista

Exibindo página 1 de 2
Agenda 26/11/2004 às 00:00

A questão é o conflito entre normas internacionais de direitos humanos e normas internas, que se renova com os recentes desdobramentos do DIP e das novas propostas de reforma constitucional, como é o caso da PEC nº 29.

Sumário: Apresentação / 1. Tratados de Direitos Humanos de Conteúdo Trabalhista / 2. Conflitos entre os Tratados Internacionais Trabalhistas de Cunho Humanitário e a Constituição Federal


Apresentação

            Este pequeno ensaio visa a expor ao leitor uma questão que representa, hoje, um debate de ponta no direito. A questão é o conflito entre normas internacionais de conteúdo de direitos humanos e normas internas.

            Na verdade, este estudo é antigo, mas se renova com os recentes desdobramentos do DIP e das novas propostas de reforma constitucional, como é o caso da PEC nº 29, que ora tramita no Congresso Nacional (* ver nota de atualização).

            Este artigo vai trazer o entendimento da doutrina e da jurisprudência, bem como as discussões existentes em ambas sobre o tema e demonstrar em que medida os tratados internacionais podem afetar a vida do cidadão brasileiro na sua conduta mais cotidiana, como, por exemplo, quando ele adquire um veículo pelo sistema de leasing.


1. Tratados de Direitos Humanos de Conteúdo Trabalhista

            Cumpre, em princípio, esclarecer que, em razão da natureza dos direitos trabalhistas, muitos tratados internacionais que possuem conteúdo de direito do trabalho acabam apresentando também elementos de direitos humanos que os aproxima de uma outra categoria de tratados, inclusive deslocando os estudos para um outro campo do direito internacional, os direitos humanos internacionais (1). Com efeito, o conceito de direito do trabalho tem sido associado a um outro campo do direito, os direitos humanos, cuja conceituação depende, à luz do pensamento de Celso Lafer, de uma digressão histórica (2). Orlando Gomes assevera que "(...) a construção teórica de um sistema jurídico bem estruturado exige a identificação de um instituto-chave, de um conceito fundamental em torno do qual gravitavam, como num sistema planetário, todos os demais institutos afins" (3). Este instituto-chave sobre o qual Orlando Gomes se refere é o trabalho humano subordinado; pois, segue o autor dizendo que (4): "O sujeito da relação emprega não só as suas energias físicas, que não são por si mesmas um objeto descartável do ente humano, mas ainda investe a própria pessoa humana, como fonte permanente da qual emanam aquelas energias." (5). Daí decorre o caráter unitário do direito trabalhista que, todavia, se bifurca nos ramos do direito coletivo e do direito individual onde, naquele, prevalece a categoria e neste, o sujeito, que é o trabalhador.

            Nos direitos individuais, o direito trabalhista visa a garantir a satisfação dos interesses do trabalhador como pessoa e nos direitos coletivos, como bem assinala Antônio Álvares da Silva: "(...) o tipo de relação jurídica também é diferente: naquele, obrigações de ordem contratual; neste um conteúdo mais favorável que se interpõe nos contratos de trabalho." (6).

            Muitos autores têm pensado sobre a relação entre os direitos humanos e o direito trabalhista. Em "Considerações sobre os Direitos dos Trabalhadores na Declaração Universal dos Direitos Humanos", são analisados os efeitos da globalização nas relações trabalhistas, ao se afirmar que: "A flexibilização da produção e do mercado de trabalho tem um lado correspondente na esfera jurídica. Flexibilizam-se também as regras trabalhistas." (7). Entende a autora, ademais, que alguns direitos sociais podem ser inclusos no rol dos direitos humanos e assevera que os direitos humanos, elencados na Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU, devem ser interpretados em um sentido mais amplo, garantindo-se, assim, um rol mais extenso de direitos protegidos por esta Carta. Nesta esteira, há quem sustente, inclusive, a relação entre direitos humanos e direito do trabalhador agrário, demonstrando que a política agrária deve estar à égide da tutela absoluta dos direitos humanos. Para melhor exemplificar esta correlação, basta trazer à colação uma passagem de um trabalho sobre o tema:

            Portanto, defendemos a postura dos direitos humanos no campo, estendendo nossa preocupação desde a defesa da vida até a defesa da terra e do ambiente para que, na comunidade agrária, se efetive o verdadeiro desenvolvimento sustentável, onde o trinômio ensinado pelo saudoso prof. Fernando Sodero: Homem, Terra e Trabalho se consolide com dignidade na implementação dos direitos humanos e na construção da cidadania rural. (8)

            Atualmente, a doutrina que versa sobre direito internacional do trabalho não deixa de apreciar os efeitos da globalização para as relações de trabalho. É uma análise da correlação entre globalização e direito trabalhista. É bem verdade que, dependendo da opção política do doutrinador, a flexibilização das relações de trabalho, como conseqüência da globalização, é, às vezes, bem-vista ou mau-vista. Alguns são expressamente críticos quanto aos efeitos nocivos da flexibilização no direito trabalhista ao asseverar que a globalização traz (9): "(...) o aumento do desemprego"; e, mais: "(...) o fenômeno da globalização, aliado à tentativa de flexibilização dos direitos trabalhistas afeta o exercício do direito ao trabalho." (10).

            Assim, há uma pertinente associação entre globalização, relações trabalhistas, direitos trabalhistas e direitos humanos. Ora, pela leitura dos autores supra citados, é unânime o entendimento no qual a globalização levando à flexibilização do trabalho faz emergir um direito trabalhista com feições globalizadas, um direito trabalhista com menos ingerência do poder público. Se assim tem sido entendido, então, a sugestão que tem sido aceita é aquela de garantir um status privilegiado aos direitos trabalhistas alçando-os à categoria de direitos humanos.

            Considerando tais circunstâncias, tem-se asseverado que: "Diante de tais fatos, necessário se faz um contínuo e atento processo de observação e intervenção do Direito, para conservar o mínimo ético de garantias para o trabalhador, condizentes com sua dignidade humana." (11). Este mínimo ético pode ser entendido dentro do conceito de mínimo existencial, tão brilhantemente comentado pelo professor Ricardo Lobo Torres. Este entendimento é reafirmado por outros autores que asseveram que: "Sem a garantia do efetivo exercício do direito ao trabalho, incluindo-se o direito à justa remuneração e proteção social, não há como garantir um mínimo de dignidade ao ser humano." (12). Ou, ainda, como bem lhe define André Ramos: "Por direitos humanos entendo um conjunto mínimo de direitos necessários para assegurar uma vida do ser humano baseada na liberdade e na dignidade." (13). Mais uma vez, há a associação entre um mínimo de garantias trabalhistas e a dignidade humana.

            De acordo com o novo dimensionamento do Direito Internacional do Trabalho, que considera a relação entre os direitos humanos e os direitos trabalhistas, hoje já se fala em um direito humano social-trabalhista consubstanciado em alguns direitos naturais do homem que estão acima do próprio direito positivo (14).

            Em suma, os direitos trabalhistas, não apenas os individuais, mas alguns dos direitos sociais, devem ser entendidos como categorias de direitos humanos e merecem o mesmo tratamento metodológico que é dispensado a estes. Nesse entender, os tratados internacionais de natureza trabalhista devem também ser analisados à luz da problemática dos direitos humanos, sobremaneira, quanto a sua hierarquia no ordenamento jurídico interno, o que será a seguir estudado.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

2. Conflitos entre os Tratados Internacionais Trabalhistas de Cunho Humanitário e a Constituição Federal

            Existe, atualmente, uma discussão bastante fecunda, posto que responsável pela produção de inúmeros trabalhos acadêmicos, acerca da hierarquia que os tratados internacionais de conteúdo de direitos humanos ocupam no ordenamento jurídico interno brasileiro. Como foi ressaltado no tópico anterior, muitos dos tratados trabalhistas, incluindo-se os oriundos da OIT, podem apresentar conteúdo de direitos humanos e, se assim o for, acabam por receber um tratamento diferenciado dos demais tratados internacionais. Isto já é pacífico na doutrina pátria e internacional (15).

            Cumpre dizer que um tratado de origem, por exemplo, na OIT, que seria um típico tratado trabalhista, pode possuir cláusulas de direitos humanos. Não é necessário que o inteiro teor do tratado seja alçado à categorização de direitos humanos. É muito comum nestes tratados que os direitos humanos estejam positivados em apenas um título, uma seção, ou mesmo um artigo. E, neste caso, apenas aquela parte do tratado, e não o inteiro teor do tratado, terá uma hermenêutica especial. É esta interpretação diferenciada das cláusulas de direitos humanos nos tratados de direitos trabalhistas que neste tópico será analisada.

            Para iniciar este estudo não se pode deixar de citar um hard case cuja menção é sine qua non para qualquer estudo sobre hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos. Trata-se do Pacto São José da Costa Rica (16).

            É teor do inciso LXVII, art. 5º, CRFB, a impossibilidade de prisão civil por dívidas, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. Ocorre, todavia, que a norma constitucional conflitaria com disposição do Pacto de São José da Costa Rica, este proibindo qualquer prisão cível por dívida, possibilitando apenas a prisão do inadimplente da pensão alimentícia. A título de ilustração, vale apresentar abaixo o teor do Acórdão que definiu tal querela:

            Aplicando o entendimento firmado pelo STF no sentido da constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel nos casos de alienação fiduciária em garantia (DL 911/69, art. 4º), a Turma indeferiu habeas corpus impetrado contra acórdão do STJ em que se sustentava a derrogação do DL 911/69 em face do art. 7º, item 7, do Pacto de São José da Costa Rica ("Ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar"). Acrescentou-se, ainda, que o mencionado Pacto, dada a sua natureza infraconstitucional, não pode afastar as exceções à prisão civil por dívida que foram diretamente impostas pela CF, a qual prevê expressamente, e independentemente de regulamentação infraconstitucional, a possibilidade de prisão civil do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel (CF, art. 5º, LXVII). Precedente citado: HC 72.131-RJ (17)

            Sobre o Acórdão acima, deve-se esclarecer que não mais subsistem dúvidas quanto a esta questão; o teor do Acórdão acima transcrito já foi pacificado na jurisprudência brasileira, malgrado as críticas de autores monistas radicais que asseveram que deveria, sim, prevalecer o dispositivo do Pacto internacional e, portanto, vedada a prisão cível por dívida, em respeito à norma internacional, ou seja, ao direito internacional.

            Em princípio, deve-se organizar os debates sobre o tema. Um deles é sobre a edição de normas infraconstitucionais que restringem a liberdade com base no LXVII, art. 5º, da CRF. Neste caso, alguns autores argúem que estas normas (Decreto 911/69, por exemplo) estariam revogadas pela entrada em vigor do Decreto 678/92, já que lhes seria posterior. Outro ponto é a da aplicabilidade do § 2º, art. 5º, da CRFB, pelo qual o Pacto São José da Costa Rica teria hierarquia de norma constitucional. Não só o Pacto, mas qualquer outro tratado de direitos humanos, ou mesmo outro tratado qualquer que possuísse cláusula de direitos humanos.

            São muitos os julgados sobre a mesma matéria, ou seja, a aplicação do Pacto São José da Costa Rica para impedir a prisão cível do depositário infiel; todavia, existem algumas considerações importantes que ainda podem ser feitas. Neste sentido deve-se mencionar o RE 249.970-RS (18) que confirma a unanimidade no posicionamento da jurisprudência e traz, inclusive, considerações conceituais sobre institutos de direito civil. Este Recurso Especial versa sobre a prisão civil do devedor fiduciante, nas condições previstas pelo Decreto nº 911/69, reveste-se de plena legitimidade constitucional e não transgride o sistema de proteção instituído pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). O Recuso Especial nº 249.970 foi interposto em face de um Acórdão que dizia valer o Pacto São José da Costa Rica, portanto, vedada a prisão civil por dívida. O Acórdão, ora impugnado por este Recurso Especial, diverge da orientação jurisprudencial firmada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, que, ao julgar o HC 72.131-RJ, que teve por Relator o Min. Moreira Alves, decidiu que se reveste de plena legitimidade constitucional o Decreto nº 911/69, que autoriza a prisão civil do devedor fiduciante, se este, sem justa causa, deixa de entregar ao credor o bem alienado fiduciariamente em garantia ou, então, a importância equivalente em dinheiro (19).

            Baseia-se a jurisprudência no fato de a vedação da prisão civil por dívida, no sistema jurídico brasileiro, possuir extração constitucional. A Lei Fundamental, ao estabelecer as bases do regime que define a liberdade individual, consagra, em tema de prisão civil por dívida, uma tradição republicana, que, iniciada pela Constituição de 1934 (art. 113, nº 30), tem sido observada, com uma única exceção, a da Carta de 1937, pelos sucessivos documentos constitucionais brasileiros (CF/46, art. 141, § 32; CF/67, art. 150, § 17; CF/69, art. 153, § 17). A Constituição de 1988, seguindo esta tradição, dispõe, em seu art. 5º, LXVII, que "Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel".

            O STF tem reafirmado que o § 2º, art. 5º, da CRFB, qualifica-se como típica norma revestida de eficácia contida ou restringível, eis que, em função de seu próprio conteúdo material, contempla a possibilidade de o legislador comum limitar o alcance da vedação constitucional pertinente à prisão civil, autorizando-o a excepcionar a cláusula proibitória em duas únicas hipóteses: (a) inadimplemento de obrigação alimentar e (b) infidelidade depositária.

            Assim, o art. 5º, LXVII é um preceito constitucional definido como norma de eficácia contida, como bem ensina José Afonso da Silva (20) e Maria Helena Diniz (21). Sendo uma norma de eficácia contida, há a possibilidade jurídica de o Congresso Nacional instituir a prisão civil nos casos de infidelidade depositária e de inadimplemento da pensão alimentícia, de acordo com a Constituição. A delegação normativa não poderia e nem deveria expor-se a mecanismos de limitação fixados em sede de tratados internacionais, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, por meio do Pacto de São José da Costa Rica. Este constitui, na verdade, um instrumento normativo destinado a desempenhar um papel de extrema relevância no âmbito do sistema interamericano de proteção aos direitos básicos da pessoa humana, qualificando-se,por este prisma, como peça complementar no processo de tutela das liberdades públicas fundamentais. E, ao dispor sobre o estatuto jurídico da liberdade pessoal, prescreve, em seu art. 7º, nº 7, que "Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar".

            É inquestionável, dentro do sistema jurídico brasileiro, que a normatividade emergente dos tratados internacionais permite situar tais atos de direito internacional público, no que concerne à hierarquia das fontes, no mesmo plano e grau de eficácia em que se posicionam as leis internas de caráter meramente ordinário, como reconhece a ampla jurisprudência do STF (22), reforçada pela doutrina majoritária (23). Ressalta o STF em seus julgados que inexiste, tomando por base o atual texto constitucional, qualquer precedência ou primazia hierárquico-normativa dos tratados do tipo normativo ou convenções internacionais sobre a Constituição brasileira. Com efeito, o DIP não se superpõe, em hipótese alguma, ao que prescreve a Lei Fundamental da República Brasileira. Daí se justificar que a cláusula inscrita no art. 7º, nº 7, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto São José da Costa Rica - não vincularia o legislador constituinte, que sempre poderá dispor em sentido contrário no próprio texto da Constituição.

            Reconhecendo, portanto, a necessária submissão hierárquico-normativa dos tratados internacionais à ordem jurídica subordinante, consubstanciada na Constituição Federal (24), impõe-se acentuar, neste ponto, que não há como interpretar a cláusula inscrita no art. 5º, § 2º, da CRFB, com um sentido exegético que condicione, ou que iniba, ou, até mesmo, que excepcionalmente impossibilite o Congresso Nacional de exercer, em plenitude, as típicas funções institucionais que lhe foram deferidas pelo documento constitucional, especialmente quando este outorga ao Poder Legislativo expressa autorização para disciplinar e instituir a prisão civil relativamente ao depositário infiel. Assim tem se posicionado a doutrina pátria, reafirmada pelo posicionamento do STF (25).

            Assevera a Egrégia Corte, até com certa razão, que a ordem constitucional vigente no Brasil não pode sofrer interpretação que conduza ao reconhecimento de que o Estado brasileiro, mediante convenção internacional, ter-se-ia interditado a possibilidade de exercer, no plano interno, a competência institucional que lhe foi outorgada expressamente pela própria Constituição da República. Complementam dizendo que os tratados internacionais não podem transgredir a normatividade emergente da Constituição, pois, além de não disporem de autoridade para restringir a eficácia jurídica das cláusulas constitucionais, não possuem força para conter ou para delimitar a esfera de abrangência normativa dos preceitos inscritos no texto da Lei Fundamental (26).

            Outra questão é a da hierarquia do Pacto São José da costa Rica no ordenamento jurídico brasileiro; se teria status de Constituição ou de lei infra-constitucional. Deve-se ressaltar que na Argentina, a sua Constituição de 1853, no texto emendado pela Reforma Constitucional de 1994, em seu art. 75, nº 22, estabelece hierarquia aos tratados celebrados em matéria de direitos humanos sobre a própria Constituição argentina (27); aliás, é exatamente esta discrepância entre os sistemas de recepção das normas internacionais que, segundo alguns analistas internacionais, pode vir a dificultar as relações comunitárias no âmbito do MERCOSUL, mormente porque não há prognósticos de uma harmonização jurídica para a área em matéria de conflito de normas (28).

            O STF tem decidido pela não-aplicabilidade do §2º, art. 5º, da CRFB, e mantido a regra esculpida no LXVII, do art 5º. Este é o posicionamento da jurisprudência brasileira, contraditado pela doutrina majoritária.

            Divergente, portanto, do posicionamento adotado pelo Egrégio Tribunal, é a doutrina, ao asseverar que as cláusulas de direitos humanos contidas nos tratados internacionais devem ser interpretadas à luz do art. 5º, §2º, da CRFB. Por este prisma, entende a maior parte da doutrina que estas cláusulas de direitos humanos teriam aplicação, posto que possuiriam, pela interpretação do §2º, art. 5º, hierarquia de norma constitucional, vindo a se sobrepor ao LXVII, art. 5º, da CRFB.

            Neste debate, cumpre esclarecer alguns pontos. Primeiro, a doutrina majoritária entende, assim como o STF, que os tratados, não importa seu conteúdo, devem se submeter ao processo de internalização: "(...) não se pode concluir a priori pela desnecessidade da internalização dos tratados de direitos humanos para incorporá-los ao direito interno, o que levaria à conclusão de que seríamos monistas quanto a esta matéria específica." (29). São isolados aqueles que entendem que os tratados internacionais de direitos humanos teriam aplicação imediata na ordem jurídica interna brasileira. Segundo ponto é a hierarquia que estes tratados de conteúdo de direitos humanos, ou aqueles que possuam cláusulas de direitos humanos, tal qual ocorre com os tratados da OIT, ocupariam na pirâmide jurídica brasileira. Neste ponto, sim, há uma clássica controvérsia. Como foi demonstrado acima, ao se analisar o Pacto São José da Costa Rica, o STF tem entendido que tratados de direitos humanos ou aqueles que contenham cláusulas deste gênero não têm o condão de se sobrepor à Constituição, como se uma Emenda fossem; divergentemente, entende a doutrina majoritária, quando apela pela aplicação do §2º, art. 5º, da CRFB. Por este dispositivo, estas cláusulas contidas nos tratados internacionais, devidamente internalizados, seriam capazes de emendar a Constituição no que estas lhe fossem contrárias (30).

            Alguns autores que representam esta corrente devem ser mencionados: Celso de Albuquerque Mello (31), Cançado Trindade (32), André Ramos (33), Guilherme Assis de Almeida (34), Flávia Piovesan (35), Celso Lafer (36) e Nádia de Araújo (37), dentre outros tantos doutrinadores e acadêmicos. O entendimento desta corrente pode ser resumido abaixo;

            (...) os tratados de direitos humanos dos quais o Brasil faz parte podem ser considerados como incluídos no catálogo dos direitos constitucionalmente protegidos, incorporando-se ao texto da Carta Maior, com natureza de norma constitucional. Portanto, em caso de conflito, devem prevalecer sobre toda norma que possa restringi-los. (38)

            Complementa Flávia Piovesan que esta prevalência dos tratados internacionais, em matéria de direitos humanos, sobre as demais normas internas, inclusive a Constituição, pode ser sustentada por um tipo de interpretação sistemática e teológica do texto (39). Chama atenção a brilhante doutrinadora para os possíveis cenários que podem surgir pela internalização no Brasil dos tratados internacionais de direitos humanos, ou, como já fora explicado anteriormente, dos tratados em matéria trabalhista com cláusulas de direitos humanos (40).

            Primeiro poderia coincidir com o direito assegurado pela Constituição e, neste caso, não haveria nenhum problema, pois:

            A reprodução de disposições de tratados internacionais de direitos humanos na ordem jurídica brasileira reflete não apenas o fato do legislador nacional buscar orientação e inspiração nesse instrumental, mas ainda revela a preocupação do legislador em equacionar o Direito interno de modo a que se ajuste, com harmonia e consonância, às obrigações internacionalmente assumidas pelo Estado brasileiro.Neste caso, os tratados internacionais de direitos humanos estarão a reforçar o valor jurídico de direitos constitucionalmente assegurados, de forma que eventual violação do direito importará não apenas uma responsabilização nacional, mas também em responsabilização internacional. (41)

            Segundo cenário ocorreria se os tratados em direitos humanos integrassem, complementassem e ampliassem o universo de direitos constitucionalmente previstos. Explica Piovesan que os tratados complementariam as normas constitucionais na medida em que estariam desenvolvendo o conteúdo da norma constitucional (42).

            Por fim, um terceiro cenário descrito por Piovesan, seria o caso de os tratados de direitos humanos contrariarem o direito interno brasileiro (43). Ora, se os tratados contrariarem normas infraconstitucionais, o STF tem solucionado este conflito pela aplicação de regras como a later in time. O problema maior seria se contrariassem a Constituição. Neste caso, Flávia Piovesan sugere que se aplique a regra que for mais benéfica ao destinatário, independentemente se se tratar de um Decreto, oriundo de um tratado internacional, ou mesmo da Constituição brasileira: "Em outras palavras, a primazia é da norma que melhor proteja, em cada caso os direitos da pessoa humana." (44); e segue dizendo que: " A escolha da norma mais benéfica ao indivíduo é tarefa que caberá fundamentalmente aos Tribunais nacionais e a outros órgãos aplicadores do direito, no sentido de assegurar a melhor proteção possível ao ser humano." (45).

            Outro expoente desta corrente doutrinária é Cançado Trindade que vem defendendo este posicionamento há muito tempo, como ele próprio faz lembrar: "A tese que sustento, como o venho fazendo já por mais de vinte anos em meus escritos é resumo, no sentido de que (...)" (46). Também pensam da mesma forma Celso de Albuquerque Mello (47) e Luiz Ximenes Rocha (48).

            Desta forma, há uma divergência entre o posicionamento da jurisprudência e da doutrina, quando se discute a respeito da aplicabilidade dos tratados internacionais com cláusula de direitos humanos em face da Constituição brasileira. E não se pode esquecer que a própria jurisprudência apresenta divergências (49).

            Como fora acima observado, o STF firmou entendimento no sentido da superioridade da Constituição Federal sobre os tratados internacionais de direitos humanos e o STJ, contrariamente, tem entendido que se deva aplicar a norma mais favorável à pessoa, no caso, o Pacto São José da Costa Rica, mesmo em detrimento de expresso dispositivo constitucional em contrário, por força da aplicação do §2º, art. 5º, CRFB. Com isso, confirma-se a discussão sobre o tema que parece render muitos trabalhos acadêmicos.

Sobre a autora
Mariangela Ariosi

Sou tabeliã e registradora no interior do estado de São Paulo. Carioca, fiz meus estudos no RJ; mestrado em Direito na UERJ. Cursei o doutorado em Direito na USP, sem concluir a Tese, interrompido pois estava estudando para vários concursos, todos na área de cartório. Cursei algumas Pós na área cartorária e atualmente me preparo para retornar e concluir o doutorado. Também , fui professora de Direito durante quase 20 anos em algumas universidades do RJ como UCAM, São José, Castelo Branco e UNIRIO, dentre outras. Atualmente continuo estudando e escrevendo sobre temas afetos às atividades cartorárias. Estou a sua disposição para conversarmos sobre esses temas e trocar informações.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARIOSI, Mariangela. Principais discussões na doutrina e na jurisprudência sobre os tratados de direitos humanos de conteúdo trabalhista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 507, 26 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5947. Acesso em: 15 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!