3. A multa e a efetividade do ressarcimento na forma específica
Quem sofre dano tem direito ao ressarcimento. Até aí tudo é óbvio. Acontece que o dano abre ensejo para o ressarcimento na forma específica ou pelo equivalente em dinheiro. Quando o ressarcimento na forma específica não é possível, deve ser ele postulado pelo equivalente. Porém, quando qualquer das formas de ressarcimento pode ser pedida, o lesado pode escolher entre o ressarcimento na forma específica e o ressarcimento pelo equivalente.
Se o lesado tem direito de optar entre o ressarcimento na forma específica e o ressarcimento pelo equivalente, o réu não pode contestar dizendo que deveria ter sido preferido o ressarcimento pelo equivalente, a menos que possa invocar "excessiva onerosidade", ou que o ressarcimento na forma específica, em uma perspectiva patrimonial e de eficiência econômica, justifica o pagamento de dinheiro.
A idéia de ressarcimento pelo equivalente deita raízes na falsa suposição de que o dinheiro tudo pode apagar. Por uma questão de lógica e de racionalidade, o dano deve ser reparado na forma específica. É por esse motivo que já o CC de 1916 estabelecia a prioridade do ressarcimento na forma específica sobre o ressarcimento pelo equivalente, e Pontes de Miranda, ao tratar do tema, era enfático: "o pedido pode dirigir-se à restauração em natura, e somente quando haja dificuldade extrema ou impossibilidade de se restaurar em natura é que, em lugar disso, se há de exigir a indenização em dinheiro". 21
Se isso é absolutamente evidente, alguém pode não se conformar com o fato de que, na prática forense, não são apresentados pedidos de ressarcimento na forma específica. Não é difícil explicar. Embora no plano do direito material esteja estabelecida, há bastante tempo, a prioridade do ressarcimento na forma específica sobre o ressarcimento pelo equivalente, o CPC de 1973 praticamente inviabilizou o pedido de ressarcimento na forma específica, ao conferir-lhe uma forma procedimental completamente inadequada e inefetiva.
A sentença que impõe o ressarcimento na forma específica obriga o demandado a fazer ou a entregar coisa em substituição à destruída. Porém, antes da introdução do art. 461. no CPC - e para restringirmos, por enquanto, o problema ao ressarcimento na forma específica que exige um fazer – se a sentença condenatória não fosse cumprida, teria que ser proposta ação de execução para que terceiro fizesse o que deveria ter sido feito pelo condenado (art. 634, CPC). E o que é pior, o credor teria que adiantar ao terceiro os valores estabelecidos para a consecução do fazer (art. 634, §7º, CPC).
Ora, se o titular do direito ao ressarcimento na forma específica, mesmo depois de passados dois ou três anos da ação condenatória, é obrigado a propor ação de execução, submeter-se a uma demorada e complicada concorrência pública para a escolha do terceiro prestador do fazer, e ainda pagar os seus custos para, apenas mais tarde, poder cobrá-los do devedor - por meio da execução por expropriação -, não há vantagem alguma em propor ação com pedido de ressarcimento na forma específica.
Como é fácil perceber, é muito mais vantajoso, tempestivo e efetivo providenciar a reparação sem processo jurisdicional e depois cobrar o valor do seu custo por meio de ressarcimento pelo equivalente. A dificuldade apenas realmente surgiria quando o lesado não tivesse condições financeiras para adiantar as despesas para a reparação.
O CPC de 1973, ao criar técnica processual completamente incapaz de propiciar a efetividade do ressarcimento na forma específica, simplesmente mutilou o direito material, eliminando a prioridade lógica do direito ao ressarcimento na forma específica sobre o ressarcimento em dinheiro, especialmente em casos como o do direito ambiental, que, segundo a própria Constituição Federal (art. 225), deve ser preservado paras as presentes e futuras gerações.
Mas não cabe à doutrina e aos juízes ficarem olhando para tal mutilação. Se há dever de interpretar a norma processual à luz do direito material e do direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional, o atual sistema processual deve ser lido de modo a conduzir à efetividade do direito ao ressarcimento na forma específica, que somente assim deixará de ser mera proclamação retórica.
O obrigado a reparar é, antes de tudo, obrigado a fazer ou obrigado a entregar coisa, e não obrigado a pagar. Como visto, foi o CPC que transformou a obrigação de reparar em obrigação de pagar. Sendo assim, e se as normas dos arts. 461. e 461-A do CPC apenas instituem técnicas processuais para a imposição do fazer e da entrega de coisa, mas podem viabilizar diferentes tutelas, é óbvio que a tutela ressarcitória na forma específica pode ser prestada por meio dessas normas.
O art. 461. permite que o juiz ordene, sob pena de multa, um fazer fungível. De modo que, se o réu tem capacidade técnica para prestar o fazer, não há razão para não utilizar a multa como forma de dar efetividade ao ressarcimento.
Problema maior surge quando o demandado não possui capacidade técnica para prestar o fazer e, assim, esse tiver que ser prestado por terceiro. Porém, mesmo nesse caso o réu continuará obrigado a reparar o dano. O fato de o réu não ter capacidade técnica obviamente não extingue sua obrigação de reparar o dano. Portanto, não há racionalidade em isentar o réu do dever de arcar com as despesas para o ressarcimento na forma específica, obrigando a vítima a adiantá-las. Ora, entendendo-se que o titular do direito ao ressarcimento somente pode executar por meio de expropriação o inadimplente da obrigação de custear o valor da reparação, restam estabelecidas as conseqüências de que a vítima deve pagar para obter a reparação e que o condenado pode deixar de adimplir as despesas necessárias para tanto. Tais conseqüências implicam na conclusão de que a ação de ressarcimento na forma específica, nesse caso, não teria muita utilidade.
Na verdade, toda essa distorção decorre da suposição de que o obrigado a reparar na forma específica passa a ter obrigação de pagar simplesmente por não ter capacidade técnica para fazer. Trata-se, entretanto, de grande equívoco. Se é pedido ressarcimento na forma específica, é absurdo pretender transformar esse direito em dinheiro. Ou melhor: o direito ao ressarcimento na forma específica não é extinto pelo motivo do infrator não ter condições técnicas de prestá-lo.
Perceba-se que o dever de ressarcir não pode ser equiparado, no que aqui importa, à obrigação contratual de fazer. Se é certo que, quando a prestação contratual não pode mais ser cumprida pelo devedor, ela deve ser convertida em dinheiro, é evidente que essa lógica é estranha ao dever de reparar o dano, até porque não cabe perguntar se o autor do dano tem capacidade técnica para repará-lo – e, nesse sentido, se ele pode se obrigar a fazer para mais tarde poder ser compelido a ressarcir na forma específica. Ou seja, se a obrigação de fazer se extingue diante da impossibilidade do cumprimento do contrato na forma específica, o dever de ressarcir não se desfaz apenas porque o infrator não possui capacidade técnica para reparar.
Se o direito ao ressarcimento na forma específica não é extinto em razão de o fato ter que ser prestado por terceiro – e isso seria ilógico e irracional -, o demandado continua obrigado a prestar ou a providenciar a reparação na forma específica. Note-se, aliás, que o entendimento de que o infrator deve apenas pagar, e não providenciar o ressarcimento na forma específica, ofenderia a idéia de que o ressarcimento na forma específica é a forma idealizada pelo direito material.
Pois bem, do fato de que o infrator não tem seu dever de ressarcir extinto pelo motivo de o fazer ter que ser prestado por terceiro, decorre a conseqüência natural de que o processo deve ser hábil para compelir o autor do ilícito a custear a reparação do dano. E aí importa, mais que nunca, o uso da multa como meio de compelir o demandado a cumprir a sentença.
Nessa linha, a multa deve ser utilizada para obrigar o infrator a pagar as custas da reparação. Nada mais justo e de acordo com a idéia de que o juiz não pode assistir à transformação dos direitos em pecúnia.
Imagine-se, por exemplo, dano ambiental de grande proporção, quando o legitimado à ação coletiva tem o direito de pedir ressarcimento na forma específica. Suponha-se, ainda, que, proferida sentença determinando o ressarcimento na forma específica, deva ser prestado fazer de alto custo por terceiro especializado. Teria lógica admitir que o agressor do meio ambiente pode, após determinação judicial, cruzar os braços, obrigando o autor da ação a custear a reparação? Note-se que, nessas situações, é absurdo imaginar que o autor possa ter condições de arcar com as despesas necessárias para a reparação. Isso significa que a ausência de meio executivo capaz de obrigar o agressor a custear o fazer pode implicar na impossibilidade de se dar efetividade ao próprio direito ambiental. É por isso que não temos dúvida em admitir que, nesses casos, o autor pode pedir ressarcimento na forma específica com base no art. 84. do CDC, requerendo fazer sob pena de multa.
Deixe-se claro: a obrigação de indenizar não pode ser confundida com a de custear o ressarcimento na forma específica. A indenização constitui resposta a uma opção de forma de ressarcimento (o ressarcimento pelo equivalente), enquanto que o pagamento das despesas relativas ao fazer é somente meio para a obtenção do ressarcimento na forma específica. A diferença entre resposta e meio permite concluir que a obrigação de indenizar responde ao direito ao ressarcimento pelo equivalente e que a obrigação de custear é simples meio para se responder ao direito ao ressarcimento na forma específica.
O reflexo dessa distinção está em que a obrigação de custear a reparação é mera obrigação acessória, ou melhor, obrigação instrumental à obrigação de ressarcir na forma específica. Por ser obrigação instrumental, o tempo da sua implementação deve ser condizente com a necessidade da realização da obrigação principal. Ora, a multa é o único meio executivo capaz de compelir o infrator a custear tempestivamente o fazer.
Não há sentido em obrigar o titular do direito ao ressarcimento na forma específica a cobrar do infrator, por meio da execução por expropriação, o valor despendido com a reparação. Isso seria o mesmo que concluir que o processo civil extinguiu o direito ao ressarcimento na forma específica.
A situação muda um pouco quando o infrator tem a obrigação de entregar coisa em substituição à destruída. Quando o infrator possui a coisa no seu patrimônio, basta a busca e apreensão. Entretanto, quando a coisa está em patrimônio alheio, certamente não há como pensar em busca e apreensão.
Mas se a obrigação é de reparar mediante a entrega de coisa, o fato de a coisa estar em patrimônio alheio ao do devedor não extingue sua obrigação. O infrator deve entregar a coisa, e não obrigar o titular do direito ao ressarcimento a retirar, via execução forçada, dinheiro do seu patrimônio, até porque isso seria admitir a transformação do direito ao ressarcimento na forma específica em direito à indenização.
Se é inquestionável o dever do infrator entregar a coisa, é inevitável perguntar como obrigá-lo a assim proceder. Não há como não admitir o emprego da multa. Tal conclusão encontra fundamento no direito ao ressarcimento na forma específica, no direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional, e na adequada interpretação do art. 461-A do CPC. Essa norma, como já foi dito, é apenas fonte de técnica de tutela, devendo ser lida à luz do direito material e da Constituição Federal.
4. O devedor que se diz inadimplente e os evidentes sinais de sua riqueza
Há casos em que o devedor não nomeia bens à penhora, o credor não consegue localizar bens penhoráveis, mas há sinais evidentes de que o devedor vive como uma pessoa que possui patrimônio. Trata-se da hipótese em que o devedor institui o que se chama de "testa de ferro", ou interposta pessoa como titular de patrimônio que é seu.
Nesse caso, o devedor, para escapar de sua responsabilidade, transfere o patrimônio para pessoa que não teve qualquer ligação com a dívida. Nos dias atuais, isso é lamentavelmente freqüente. Tal fato tem se tornado comum pela razão de que os maus devedores realmente acreditam que, procedendo dessa forma, ficam com os seus patrimônios imunes. Ou melhor: é a certeza de que o direito é incapaz de lidar com situações dessa espécie que estimula o devedor à fraude.
Se a doutrina e os juízes continuarem a fechar os olhos para essas situações, estarão colaborando não só para o descrédito no direito, como também para a desesperança em relação ao próprio Poder Judiciário.
É certo que é difícil descobrir que o devedor instituiu pessoa como titular de patrimônio que é seu. Porém, a dificuldade dessa prova não pode importar na inércia do judiciário ou na impossibilidade do credor investigar a real situação financeira do devedor. Isso seria tudo o que desejariam os que pretendem a fraude.
Se o devedor reside em casa sofisticada, dirige automóveis de luxo, ou mesmo se porta como proprietário da empresa de que afirma ser mero empregado, o credor deverá ter solicitado ao juiz requisição ao Banco Central a respeito de suas eventuais contas correntes ou aplicações em dinheiro. Porém, se ainda assim nada for encontrado, poderá ser requerido que o devedor justifique tais sinais de riqueza, sob pena de multa. Mantendo-se o devedor inerte, o direito de justificativa restará precluso, e assim caberá a ordem de pagamento sob pena de multa. Não ocorrendo o pagamento, a penhora poderá alcançar qualquer valor em dinheiro ou bem em nome do devedor, pouco importando se poderiam ser ditos impenhoráveis – antes de ter sido conferida a ele a possibilidade de justificar os sinais de sua aparente riqueza.
A multa, no caso, deverá ser fixada em valor expressivo, para que possa realmente intimidar o devedor. Não importa que a legislação processual não preveja a possibilidade do uso dessa multa, porém apenas autorize a do art. 601. do CPC. Essa multa está implícita no direito à efetividade da tutela jurisdicional e nos poderes de execução do juiz. Ora, se a multa e perda do direito à impenhorabilidade são as únicas saídas para obrigar o devedor a justificar o seu patrimônio ou a pagar, é evidente que o seu fundamento está na própria Constituição Federal, pouco importando se o legislador deixou de atuar. Como é evidente, não é porque o legislador se calou a respeito de técnica fundamental para a efetividade do exercício da jurisdição, que o juiz deverá assistir a deslegitimação do Poder ao qual pertence e possui o dever de fazer efetivo.