Indaga-se: a Súmula nº 555 do STJ representa um acerto ou um retrocesso na definição do termo inicial do prazo de decadência tributária, nos tributos sujeitos ao lançamento por homologação?
INTRODUÇÃO
No ano de 2017, estamos a comemorar 50 anos de vigência do Código Tributário Nacional (CTN), que dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados, Distrito Federal e Municípios. E ao longo desse período, um dos temas mais tortuosos e polêmicos enfrentados, pelos juristas e doutrinadores, foi o da decadência tributária.
O CTN disciplina em seu art. 156 todas as modalidades de extinção do crédito tributário, entre as quais as relacionadas ao aspecto temporal: decadência e prescrição (inciso V) e homologação tácita do lançamento (inciso VII).
Foram nítidas, nesses 50 anos de vigência do CTN, a evolução e modernização tanto da legislação tributária, dos procedimentos de fiscalização e auditoria dos agentes fiscais, assim como da jurisprudência de nossos tribunais, em especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que se refletiram diretamente na análise da decadência.
E é o que se observa, mais especificamente, quando se analisa a regra de contagem do prazo de decadência, nos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, ou seja, naqueles tributos em que o contribuinte é o responsável pela realização de todos os procedimentos de lançamento tributário sem qualquer prévio exame do Fisco, a exemplo dos impostos ICMS, IPI e Imposto de Renda, entre outros.
Nesse caminhar, buscando uma maior harmonia e estabilidade nas decisões proferidas pelos tribunais, o STJ definiu que o termo inicial do prazo de decadência, nos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, estaria condicionado à constatação de algum pagamento antecipado. Ou seja, o termo inicial seria:
(a) da data da ocorrência do fato gerador, nos termos do § 4º do art. 150 do CTN, se houver algum pagamento antecipado; e
(b) do primeiro dia do exercício seguinte, segundo o inciso I, do art. 173, do mesmo Código, se não constatado pagamento antecipado.
Esse entendimento já estava praticamente consolidado na doutrina, inclusive na jurisprudência do STJ, pelo dispositivo jurídico do Recurso Repetitivo, no REsp 973.753, de 2009.
Contudo, no final do ano de 2015, mais exato, no dia 15 de dezembro, com a publicação da Súmula nº 555[1] do STJ, houve uma verdadeira inovação - para alguns doutrinadores uma correção; para outros um retrocesso, - no estudo da decadência tributária.
Diante dos dizeres da Súmula nº 555 do STJ, indaga-se: ela representa um acerto ou um retrocesso na definição do termo de início do prazo de decadência tributária, nos tributos sujeitos ao lançamento por homologação?
2. A DECADÊNCIA TRIBUTÁRIA E O ATO DE LANÇAMENTO
Na área do Direito Tributário, decadência tributária é a extinção do direito de o Fisco constituir (lançar) o crédito tributário, ou seja, de formalizar a obrigação tributária, pela sua inércia continuada durante um determinado prazo definido em lei complementar.
É cediço que o direito não socorre aos que dormem, que se traduz no brocardo jurídico dormientibus non succurrit jus. E nesse sentido, a decadência tributária vem impedir que a Fisco, em razão de sua inércia, exerça, após determinado prazo, o direito de lançar, de ofício, o crédito tributário.
Nos termos do art. 142 do CTN, a constituição do crédito tributário dá-se pelo lançamento, que é um ato de competência privativa da autoridade administrativa, resultante de vários procedimentos administrativos. E para isso, o próprio CTN apresenta três modalidades de lançamento tributário, a saber: (a) o misto, também conhecido como por declaração, no qual o Fisco age com base nas informações prestadas pelo sujeito passivo (CTN, art. 147), tendo como exemplo o ITBI e ITCD; (b) o direto, ou de ofício, que é aquele efetuado pelo agente público competente, sem nenhum auxílio do sujeito passivo (CTN, art. 149), a exemplo do IPTU e IPVA; e, (c) o por homologação, em que o sujeito passivo realiza todos os procedimentos de lançamento, sem o prévio exame do Fisco, conforme prevê o art. 150 do CTN, a exemplo do ICMS e IPI.
No que se refere especificamente às hipóteses de lançamento de ofício, que estão descritas no art. 149 do CTN, a autoridade administrativa está limitada a um prazo de 5 anos, para constituir o crédito tributário, sob pena de ser extinto esse seu direito pela decadência. E a regra de contagem desse prazo decadencial, para a realização de todo e qualquer lançamento de ofício, está expressamente definida no CTN, nesses termos:
Art. 173. O DIREITO de a Fazenda Pública CONSTITUIR O CRÉDITO TRIBUTÁRIO extingue-se após 5 (cinco) anos, contados:
I - do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado; (...) (Grifamos)
Em outras palavras, independentemente da modalidade de lançamento a que o tributo esteja sujeito, se de ofício, por declaração ou por homologação, toda vez que a Fisco tiver que lançar de ofício, seja pela própria natureza do tributo (p. ex. IPTU ou IPVA), seja pelo descumprimento de deveres tributários pelo sujeito passivo (p. ex. eventuais diferenças ou omissões não declaradas de IPI, ICMS ou ISS), a regra para a contagem do prazo decadencial é, tão somente, a descrita no inciso I, do art. 173 do CTN, por se referir à extinção do DIREITO DE CONSTITUIR o crédito tributário, que ocorre pelo lançamento de ofício.
Porém, não obstante essa regra expressa no CTN, de contagem de prazo para o lançamento de ofício, grandes discussões e polêmicas sempre existiram sobre esse tema, quando estamos a tratar da modalidade de lançamento por homologação.
3. O LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO E A DECADÊNCIA
No lançamento por homologação, segundo prevê o art. 150 do CTN,[2] o contribuinte, ou responsável tributário, realiza todos os procedimentos de lançamento, previstos no art. 142 do CTN, além do pagamento antecipado, sem o prévio exame do Fisco.
E, ainda, no § 4º, do art. 150 do CTN, há uma regra de contagem de prazo extintivo para a homologação, nesses termos:
Art.150. (...)
§ 4º Se a lei não fixar prazo a homologação, será ele de cinco anos, A CONTAR DA OCORRÊNCIA DO FATO GERADOR; expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação. (grifamos)
Não obstante as várias correntes doutrinárias com entendimentos diversos,[3] defendemos que tanto o prazo descrito no inciso I do art. 173, quanto o estabelecido no § 4º do art. 150, do CTN, têm natureza decadencial, porquanto ambos têm o poder de extinguir direitos. Isto é: (a) o do art. 173, I, extingue o DIREITO DE CONSTITUIR o crédito tributário, nas modalidades de lançamento de ofício e por declaração; e, (b) o do art. 150, § 4º, extingue o DIREITO DE HOMOLOGAR expressamente os procedimentos de lançamento efetuados pelo sujeito passivo.[4]
Contudo, grande parte, da doutrina e da jurisprudência[5] de nossos tribunais, defendem que nos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, há uma regra especial disposta no art. 150, § 4º, em detrimento da regra geral do art. 173 do CTN, condicionando a aplicação de cada regra à existência ou não de um pagamento antecipado.
Nesse caminhar, o Fisco, ao constatar ou comprovar omissão ou inexatidão na escrita fiscal dos contribuintes de tributos sujeitos ao lançamento por homologação, é obrigado a realizar o lançamento de ofício, por meio de auto de infração, nos termos do art. 149, V, do CTN. E nessas hipóteses, parte da doutrina, e em especial a jurisprudência do STJ, firmou orientação de que, “nos casos de tributos sujeitos a lançamento por homologação, em que não ocorre pagamento antecipado, o prazo decadencial deve ser computado segundo as disposições do art. 173, I do CTN”.[6]
Assim, ficou condicionada a aplicação dos dispositivos constantes do art. 173, I, e do art. 150, § 4º, do CTN, à existência ou não de pagamento, com a seguinte assertiva: “se houver algum pagamento antecipado a regra de contagem do prazo é a do § 4º do art. 150 do CTN,” ou seja, a contar do fato gerador. Se não houver, a regra é a do art. 173, I, do CTN.
Esse entendimento estava praticamente consolidado, ao se buscar a estabilização da jurisprudência do STJ, pelo REsp 973.753, de 2009, sob o rito dos recursos repetitivos.
Já afirmamos[7] que nessa interpretação exarada levou-se em consideração apenas e tão somente a ocorrência de um dos procedimentos de lançamento do sujeito passivo - o pagamento antecipado-, desconsiderando por completo o direito que está sendo alcançado e extinto pela decadência, qual seja, se o DIREITO PARA CONSTITUIR O CRÉDITO ou o DIREITO PARA HOMOLOGAR, o que, com a devida vênia, nunca concordamos.
E da mesma forma, comungamos o entendimento de que a aplicação da regra de prazos extintivos, quando envolve tributos sujeitos ao lançamento por homologação, é determinada, não pela existência de pagamento antecipado, mas sim se há ou não entrega da DECLARAÇÃO pelo contribuinte, e/ou pela comprovação de omissões ou inexatidões na escrita fiscal, sempre observando o direito a ser atingido pelo instituto da decadência.[8]
Contudo, no final do ano de 2015, foi publicada a SÚMULA Nº 555, do STJ, que deu um entendimento completamente diverso do até então aceito e defendido, por esse segmento da doutrina e do STJ, uma verdadeira inovação, - para alguns doutrinadores uma correção; para outros um retrocesso, - no estudo da decadência tributária.
4. A SÚMULA 555 DO STJ E OS SEUS EQUÍVOCOS e ACERTOS
4.1 A Súmula 555
A Súmula nº 555,[9] do STJ, assim ementa:
QUANDO NÃO HOUVER DECLARAÇÃO DO DÉBITO, o prazo decadencial quinquenal para o Fisco constituir o crédito tributário conta-se exclusivamente na forma do art. 173, I, do CTN, nos casos em que a legislação atribui ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa. (grifos nossos)
Pelo enunciado dessa Súmula, o STJ ratificou o entendimento que defendemos até então, qual seja, o que determina a regra de contagem do prazo decadencial é a existência ou não de entrega da DECLARAÇÃO de débito pelo contribuinte ao Fisco. Ou seja, a aplicação da regra do prazo decadencial, quando envolve tributos sujeitos ao lançamento por homologação, é determinada, não pela existência de pagamento antecipado, mas sim se há ou não declaração do débito pelo contribuinte.
Novamente indagamos: a guerreada Súmula 555 seria realmente um retrocesso do nosso colendo Tribunal Superior, quanto à matéria de decadência? Analisemos os fatos e a mencionada Súmula.
Muitas críticas são lançadas contra a novel Súmula 555 do STJ, pois, segundo parte da doutrina, “longe de dirimir dúvidas, a nova Súmula marcha contra a estrutura das diferentes regras do CTN para a contagem da decadência, assim como contra a funcionalidade do lançamento tributário.”[10] Ou ainda, “a súmula sepulta o artigo 150, §4º do CTN, retirando-lhe todo e qualquer campo de incidência, (...), induzindo toda a jurisprudência, inclusive a do próprio STJ, ao erro grave de aplicar o artigo 173, I do CTN aos tributos sujeitos a lançamento por homologação, em toda e qualquer hipótese.”[11]
Há se enfatizar também que o STJ deixou de aplicar literalmente tudo o que há muito vinha defendendo, inclusive desconsiderou por completo os fundamentos constantes de todos os julgados precedentes,[12] que deram amparo à Súmula 555.
Há de se concordar que a Súmula, ao deixar de seguir todos os seus precedentes, foi um retrocesso, o que causa, num primeiro momento, grande insegurança jurídica a toda a sociedade jurídica. Porém, não obstante isso, temos a convicção de que ela foi um acerto e veio na direção de todo processo de modernização da legislação, dos procedimentos de fiscalização e auditoria fiscal e dos próprios julgados do STJ.
4.2 Um breve histórico da tese da “existência ou não de pagamento”
Para uma melhor compreensão da Súmula 555 do STJ, torna-se imperioso analisarmos a origem da tese “a existência ou não de pagamento antecipado” nos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, como definidora do prazo de decadência, e a evolução no Direito Tributário, no que se refere à legislação, aos procedimentos de fiscalização e auditoria fiscal, assim como aos próprios julgados do STJ.
1º. A tese da “existência de pagamento antecipado”, como definidora do termo inicial do prazo de decadência, a partir do fato gerador, começou a ser aplicada a partir da década de noventa, época em que a legislação tributária dos entes federativos exigia que o agente fiscal realizasse o lançamento de ofício para todo e qualquer tributo não recolhido, independentemente de ter sido lançado, escriturado, e/ou declarado ao Fisco.
Assim, caso um contribuinte de tributo sujeito ao lançamento por homologação, a exemplo do ICMS, deixasse de recolher algum débito tributário do que havia lançado nos livros fiscais e/ou declarado ao Fisco por meio das guias fiscais, o agente fiscal era obrigado a lançar de ofício a diferença (ou o todo) não paga, por meio de lavratura de auto de infração, constituindo o crédito tributário.
2º. Parte da doutrina e da jurisprudência do STJ, então, interpretando os dispositivos conjuntamente do CTN (arts. 173, I e 150, 4º), inauguraram o entendimento, de que o prazo decadencial, para a constituição do débito não pago antecipadamente (parte ou todo), estaria sujeito à regra do art. 150, § 4º do CTN, ou seja, a contar do fato gerador. E caso não houvesse nenhum pagamento antecipado, seria atraída a regra do art. 173, I, do CTN.
Partindo dessa situação fática, entendemos fazer sentido o acolhimento da mencionada tese da “existência ou não do pagamento antecipado,” como definidora do início do prazo decadencial, nos termos art. 150, § 4º, do CTN, em que é mais favorável ao contribuinte, porquanto: (a) o lançamento de ofício tinha como base tributos já escriturados e/ou declarados pelo contribuinte ao Fisco; (b) se referia à constituição de crédito tributário declarado, apenas não recolhido; e, (c) era possível haver pagamento antecipado de parte do tributo declarado, entre outros.
3º. Contudo, nos fins da década de noventa, com o advento da tecnologia, da era do livro eletrônico, e com a alteração das legislações tributárias, entre outros, houve mudanças substanciais nos procedimentos de lançamento e fiscalização/auditoria do Fisco. Ou seja, dispensou a lavratura de auto de infração de tributos não recolhidos, que tivessem sido lançados/escriturados nos livros fiscais e/ou declarados ao fisco. A partir de então, se o contribuinte escriturasse o tributo nos livros fiscais e/ou declarasse ao fisco, e não pagasse, não seria mais necessário lançar de ofício o crédito tributário.[13]
Nesse sentido, o próprio STJ, em 13 de maio de 2010, editou a Súmula 436,[14] com a seguinte ementa: "A entrega de declaração pelo contribuinte, reconhecendo o débito fiscal, constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do Fisco".
A partir de então, ao ser escriturado o tributo nos livros fiscais e/ou declarado ao Fisco, em não sendo pago (integral ou parcial), dispensou-se qualquer outra providência por parte do Fisco, a exemplo do lançamento de ofício, podendo ser inscrito de imediato o débito em dívida ativa, iniciando-se agora, a partir do recebimento da declaração, o prazo de prescrição, para sua ação de cobrança, nos termos do art. 174, do CTN.
4º. Com a então modernização da legislação tributária, o lançamento de ofício, por meio de auto de infração, somente será necessário, entre outros, quando o Fisco comprovar:
(a) omissão ou inexatidão no exercício das atividades de lançamento por homologação pelo sujeito passivo, nos termos do art. 149, V, do CTN; e
(b) que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação, segundo prescreve o art. 149, VII, do CTN.
Diante dessas duas hipóteses de lançamento de ofício, previstas no art. 149 do CTN, indaga-se: há possibilidades de o contribuinte efetuar algum pagamento antecipado? Não, não há, pois nada se escriturou ou declarou.
5º. Pode-se afirmar assim que somente é possível o contribuinte efetuar algum pagamento antecipado, ainda que irrisório, de tributo que tenha sido escriturado e/ou declarado ao Fisco. Isto é, não faz qualquer sentido, em um lançamento de ofício, fruto de uma omissão ou inexatidão na escrita fiscal, em que nada foi escriturado ou declarado, querer se alegar ou afirmar a presença de algum pagamento antecipado.
Simplesmente não existe o que pagar daquilo que não se escriturou ou declarou. E se declarado o tributo, e não pago, não há se falar em prazo decadencial, e sim prazo de prescrição, para sua cobrança, conforme já jurisprudência pacificada do STJ.
E foi nesse sentido que o Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais do Distrito Federal (TARF) se pronunciou em diversos julgados seus, inclusive com matéria já sumulada,[15] diga-se antes da edição da Súmula 555 do STJ, com o seguinte enunciado:
Súmula 06/2015. Na hipótese de lançamento de ofício, a regra relativa à contagem do prazo de decadência é a disposta no art. 173, I, do CTN, independentemente de ter ocorrido pagamento parcial anterior do imposto.