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Uma análise da tópica de Theodor Viehweg

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As elaborações teóricas de Theodor Viehweg têm como ponto de partida a insuficiência do racionalismo cartesiano para o tratamento de questões afetas ao domínio do aporético, no qual se insere o jurídico.

1. Introdução: o domínio do aporético e a insuficiência do cartesianismo dedutivista

As elaborações teóricas de Theodor Viehweg têm como ponto de partida a insuficiência do racionalismo cartesiano para o tratamento de questões afetas ao domínio do aporético, no qual se insere o jurídico. Concebe-se a aporia como questão dubitável, contingente, que admite mais de uma resposta e sobre a qual não é possível obter um conhecimento incontestável, claro e distinto. Contrapõe-se à apodexis, domínio da exatidão e da certeza, do necessário, próprio e.g. às ciências matemáticas, tomadas por Descartes como pano de fundo compreensivo sobre o qual travou suas reflexões.

Ora, não é difícil concluir que o agir humano, objeto de regulação do Direito, notabiliza-se pela impossibilidade de uma resposta universal e absolutamente correta, situando-se, por isso mesmo, nos lindes da aporia. Por evocarem problemas metafísicos, que escapam às dimensões cognitivas do sujeito transcendental, as ideias morais não podem ser conhecidas em si. As noções que delas possuem os indivíduos racionais permitem apenas a obtenção de uma compreensão aproximativa, calcada no agir cotidiano e concreto.

Logo, inviável a formulação exclusivamente balizada em um raciocínio axiomático-dedutivo, porquanto impossível a obtenção de um primum verum capaz de suportar uma perfeita e infalível cadeia dedutiva. O permanente caráter problemático de suas premissas impede seja o Direito, reino da aporia fundamental da justiça, estruturado à maneira axiomática como pensara Leibniz.

Assim, à vista de tais considerações, irrompem duas fronteiras possíveis para o jurista: ou se compreende que a decisão jurídica não admite tratamento racional, porque não enquadrável no esquema cartesiano antes exposto, ou se concebe uma nova estrutura para o saber jurídico, a qual logre lidar com as peculiaridades desta área do conhecimento. Viehweg, conforme se verá, perfilhou a segunda vereda, tendo desenvolvido sua “Tópica” a partir da alusão a Giambatistta Vico e da recuperação dos estudos aristotélicos e ciceronianos, em construção que será exposta a seguir.


2. A tópica como estrutura fundamental do pensamento jurídico: o foco no problema

A tópica é definida por Theodor Viehweg como “uma techné do pensamento que se orienta para o problema”. Trata-se de uma teoria da práxis, pensada pelo jusfilósofo como, a um só tempo, estrutura fundamental do saber jurídico e modelo descritivo da aplicação desse mesmo saber. Nas linhas que seguem, buscar-se-á explanar o sentido de tais afirmações.

Como asseverado, o Direito tem por objeto a resolução de questões afetas ao agir humano, isto é, à decisão hábil a determinar qual comportamento deve ser adotado em cada situação, impingindo-lhe, se for o caso, uma sanção. Tais questões qualificam-se como problemas, por inadmitirem uma resposta inequívoca tal qual a das ciências matemáticas, sendo a tópica o caminho possível na investigação da solução a tais imbróglios.   

O estilo de pensamento tópico pretende, pois, fornecer um modo de agir que se apresente como resposta a uma questão prática. Parte-se do problema, o qual, a partir da mirada pré-compreensiva do jurista, faz emergir uma série de pontos de vista, de lugares reflexivos, de razões de decidir, que recomendam a tomada de posição em um ou em outro sentido.

A esses elementos, Viehweg dá o nome de topoi, os quais consubstanciam premissas que são trazidas à compreensão do intérprete pela ars inveniendi, isto é, da reformulação adequada do problema dentro de dimensões significativas pressupostas, as quais, entendemos, são dadas pela linguagem e pela ambiência histórico-axiológica que lhe é imanente.

A decisão a ser adotada será, com efeito, a resultante do confronto dialético entre esses pontos de vista (topoi). Alinham-se os loci argumentativos favoráveis e contrários a cada uma das soluções possíveis e, de sua síntese, extrai-se a resposta a preponderar no caso concreto (problema), a qual, por evidente, será sempre aproximativa, eis que impossível o alcance da racionalidade absoluta nesse domínio.

Em suma, a tópica apresenta-se como um caminho que, partindo do problema (e não de um axioma, ou de uma premissa geral), extrai os pontos de vista que nortearão sua resolução, a qual emergirá do enfrentamento racional entre eles verificado. Com tais considerações, nota-se, desde logo, a conexão umbilical existente entre tópica e retórica. Isso porque a preponderância da decisão sustentada por alguns dentre os vários topoi manejados pelo jurista será dada no e pelo discurso.

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As regras de argumentação persuasiva, objeto da retórica, serão a instância possível de controle da racionalidade do discurso jurídico desencadeado a partir dos topoi. Daí porque defender-se, conforme será desenvolvido adiante, que a tópica pressupõe a dialógica e, com ela, uma teoria da argumentação jurídica que sustente sua pretensão de correção. Em tal panorama, insere-se, por evidente, a lógica formal, que exercerá um importante, porém não exclusivo, papel no momento posterior à ars inveniendi.


3. A mútua implicação entre problema e sistema: uma (re)definição da relação entre os dois termos

A reformulação adequada do problema, é dizer, o fato de ser apreendido pelo entendimento como tal, supõe um nexo compreensivo preexistente que confere sentido à questão e que dela faz exsurgir os pontos de vistas que orientarão o intérprete-aplicador na busca pela solução do caso. Noutras palavras: o problema só adquire sentido dentro de um sistema, no qual se ordena e a partir de cujo influxo encontra seus lugares comuns (topoi).

Todavia, a relação entre problema e sistema poderá assumir essencialmente duas feições, as quais se distinguirão, conforme Viehweg, pela cristalização de uma ou de outra dimensão. Sustenta o pensador que a fixação de um sistema, à maneira do que ocorre com o pensamento axiomático-dedutivo, que o constrói por derivação lógica de uma verdade fundamental e indubitável (primum verum), opera uma seleção de problemas.

Isto é, uma vez que se entenda que a única chave possível de resolução é dada por um só sistema, somente serão solúveis os problemas que se enquadrarem em suas cadeias de deduções e, considerada a impossibilidade de um sistema que abarque toda a riqueza do agir humano, existirão questões que não encontrarão formulação, sendo, portanto, desprezadas.

Noutro giro, se a ênfase é posta no problema, tem-se uma seleção de sistemas, de acordo com aquele(s) que contemple(m) os topoi adequados à sua solução. O problema opera, ele próprio, uma seleção sistemática, a qual não é, porém, unilateral, haja vista que sua significação provém de um arcabouço de pré-compreensões condicionantes de seus contornos, entendido, outrossim, como sistema, conquanto aberto e inacabado.

Com efeito, conclui Viehweg que a relação entre problema e sistema travada no cerne do fenômeno jurídico não pode ser da primeira espécie. A adoção de um sistema axiomático-dedutivo, abarcante de uma rígida concepção do todo e que seleciona e exclui problemas ex ante, não se coaduna com o Direito precisamente porque conduziria ao non liquet ou, em última análise, ao decisionismo velado, tal qual se processou sob os albores da Escola da Exegese. E mais: ter-se-ia que eliminar a interpretação, com a impossível fixação matemática do sentido dos vocábulos, em construção contrária à ontologia da compreensão.

Não há que se afirmar, contudo, que o pensador descarta ou exclui a noção de sistema de sua tópica, tanto pelo contrário. O sistema é realocado significativamente por Viehweg, merecendo uma construção fragmentária, aberta, que não veicule uma concepção de todo pronta e acabada. Nestes termos, se o modo de pensar aporético pressupõe um sistema no qual possa ser incluído o problema, entende-o, porém, como aquilo que as teorias posteriores designaram por sistema aberto.

É da fusão horizontal operada entre o plexo significativo parcialmente ofertado pelos sistemas jurídicos e o problema que assomarão os topoi conducentes à decisão, o que, apesar de não se verificar em um sistema axiomático-dedutivista próprio ao legalismo exegeta, fulgura com imensa nitidez nos atuais sistemas constitucionais de regras e princípios, tema que será retomado adiante.


4. Da tópica de primeiro grau à tópica de segundo grau: o desvelamento da jurisprudência e a tentação axiomático-subsuntiva

A descrição da passagem da tópica de primeiro grau à tópica de segundo grau é um dos trechos mais relevantes da obra de Theodor Viehweg. Vislumbra-se, em tal narrativa, uma pretensão não apenas construtiva do ilustre pensador, mas, primacialmente, descritiva de algo que, ao longo da história do pensamento jurídico, já se verificava nos umbrais de sua clareira.

A tópica de primeiro grau, praticada inconsciente e arbitrariamente nas soluções de questões práticas diuturnas, é trazida à fala pela apropriação precária de seus pontos de vista pelo intérprete que, em esforço revelador de suas pré-compreensões, elabora catálogos de topoi como que a desvelar as condicionantes significativas de seu entendimento.           

Desta feita, esclarece Viehweg que, na tópica de primeiro grau, ars inveniendi ocorre de modo implícito, vacilante. À vista de um problema, o indivíduo extrai, a partir de tentativas, os topoi casuais que arbitrariamente manejará para a solução da questão. Não obstante, a insegurança de tal proceder, aliada à tomada de consciência do processo decisório pelo sujeito, torna necessária a construção de um “repertório de pontos de vista já preparados de antemão”, um catálogo de topoi. Assim inaugura-se a tópica de segundo grau, definida como aquela que manipula inventários de tópicos já enfeixados anteriormente, explicitados em um elenco organizado ex ante.

A observação do ius civile romano foi o manancial em que Viehweg hauriu tais observações. A prudentia de Roma caracterizou-se pela solução casuística, prática, focada no problema, tal qual proposto pela tópica. A elaboração do Digesto de Juliano representa justamente a passagem à tópica de segundo grau, com a reunião de um catálogo de pontos de vista expressos em brocardos e narrativas de casos, o qual era fruto da aplicação do estilo de pensamento problemático e que, justamente por isso, permanecia em íntima conexão com as situações-problema de cuja solução emergira, não ostentando qualquer pretensão sistemático-dedutivista, mas apenas corporificando um repertório auxiliar do raciocínio.

Deveras, o jus civile romano era, em grande medida, infenso às positivações, e mesmo quando as encartou cuidou de toma-las em estrita vinculação com os problemas que buscava resolver, mantendo viva a tópica a partir da reinterpretação casuística de suas premissas.

Malgrado o exposto, a passagem à tópica de segundo grau traz consigo a perigosa tentação axiomático-dedutivista. Elaborado um catálogo de topoi, é grande o risco fomentado pela crença de que todos os problemas já se encontrariam resolvidos, eis que pretensamente descortinados todos os lugares de pensamento que determinariam sua superação. Intenta-se, por isso, converter aquele repertório burilado na práxis em um sistema axiomático-dedutivista, supostamente aplicável de imediato e sem matizações a todos casos. A ars inveniendi é suprimida e, com ela, o processo dialético que a sucede, substituído por uma cadeia subsuntiva que, ante uma hipótese fática quadrante à premissa maior, imputa-lhe uma necessária consequência jurídica.

Contudo, o jurista que assim procede não tarda a perceber seu malogro. É que a desvinculação funcional entre topoi e problemas culmina por criar uma fissura artificiosa entre o momento aplicativo e o momento interpretativo do Direito, os quais são ontologicamente coincidentes e simultâneos. Grandes consequências não se conciliam com os topoi, pois “a constante vinculação ao problema só permite deduções de curto alcance” (VIEHWEG, 1979, p. 41).

São, e devem ser, os fios condutores do pensamento, pensados sempre em mira ao problema cuja solução pretendem alinhavar, e frente ao qual adquirem sentido. As implicações decorrentes da adoção do procedimento subsuntivo expressam-se em progressiva inadequação das normas individuais, assim obtidas aos casos que pretendem regular. O mal-entendido se instaura e o Direito se depara com um déficit de normatividade, instalando-se sub-repticiamente o decisionismo que tanto se busca evitar.

A tentação axiomático-subsuntiva figura em variegados momentos na História do Direito, desnudando-se com nitidez nos períodos da Escola da Exegese e da Pandectística Alemã, que, apesar de partirem de fontes diversas (a primeira do Código Civil Napoleônico e a segunda do Corpus Juris Civilis justinianeu) defrontaram-se com idêntica perplexidade ao objetivarem a axiomatização do Direito.

Recentemente, aparece sob a realidade aplicativa das súmulas vinculantes, as quais, promanadas dos reiterados casos concretos que ensejaram sua elaboração, deles se desgarram, pretendendo aplicação por mera subsunção que, se não ressignificada pelos topoi do overruling e do distinguishing, conduzirá ao mesmo mal-entendido há mais de um século constatado.


5. A indissociabilidade entre topoi e problemas frente ao reclamo decisório: o Direito como um sistema aberto de regras e princípios

A permanente vinculação entre topoi e problemas traz, porém, relevante dificuldade no que concerne à seara jurídica, cujo principal imperativo é a decidibilidade. A premência de decidir não prescinde do estabelecimento de algumas vinculações, de um acordo comum entre os falantes que possibilite a busca de uma resposta aceitável e definitiva para o caso. Nesse diapasão, surge a seguinte indagação: é possível alcançar esse ponto de partida sem se eliminar a ars inveniendi, vale dizer, preservando o pensamento problemático?

À essa pergunta, Viehweg responde afirmativamente, ponderando que serão os catálogos de topoi empregados para a fixação deste “círculo de entendimento batizado pelo entendimento comum” (VIEHWEG, 1979, p. 41). Todavia, tais acordos somente podem se estabelecer em termos genéricos, sem intento exauriente, de modo a possibilitar os respiros necessários para a readequação aos novos e constantes problemas.

Nesse sentido, a técnica dos acordos incompletamente teorizados e dos conceitos essencialmente controvertidos, adotados pelas denominadas constituições abertas, serve precisamente ao aludido mister. Tais constituições, desenvolvidas sob o pálio do que denominou neoconstitucionalismo, caracterizam-se por requererem desenvolvimento ulterior, estabelecendo pontes comunicantes com outros sistemas sociais, representadas, com grande relevo, pelas normas-princípio. Seu desdobramento ocorre no contínuo processo de criação/aplicação em um ordenamento jurídico. Opõem-se a elas as designadas constituições fechadas, que privilegiam o modelo de regras, sendo executórias, definidoras e comportando parco ou nenhum desenvolvimento.

É, pois, a partir de um sistema aberto de regras e princípios que o dilema aparente entre a inegabilidade dos pontos de partida e a preservação do pensamento problemático se resolve. A tópica, que se poderia acreditar sepultada pela criação do direito positivo, ressurge com extremo vigor com a interpretação, lócus que revivifica a vinculação permanente com os problemas do aqui e do agora, possibilitando a (re)invenção de novos e atualizados topoi, condizentes com as mutáveis e hipercomplexas sociedades pós-modernas.

Ressalte-se, uma vez mais, que os pontos de partida (dogmas) estruturados em um sistema de direito positivo devem gozar de suficiente abertura, mormente tendo em vista a limitação e a instabilidade peculiares aos espaços consensuais passíveis de obtenção em sociedades plurais e conflitivas, como as que se verificam sob o pálio dos contemporâneos Estados Democráticos de Direito.

Lado outro, o pensamento tópico-problemático guiará todo o processo compreensivo, que principiará sempre do problema, encontrando na interpretação dos acordos incompletamente fixados os topoi que, na instância dialética, conduzirão à solução do caso.

Sobre o autor
Gladston Bethônico Bernardes Rocha Macedo

Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sendo Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACEDO, Gladston Bethônico Bernardes Rocha. Uma análise da tópica de Theodor Viehweg. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5153, 10 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59567. Acesso em: 22 dez. 2024.

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