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A ineficácia das reformas processuais diante do uso patológico do Poder Judiciário pelos chamados “litigantes habituais”

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Agenda 23/08/2017 às 09:22

6. Os Litigantes Habituais: o uso patológico do Poder Judiciário no Brasil

Não é possível falar-se em diminuição de processos a médio e longo prazos e em celeridade da prestação jurisdicional sem que se resolva, com prioridade, o problema gravíssimo da litigância habitual patológica no Brasil.

Ressalta-se que alguns poucos temas controvertidos, cuja solução se arrasta nos tribunais superiores, são objetos de milhares de processos em tramitação no Poder Judiciário, abarrotando todas as instâncias. São demandas repetitivas ou de massa que foram ajuizadas em face de poucos litigantes – os entes públicos em todas as esferas da federação, instituições financeiras e pessoas privadas prestadoras de serviços públicos. Trata-se do chamado litigante habitual.

A propósito, dentre os obstáculos a serem superados para se desobstruir o acesso efetivo à justiça célere e efetiva, Cappelletti e Garth incluem o que denominam ‘possibilidades das partes’, subdividida em: recursos financeiros; na aptidão para reconhecer um Direito e propor uma ação ou sua defesa; e na atuação dos litigantes ‘eventuais’ e litigantes ‘habituais’.

A classificação dos litigantes – eventuais e habituais – foi desenvolvida pelo pesquisador Marc Galanter, da Universidade de Wisconsin, utilizado como referencial teórico e de pesquisa por Cappelletti e Garth, e se baseia na frequência de encontros destes litigantes com o sistema judicial. Ou seja, no número de vezes que o litigante maneja o processo e submete seus interesses aos órgãos do Poder Judiciário. 

O estudo revelou inúmeras vantagens dos litigantes habituais, tais como: (I) maior experiência com o Direito que lhes possibilita melhor planejamento do litígio; (II) uso de economia de escala, consistente no uso de uma mesma estrutura para atender a um maior número de casos; (III) oportunidade de desenvolver relações informais com os membros da instância julgadora; (IV) diluição dos riscos da demanda por maior número de casos e (V) a possibilidade de testar estratégias em casos específicos de modo a garantir expectativa mais favorável nos casos futuros. 

A habitualidade do litigante demonstra de forma concomitante a presença daqueles outros dois aspectos: posse de recursos financeiros e aptidão para reconhecer um Direito e propor uma ação ou apresentar sua defesa. Os referidos autores concluem, a partir da classificação de Galanter, que essas vantagens próprias dos litigantes habituais lhes conferem maior eficiência e vantagem processual quando comparados com os litigantes individuais ou eventuais. 

De igual modo, na visão de Rodolfo Mancuso, os litigantes habituais são aqueles sujeitos que trabalham em economia de escala com os processos judiciais, possuem departamento jurídico próprio ou escritórios de advocacia estruturados para a gestão de conflitos de massa, com intuito de ganhar o maior tempo possível com a duração dos processos, correndo poucos riscos financeiros pelo resultado de demandas individuais. 

Eles podem diluir os riscos da demanda por maior número de casos, o que diminui o peso de cada derrota, que será eventualmente compensado por algumas vitórias. E também podem testar estratégias diferentes em determinados casos (de natureza material ou processual), de modo a criar precedentes favoráveis em pelo menos alguns deles, garantindo expectativa mais favorável em relação a casos futuros.

A existência do litigante habitual não é, em si, um mal. Em uma sociedade de massas é natural que existam as pessoas que, pelo risco da atividade e o papel que desempenham, tenham mais conflitos que outras, podendo, em última análise, causar a propositura de ações perante o Poder Judiciário. 

O que deve ser aferido é se o referido litigante habitual abusa de tal condição para se beneficiar da litigiosidade de massa e da morosidade do Sistema de Justiça. Essa situação parece ser o caso da Justiça no Brasil, já que esses litigantes habituais dificilmente alteram ou melhoram suas práticas administrativas em favor de outros cidadãos não beneficiários de julgamentos pelo Poder Judiciário. 

A propósito, em pesquisa divulgada, em 2011, a FGV Direito Rio revelou que os entes públicos, principalmente os federais, possuem participação em 90% dos recursos em tramitação no Supremo Tribunal Federal. Pela ordem, os maiores litigantes são: Caixa Econômica Federal, União, Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Estado de São Paulo, Banco Central do Brasil, Estado do Rio Grande do Sul, Município de São Paulo, Telemar, Banco do Brasil e Estado de Minas Gerais.

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O retrato da litigiosidade causada pelo Poder Público também é revelado pelo relatório do Conselho Nacional de Justiça sobre os “100 maiores litigantes”, mostrando que aproximadamente 39% dos processos novos em tramitação no Poder Judiciário envolvem os entes públicos e outros 37% envolvem as instituições financeiras. Ou seja, o setor público e os bancos respondem sozinhos por 76% dos processos em tramitação. 

Diante dos referidos números da pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça, o professor Marcelo Abelha afirma que a crise da demora da prestação jurisdicional deveria ser analisada sob ângulo diverso, respondendo-se algumas indagações críticas que apresenta. Sem os 15 maiores litigantes do país, qual seria o número de demandas em curso no Poder Judiciário? Haveria tal crise? Por que não desenvolver formas alternativas de solução de conflitos para esses 15 maiores litigantes? Por que para esses litigantes interessa que as suas lides desemboquem no Poder Judiciário? Por que para o Poder Público é melhor ser réu em juízo do que realizar políticas públicas efetivas e respeitar os direitos fundamentais? Por que não incentivar e aperfeiçoar a tutela jurisdicional dos interesses individuais homogêneos por meio de ações coletivas que já existem e se mostram adequadas à proteção dos litigantes eventuais? 

Para a juíza federal Priscila Corrêa, as pesquisas do Conselho Nacional de Justiça revelam que as causas mais significativas da morosidade do Poder Judiciário são o excesso de demandas provocado principalmente pela ineficiência do Poder Executivo em implementar direitos, deslocando para o Poder Judiciário muitos conflitos que deveriam e poderiam ser facilmente solucionados na instância administrativa, o que, nas suas palavras, demonstra o uso patológico dessa instituição pelo Poder Público. 

Assim, quando o Poder Executivo insiste em não aplicar os posicionamentos pacificados pelos tribunais superiores, levando milhares de pessoas naturais e jurídicas a ajuizar ações, em sua ampla maioria, de natureza individual, acarreta danos graves à eficiência do Poder Judiciário em razão da retroalimentação da litigiosidade e, por conseguinte, da morosidade processual. 

Priscila Corrêa sustenta, ainda, que haveria uma lógica econômica perversa que justifica a conduta dos litigantes habituais, sejam eles agentes privados ou públicos, de insistirem na utilização do Poder Judiciário, retroalimentando a litigiosidade. Os agentes privados possuem, na visão da referida jurista, uma verdadeira estratégia baseada em um cálculo racional que demonstra que os custos desta opção são inferiores aos ganhos obtidos, o que é evidente, pois, se não houvesse proveito econômico não estariam gastando para manter milhares de litígios judiciais.  

Vale dizer, é melhor para os grandes litigantes, sob a ótica financeira, manter sua postura e práticas adotadas extrajudicialmente do que adequá-las aos posicionamentos dos tribunais. 

A situação é mais complexa em relação à análise da postura do Poder Público. Os motivos que o levam a adotar a postura de litigante habitual são ainda, de certa forma, paradoxais. Isso porque a retroalimentação abusiva dos litígios pelo Poder Público acarreta consumo desnecessário de recursos pelo Poder Judiciário, o que é prejudicial ao próprio Estado a quem compete destinar os recursos orçamentários de manutenção e funcionamento do Sistema de Justiça. 

Não obstante o aumento dos gastos, o Poder Executivo não demonstra ter se incomodado com o desperdício de recursos públicos, mantendo sua postura reticente aos posicionamentos dos tribunais, contribuindo para o aumento crescente da litigiosidade. Essa situação levou Priscila Corrêa a considerar como motivação mais evidente para o uso patológico da Justiça a ânsia da utilização imediata dos recursos públicos por parte dos titulares dos mandatos políticos nos seus programas de governo. O uso do Poder Judiciário serviria, nesse contexto, como uma forma de postergação da saída dos recursos dos cofres públicos. 

Assim, quanto mais moroso for o processo melhor será para o Poder Executivo. Há de ser considerado, ainda, o fato de que o Executivo enxerga o Poder Judiciário como se não fosse parte do poder estatal e não utilizasse recursos públicos para gerir o seu funcionamento. 

No mesmo sentido é a crítica de Nelson Nery Jr:

A real efetividade do direito fundamental da CF 5º LXXVIII [a celeridade processual], pois, não depende apenas do Poder Judiciário e de seus juízes, mas principalmente dos Poderes Executivo e Legislativo e da mudança de mentalidade dos governantes e políticos, no sentido de cumprirem e fazerem cumprir a Constituição, evitando a judicialização das questões que os particulares têm de submeter ao Poder Judiciário por falha do poder público no exercício principalmente da função administrativa. 

O pior é que a postura dos entes públicos – principais litigantes habituais – permanece sem sanções efetivas ou medidas legislativas coerentes que pudessem mitigá-la. E o Ministério Público, instituição constitucionalmente incumbida de defender a ordem jurídica e o regime democrático, assiste indiferente à essa agressão do Estado de Direito. 

A título de exemplo, o CPC/2015, ao dispor sobre a fixação de multa por reiteração de recurso de embargos de declaração protelatórios (§3º do art. 1.026) ou de agravo interno manifestamente inadmissível ou improcedente (§§ 4º e 5º do art. 1021), permitiu que a Fazenda Pública – litigante habitual –  fizesse o pagamento ao final do processo, permitindo-se a utilização de artifícios para atrasar o andamento processual.  

É ainda mais evidente a fragilidade da novel legislação para coibir a litigância abusiva do Poder Público quando se depara com a ausência de eficácia vinculante erga omnes do sistema de precedentes criado pelo CPC/2015 de observância obrigatória apenas no âmbito do Poder Judiciário.   

O CPC/2015 instituiu um sistema de precedentes para conferir maior uniformidade, coerência, estabilidade e previsibilidade à jurisprudência. O seu art. 927 dispõe que os juízes e tribunais deverão observar nos julgados as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade, os enunciados de súmulas vinculantes, das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional, os acórdãos proferidos em incidentes de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e de julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos e, por fim, a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

Não vai restar uma matéria para ser decidida pelo juiz, qualquer colegiado de qualquer instância proferirá decisões vinculantes. Apenas as súmulas vinculantes e o julgamento do controle concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal deveriam vincular o magistrado. A fonte normativa desse efeito vinculante é a própria Constituição que estabelece, expressa e taxativamente, as hipóteses extraordinariamente vinculantes, com eficácia erga omnes, inclusive para a Administração Pública. As demais hipóteses da norma acima referida adquiriram eficácia vinculante por lei ordinária restrita apenas ao âmbito da estrutura hierárquica do Poder Judiciário, o que é inconstitucional. A temática, no entanto, é controversa, merecendo um estudo a parte. 

O que merece ser destacado para a pertinência da crítica ora apresentada é que o legislador ordinário não previu a eficácia vinculante dos referidos precedentes para o Poder Público, que, portanto, poderá continuar incentivando a litigiosidade a despeito de eventual posição pacificada no âmbito do Poder Judiciário. A litigiosidade habitual abusiva, a toda evidência, não foi combatida pela legislação. 

De maneira muito tímida e insuficiente, o inciso IV, do art. 1.040 do CPC/2015 previu, para os casos de recursos especial e extraordinário repetitivos que versarem sobre questão relativa a prestação de serviço público objeto de concessão, permissão ou autorização, que o resultado do julgamento será comunicado ao órgão, ao ente ou à agência reguladora competente para fiscalização da efetiva aplicação, por parte dos entes sujeitos a regulação, da tese adotada. A norma foi reproduzida no § 2º do art. 985 para o julgamento do incidente de resolução de demandas repetitivas.

Ou seja, a eficácia vinculante seria restrita aos particulares delegatários do serviço público que, embora também se enquadrem como litigantes habituais nas estatísticas do CNJ, não respondem pela maioria das ações em tramitação. 

É incompreensível a razão de não se conferir a mesma eficácia vinculativa para os entes públicos, constitucionalmente atrelados ao princípio da legalidade e demais litigantes habituais nas hipóteses de julgamentos de casos repetitivos ou de enunciados de súmula do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Interessa ao Poder Público modificar suas práticas administrativas em razão de precedentes judiciais? 

Luiz Guilherme Marinoni aponta, de forma crítica, que o excesso de processos e a morosidade da função jurisdicional são, por vezes, opção dos próprios detentores do poder. Segundo o referido processualista, 

(...) sabe-se que o próprio Estado, a quem cabe observar o princípio da eficiência da função jurisdicional (art. 37, caput, CR/88), não tem interesse em cumprir referido princípio e se vale da morosidade do Judiciário como expediente, sua marca registrada. A demora da jurisdição funciona como um obstáculo ao exercício, pelo cidadão, do direito constitucional de “acesso à jurisdição” e o Estado, contando com isso e mais preocupado em arrecadar e atender os compromissos econômico-financeiros internacionais, posterga o adimplemento de suas obrigações constitucionais. Nesse sentido é que se coloca a “lentidão” do Judiciário como uma opção, não daqueles que detém o poder, porque o poder é do povo e ao povo não interessa o mau funcionamento do serviço público jurisdicional, mas da figura estatal, que amiúde se beneficia dessa situação. 

Mesmo depois de todo o arcabouço legislativo e dos Pactos Republicanos firmados pela celeridade do Sistema de Justiça, o direito processual individual ou coletivo ainda não possui tratamento adequado e eficiente para coibir a atuação abusiva dos chamados litigantes habituais, que, não raras vezes, conforme mencionado, utilizam de forma patológica e abusiva o Poder Judiciário, permitindo a pulverização de demandas de idêntica natureza mesmo diante de posicionamentos contrários já firmados pelos tribunais. 

Ou seja, o CPC/2015 e as demais reformas legislativas não são suficientes para superar a complexa crise de morosidade que assola a justiça em proporções universais. O combate às graves deficiências da prestação jurisdicional há de ser travado no plano político-administrativo, que transcende a regulamentação legislativa e envolve a organização e gerenciamento dos serviços judiciários. Nesse terreno, entretanto, é completamente inócua a obra de renovação das leis processuais.

Sobre o autor
Daniel Carneiro Machado

Juiz Federal da 21ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais. Doutor em Direito Processual pela UFMG (2016) e Mestre em Direito Processual pela PUC Minas (2004). Professor titular do curso de graduação em direito do Centro Universitário Newton Paiva, em Belo Horizonte, além de professor de cursos de pós-graduação e preparação para concursos públicos na área jurídica. Ex-Advogado da União e ex-Procurador da Fazenda Nacional em Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Daniel Carneiro. A ineficácia das reformas processuais diante do uso patológico do Poder Judiciário pelos chamados “litigantes habituais”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5166, 23 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59960. Acesso em: 5 nov. 2024.

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