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A inconstitucionalidade da cisão dos julgamentos dos processos penais em crimes dolosos contra a vida cometidos em concursos de agentes

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Agenda 31/08/2017 às 15:02

6 ANÁLISE TEÓRICA DA DECISÃO DO STF NO HC 69325/GO

No caso da conexão intersubjetiva concursal e da continência é preciso uma análise crítica da decisão do Supremo Tribunal Federal no HC 69325/GO e do entendimento doutrinário dominante, diante do conflito de direitos fundamentais entre o Princípio da Isonomia e Uniformidade de Decisões Judiciais e a garantia do Tribunal do Júri, pois ambos os princípios são materialmente constitucionais e indispensáveis em um Estado Democrático de Direito e, a garantia do Tribunal do Júri, embora formalmente constitucional, não o é materialmente, consubstanciando apenas numa opção legislativa.

A distinção de normas formalmente constitucionais e materialmente constitucionais é trazida pelo jurista Pedro Lenza que descreve um trecho do livro de José Afonso da Silva dissertando sobre o pensamento de Carl Schmitt afirmando que esse distinguia Constituição de lei constitucional, seria Constituição somente o que se refere à decisão política fundamental (estrutura e órgãos do Estado, direitos individuais, vida democrática etc), ou seja, são as normas que são materialmente constitucionais, assim sendo as que possuem conteúdo constitucional. Leis constitucionais seriam os demais artigos das Constituição, mas que não contêm matéria de decisão política fundamental. Veja:

Na lição de Carl Schimitt, encontramos o sentido político, que distingue Constituição de lei constitucional. Constituição, conforme pondera José Afonso da Silva ao apresentar o pensamento de Schmitt, “...só se refere à decisão política fundamental (estrutura e órgãos do Estado, direitos individuais, vida democrática etc.); as leis constitucionais seriam os demais dispositivos inseridos no texto do documento constitucional, mas não contém matéria de decisão política fundamental”. (LENZA, 2012, p. 73)

Afora a questão acima delineada, a alegação de que a Constituição não trata da conexão e que em razão disso deva prevalecer a garantia constitucional do Tribunal do Júri não é suficiente, pois embora a Carta Magna realmente nada disponha sobre a conexão ou continência não caberia a ela dispor sobre essa matéria.

A Constituição deve tratar das matérias fundamentais em um Estado Democrático de Direito assim, não cabe a Carta Maior dispor sobre regras processuais de conexão e continência e, o simples fato de não constar do texto constitucional tais regras, não impõe por via de consequência a sua vedação.

A afirmação do jurista Tourinho Filho de que cabe a Constituição dispor sobre regras de conexão e continência, sob o fundamento de que a Constituição de 1946, no seu art. 119, VII, e a Emenda Constitucional no 1/69, no seu art. 137, VII, diziam competir à Justiça Eleitoral o processo e julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhe fossem conexos, embora verdadeiras do ponto de vista histórico não nos parece a mais correta do ponto de vista jurídico, pois por via de consequência teria de se entender que, de fato, caberia a Constituição dispor que o Colégio Pedro II seria mantido na órbita federal, ou seja, o simples fato de Constituições anteriores disporem sobre regras de conexão não impõe por via de consequência que caberia a Constituição dispor de tais regras.

As regras processuais de definição da competência por conexão ou continência possuem respaldo constitucional em dois grandes princípios da Isonomia e o da Uniformidade das Decisões Judiciais e tais regras são meios de efetivação de tais princípios. Assim também entende o jurista Eugênio Pacelli, embora em outro ponto de sua obra concorde com a decisão do STF no HC 69325/GO. Veja:

Na hipótese do art. 77, I, a reunião de processos para unificação do julgamento é absolutamente indispensável, como meio de impedir a divergência judicial sobre um único e mesmo fato criminoso, funcionando, então como meio estratégia de controle da efetividade e eficácia da jurisdição penal. Nesse passo, o expediente da unidade de processo e de julgamento assume dimensão não só jurisdicional, mas até de política criminal, sem falar no princípio geral da igualdade com que devem ser tratados todos os cidadãos. (PACELLI, 2015, p. 286)

O Princípio da Uniformidade das Decisões Judiciais é um princípio implícito da Constituição Federal de 1988, que pode ser extraído do princípio da Isonomia, na atualidade com o novo Código de Processo Civil o referido princípio teve respaldo legal no art. 926 do referido código que impõe que os tribunais zelem pela uniformidade das suas decisões.

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A Declaração Universal dos Direitos Humanos no seu art. 10, também consagrou expressamente o direito à plena igualdade aos acusados no processo penal. Veja:

Art. 10. Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. (art.10º, Declaração Universal dos Direitos Humanos)

As regras de conexão e continência são um dos meios de efetivação do Princípio da Uniformidade das Decisões, evitando a existência de juízos contraditórios sobre um mesmo fato, proferidos por magistrados diversos, assim já entendia Francesco Carnelutti, veja um excerto retirado da sua obra:

Não só se obtém uma economia, enquanto as mesmas provas e as mesmas razões servem para a declaração de certeza de cada delito conexo evitando inúteis repetições, mas também, e o que importa mais, o beneficio se estende à certeza, enquanto se evita também o perigo, que de outra maneira poderia produzir, de juízos contraditórios; prejudicaria, verdadeiramente, à justiça penal que sobre os delitos conexos diversos juízes pronunciariam juízos que se encontram em contraste lógico um com o outro. (CARNELUTTI apud MELENDO, p. 324, tradução nossa[1]).

A hermenêutica constitucional impõe que se dê a máxima efetividade aos direitos fundamentais sendo, portanto, uma imposição constitucional que se dê interpretação extensiva aos dispositivos ali previstos, especialmente quando garantidores dos direitos fundamentais da Isonomia e da Uniformidade das Decisões Judiciais. Assim define José Gomes Canotilho o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais:

É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da atualidade das normas programáticas (THOMA), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferi-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais. (CANOTILHO, 1993, p. 227)           

A leitura desenvolvida pela jurisprudência e doutrina dominante analisou a questão de um prisma diverso, porém a análise ora desenvolvida se pautará por uma solução que considere o ordenamento jurídico como um sistema e analisando as razões pelas quais foram instituídas as regras da conexão e continência que na essência possuem respaldo constitucional.

Cabe acrescentar que não existe qualquer vedação que se utilize da interpretação extensiva em matéria processual penal, pois o art. 3º do CPP admite expressamente a interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais do direito.

A interpretação extensiva consiste em uma interpretação ampliativa do conteúdo da lei por parte do aplicador do direito, quando a norma diz menos do que deveria dizer para obter o sentido que melhor efetive os princípios constitucionais, pouco importando se para beneficiar ou prejudicar o réu. Veja a lição de Guilherme de Souza Nucci, sobre a matéria:

O Código de Processo Penal admite, expressamente, que haja interpretação extensiva, pouco importando se para beneficiar ou prejudicar o réu, o mesmo valendo no tocante à analogia. Pode-se, pois, concluir que, admitido o mais – que é a analogia –, cabe também a aplicação da interpretação analógica, que é o menos. Interpretação é o processo lógico para estabelecer o sentido e a vontade da lei. A interpretação extensiva é a ampliação do conteúdo da lei, efetivada pelo aplicador do direito, quando a norma disse menos do que deveria. Tem por fim dar-lhe sentido razoável, conforme os motivos para os quais foi criada. (NUCCI, 2016, p. 42)

Assim sendo, no presente caso a interpretação extensiva da competência por prerrogativa de função a aqueles agentes que em concurso de pessoas hajam praticados crimes dolosos contra a vida, nos casos de continência e conexão intersubjetiva concursal é necessária para a garantia dos Princípios da Isonomia e da Uniformidade das Decisões Judiciais.

No Estado Democrático de Direito é inconcebível que duas pessoas acusadas da prática de uma mesma infração penal possam ser tratadas desigualmente nos que concerne aos seus meios de defesa.

A cisão dos processos nos casos de continência e conexão intersubjetiva concursal imporia a uns dos agentes o julgamento por um conselho de sentença formado por leigos em que o acusado é condenado ou absolvido, em regra, por discursos apaixonados, onde não se busca dos jurados um conhecimento técnico do direito e, que vigora o princípio da íntima convicção, de duvidosa constitucionalidade.

Em contrapartida, ao agente que possua foro por prerrogativa de função se imporia um julgamento extremamente técnico, sendo julgado por tribunais onde vigora o princípio do livre convencimento motivado. Em caso de continência, respeitado o princípio da isonomia, como um Estado Democrático de Direito pode admitir tamanha disparidade de tratamento?

Afora a questão acima exposta, existe outra que diz respeito à ofensa no princípio da Isonomia, consagrado expressamente no art. 10 da Declaração Universal dos Direitos Humanos que garante a plena igualdade entre os acusados no processo penal, pois o indivíduo que fosse submetido ao julgamento pelo Tribunal do Júri teria, ao menos em tese, possibilidade de utilização do recurso em sentido estrito, apelação, recurso especial e extraordinário, ou seja, um rol de recursos muito mais amplo do que aquele julgado pelos tribunais superiores.

A tese de que foi a própria Constituição que definiu um tratamento desigual aos detentores de certos cargos não parte de uma premissa verdadeira, pois esse tratamento fora estabelecido como um modo de preservar o exercício da função independentemente do agente que a exerça, visando atribuir a essas autoridades que possuam foro privilegiado maior autonomia no exercício das suas funções, ou seja, em benefício de tais agentes, então não existem fundamentos para que tais pessoas possam ter um rol de meios de defesas processuais inferiores aos dos que possuem os outros agentes acusados da prática da mesma infração penal. Veja o ensinamento de Eugênio Pacelli: 

Tendo em vista a relevância de determinados cargos ou funções públicas, cuidou o constituinte brasileiro de fixar foros privativos para o processo e julgamento de infrações penais praticadas pelos seus ocupantes, atentando-se para as graves implicações políticas que poderiam resultar das respectivas decisões judiciais. (PACELLI, 2015, p. 203-204) 

Ante todo o exposto, um Estado que se denomine democrático de direito deve respeitar o princípio fundamental da Uniformidade das Decisões Judiciais, sendo inconcebível que dois indivíduos acusados pelo mesmo fato, possam ter proferido contra si decisões divergentes e, conforme relatado acima, devido às inúmeras particularidades nos julgamentos no procedimento do Tribunal do Júri e o de um tribunal singular, existe grande probabilidade de decisões conflitantes, sobre um único e mesmo fato, acabando por violar tão importante princípio.

Há ainda uma importante questão: se, por exemplo, o agente que goze de foro privilegiado fosse julgado primeiramente e condenado, alguém em sã consciência diria que os jurados ousariam discordar sobre a existência do fato?

Assim sendo, a defesa do agente, submetido ao julgamento pelo Tribunal do Júri, apenas restaria provar que o seu cliente não participou da empreitada criminosa para buscar a absolvição do mesmo e, tal situação acabaria por violar dois direitos fundamentais o da ampla defesa, inerente a todo e qualquer processo judicial e administrativo e, o da plenitude da defesa específico do procedimento do Tribunal do Júri.

Sobre o autor
Sanges Morais

Advogado militante; Graduado em Direito pela PUC MINAS; Pós-graduando em Direito Penal pela Faculdade Internacional Signorelli; Pós-graduando em Direito Processual pela PUC MINAS; Destaque Acadêmico PUC MINAS curso de Direito 2º semestre 2012; Destaque Acadêmico PUC MINAS curso de Direito 1º semestre 2013; Destaque Acadêmico PUC MINAS curso de Direito 1º semestre 2014; Destaque Acadêmico PUC MINAS curso de Direito 2º semestre 2014; Estagiário na Turma Recursal dos Juizados Especial Federal.

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O motivo da escolha do tema é devido a superficialidade com que o mesmo é tratado nos manuais de processo penal e pela jurisprudência.

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