Resumo: O texto propõe interpretação sistemática das novas regras sobre fraude à execução no Código de Processo Civil de 2015, conciliando-as com as normas relativas à teoria geral da prova e a boa-fé processual. Com base nessa interpretação, conclui-se ser do terceiro adquirente, e não do credor, o ônus da prova da boa-fé, podendo dele se desincumbir aquele que comprove a adoção das cautelas mínimas à negociação imobiliária. Trata-se de entendimento que atende ao direito fundamental à tutela executiva e resguarda a autoridade das decisões do Poder Judiciário.
INTRODUÇÃO
“Resgatar a crença no judiciário e tornar realidade a promessa constitucional de uma justiça pronta e célere”. Esta frase, escrita pelo Ministro Luiz Fux, em mensagem endereçada ao presidente do senado e aos integrantes da comissão de Juristas no Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, representa bem o móvel da criação do Código de Processo Civil de 2015. O cenário de estigma do Poder Judiciário, que conduziu o seu desprestígio a índices alarmantes de insatisfação, desafiou a comissão e vale como bússola ao interprete da lei[1].
O presente artigo se propõe a tratar da alienação de bens imóveis em fraude à execução, no contexto do Código de Processo Civil de 2015. O enfoque está na prova da boa fé do terceiro adquirente, propondo-se interpretação das novas regras de forma sistemática e com os olhos voltados aos desafios que a comissão de juristas buscou enfrentar.
Primeiramente, busca-se analisar as duas principais práticas contrárias a boa-fé na execução - a fraude contra credores e a fraude à execução -, passando, em breves linhas, por seus conceitos, características e pressupostos. Quer-se, em seguida, adentrar o tema da fraude à execução no Código de Processo Civil de 2015, perpassando as hipóteses previstas em lei e suas novidades.
O propósito é interpretar, a partir das regras de distribuição do ônus da prova, a quem incumbe provar a boa-fé do terceiro adquirente de bem em fraude à execução. A alienação de bens em fraude à execução é tema antigo, mas a definição dos requisitos necessários a sua caracterização ainda é controversa[2] e desperta interesse não apenas da área jurídica, mas da sociedade de um modo geral. Por essa razão, demanda enfrentamento, sobretudo diante do advento do Código de Processo Civil de 2015.
FRAUDE CONTRA CREDORES E FRAUDE À EXECUÇÃO
O princípio da atuação conforme a boa-fé fundamenta a proibição do exercício de posições jurídicas processuais inadmissíveis, as quais configuram “abuso do direito” processual, tornando ilícitas condutas movidas pela má-fé[3]. Na execução, é comum se assistir a prática de atos contrários à boa-fé, sendo necessário um rígido sistema de combate às ações fraudulentas.
O legislador brasileiro criou um sistema de controle da disponibilidade de bens do devedor, sem lhe privar da livre administração e circulação deles. Limitou o âmbito de negociação de bens do devedor, reprimindo atos que causem prejuízo a seus credores quando o devedor se torna insolvente, qualificando tais atos como fraudulentos[4]. É difícil, contudo, definir com precisão as fronteiras do negócio idôneo do fraudulento, o que demanda uma incursão no pensamento e desejo do devedor[5].
O ordenamento coíbe a alteração artificial do patrimônio, tipificando duas modalidades de fraude: i) a fraude contra credores, prevista nos artigos 158 a 165 da lei civil; e ii) a fraude contra a execução, tratada no art. 792 do Código de Processo Civil de 2015.
A FRAUDE CONTRA CREDORES
A fraude contra credores é instituto de direito material, regulamentado pelo Código Civil, revelando grande interesse para o direito processual, pois pode gerar efeitos na execução.
Consiste em um ato de disposição do bem ou direito que agrava o estado de insolvência do devedor na pendência de uma obrigação ainda insatisfeita. É uma manobra do devedor para se esquivar de suas dívidas, por meio da redução de seu patrimônio, tornando-se insolvente. Ocorre, a título exemplificativo, por meio de alienação de bens de pais para filhos; com a venda a preço irrisório e fictamente para um terceiro – “laranja”; com a renúncia à herança. Pode ser unilateral ou bilateral, oneroso ou gratuito.
Exige para sua configuração dois pressupostos: um, objetivo, a exigência de redução patrimonial que conduza a insolvência – eventus damni; outro, subjetivo, a ciência do devedor de causar dano (consilium fraudis), sendo dispensada a presença da intenção direta de prejudicar credores[6]. Marcos Bernardes de Mello dispensa o consilium fraudis, exigindo apenas a scientia fraudis pelo terceiro, a existência de elementos que demonstrem ter o terceiro conhecimento da fraude[7].
Quem contrai uma obrigação tem o dever de saber que não pode reduzir seu patrimônio de modo a tornar-se insolvente, motivo pelo qual a má fé do alienante devedor é presumida, cabendo ser examinada apenas em relação ao terceiro adquirente[8]. A leitura do art. 159 do Código Civil também indica bastar o conhecimento pelo terceiro, sendo prescindível apurar sua intenção[9]. O ônus da prova da fraude incumbe, a princípio, ao credor por força da norma que atribui, como regra, ao autor da demanda o dever de comprovar os fatos constitutivos de seu direito, podendo o juiz, no caso concreto, imputar o ônus da prova a quem tiver mais facilidade para dele se desincumbir. Mas, se o ato fraudulento for gratuito, haverá presunção absoluta de fraude e má fé, nos termos do art. 158 do Código Civil em prol do credor, não tendo ele mais o ônus de provar a má-fé.
Para invalidar o negócio jurídico fraudulento, é preciso ajuizar ação própria, a chamada ação pauliana, cuja legitimidade ativa é do credor prejudicado de crédito exigível e com tal condição desde a época da alienação fraudulenta.
Quanto à natureza do ato fraudulento e seu plano de incidência, Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga, Rafael Oliveira e Leonardo da Cunha defendem tratar-se de ineficácia e não de invalidade, invocando para tanto, a teoria do fato jurídico[10]. É o entendimento mais coerente, já que o ato é válido, preenche a todos os requisitos de validade quanto à licitude do objeto, capacidade das partes e a forma prescrita ou não defesa em lei, não produzindo efeitos, contudo, no que toca ao credor prejudicado.
Os atos jurídicos fraudulentos consistem em atos de disposição que, mesmo intrinsecamente perfeitos e válidos, não terão a eficácia de impedir que o bem seja executado pelo credor prejudicado[11]. Adotado esse raciocínio, o resultado obtido com a ação pauliana só aproveitaria aquele credor que a promoveu, por que a sentença não anularia o ato, mas apenas reconheceria sua ineficácia perante o autor[12]. A posição adotada pelo legislador, contudo, é de invalidade por vício social.
FRAUDE À EXECUÇÃO
A fraude de execução consiste na alienação fraudulenta de bens do devedor na pendência de um processo capaz de reduzi-lo à insolvência, sem manter a propriedade de bens suficientes para adimplir o débito que possui com o credor[13]. Trata-se de especialização da fraude contra credores, instituto típico do direito brasileiro, pois no direito comparado não há normas especiais referentes à fraude à execução como instituto autônomo, reservando o assunto ao direito material[14].
A fraude a execução não compromete apenas a esfera de interesses particulares do credor, mas atenta contra o estado ao interferir diretamente na efetividade da prestação jurisdicional. O tema assume importância institucional de preservação da eficácia e autoridade das decisões do Poder Judiciário.[15] Logo, é enfrentado com mais rigor pelo ordenamento que considera a alienação fraudulenta ineficaz em relação ao credor independentemente de ação própria e a caracteriza como ato atentatório a dignidade da justiça e conduta tipificada como crime no art. 179 do Código Penal. O “comtemp of court” é instrumento coercitivo mais eficaz e atípico da execução, segundo Michele Taruffo[16].
Os atos de disposição jurídica realizados em fraude à execução opera o efeito desejado de retirar o bem do patrimônio do devedor e passá-lo ao terceiro adquirente, que se torna efetivamente seu proprietário, não havendo qualquer nulidade. Não se opera, contudo, o efeito de subtrair o bem da responsabilidade patrimonial pelas obrigações daquele que o vendeu, com a consequência de que o adquirente deve arcar com o ônus da execução a ser realizada[17]. O juiz declarará a fraude nos autos da execução, limitando-se a analisar se já havia processo em curso na data da transação e a inexistência de outros bens penhoráveis[18].
PRESSUPOSTOS DA FRAUDE À EXECUÇÃO
Em doutrina, costuma-se afirmar que a caracterização da fraude à execução exige três requisitos: a pendência de demanda contra o devedor, a frustração do meio executório e a ciência do terceiro adquirente[19]. Questionava-se a necessidade, como quarto pressuposto, do registro da penhora, mas a partir da Lei 10.444/02 – que alterou o CPC de 1973, acrescentando, dentre outros dispositivos, o §4º do art. 659 – ficou claro que o registro serve apenas para estabelecer presunção absoluta do conhecimento por terceiros da execução, não sendo condição para o ato fraudulento[20].
A fraude contra a execução somente se cogitará se houver litispendência, pendência de uma ação em juízo[21]. Não é necessária a litispendência de uma demanda propriamente executiva, bastando a existência de qualquer demanda, até mesmo um processo de conhecimento, capaz de reduzir o devedor à insolvência[22].
É controverso na doutrina e jurisprudência o momento caracterizador da fraude a execução, se da data da distribuição da ação ou da citação do réu. A Ministra Fátima Nancy Andrighi defende que seja da distribuição, suficiente para identificação da existência do processo. Segundo a ministra, a exigência de citação contraria a própria finalidade da fraude de execução na medida em que tutela o adquirente desidioso e aquele que ciente do ajuizamento de uma ação contra si, oculta-se para evitar o ato citatório em prejuízo do credor e do estado[23].
Para Araken de Assis, o ato praticado pelo devedor antes da citação e depois do ajuizamento não constitui fraude contra execução, defendendo que, nesta hipótese, somente há fraude contra credores, vedado ao credor penhorar o bem alienado independentemente do desfazimento da transmissão através de ação anulatória, prevista no art. 171, II do CC. Ressalta, contudo, que averbada a pendência da execução deferida pelo juiz nos termos do art. 828 do CPC de 1973, a citação se torna dispensável, pois a averbação tem eficácia contra todos.[24]
Cabe registrar que, em 2010, o Superior Tribunal de Justiça afastou a necessidade de citação em um caso específico, argumentando que o devedor já tinha pleno conhecimento da execução e esquivou-se da citação de modo a evitar a caracterização da litispendência e, inclusive, adquiriu no período imóvel em nome dos filhos[25]. Mas, o posicionamento dominante no âmbito Tribunal ainda privilegia a fraude a execução, imputando ao credor ônus praticamente impossível de comprovar a ciencia da ação pelo devedor e pelo terceiro[26].
Interpretar que a citação válida é determinante para comprovar a ciência da demanda pelo terceiro e pelo devedor mitiga demasiadamente seu ônus de obter certidões que atestam a inexistência de ações contra o devedor antes mesmo de sua citação. Trata-se de entendimento que privilegia o devedor furtivo e sua finalidade de alienar o patrimônio e se esquivar da responsabilidade pela dívida[27].
O segundo requisito para caracterizar a fraude à execução é a frustração da execução. Só cabe a penhora do bem do adquirente se houver insolvência do executado. Deverá o credor provar o conhecimento da insolvência pelo adquirente, salvo se pública, notória ou tiver havido má-fé[28]. Não é preciso auferir o estado de insolvência do alienante executado, bastando a inexistência de bens penhoráveis.
O terceiro requisito é a ciência do terceiro adquirente da pendência de processo contra o alienante e de sua insolvência. Pela letra fria da lei (artigo 593 do CPC/73 e art. 792, IV do CPC/15), toda venda seria considerada em fraude à execução se, em relação ao vendedor, pendia demanda ("processo") que o pudesse tornar insolvente, isto para qualquer processo em andamento no Brasil inteiro[29].
Distintamente do que se dá na fraude contra credores – campo em que a questão ainda é controversa –, na fraude à execução existe a presunção do concilium fraudis. Para a desconsideração do ato é dispensável a prova de que foi fraudulento, sendo imprescindível, contudo, a ciência do terceiro adquirente da demanda fundada em direito real ou capaz de reduzir o devedor a insolvência[30].
A questão que se põe e será enfrentada nesse artigo está em saber se a má fé do terceiro adquirente é presumida ou deve ser comprovada pelo credor. Em 2009, o Superior Tribunal de Justiça editou o enunciado de súmula de sua jurisprudência nº 375, segundo o qual o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova da má fé do terceiro adquirente. A interpretação literal do dispositivo é no sentido de que a má-fé do terceiro adquirente não é presumida, salvo se houver registro da penhora.
A interpretação da súmula suscitou discussões, pois os tribunais entenderam, em um primeiro momento, que a dispensa das certidões de distribuidor em nome do vendedor do imóvel seria suficiente para demonstrar a má-fé do adquirente, sobretudo diante do fato de a antiga redação da Lei nº 6.015/75 exigir as certidões para a lavratura da escritura de compra e venda do imóvel[31].
Em dezembro de 2014, ao julgar o REsp 956.943/PR sob a sistemática dos recursos repetitivos, prevista no artigo 543-C do CPC, o Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento no sentido de que: (i) a boa-fé do adquirente se presume se não há registro da penhora; (ii) o terceiro não precisa obter as certidões de distribuidor; (iii) cabe ao credor prejudicado comprovar a má-fé do terceiro adquirente.
O posicionamento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, contudo, merece nova reflexão, a luz do Código de Processo Civil de 2015, como se fará adiante.
É preciso, ainda, fazer a distinção entre o reconhecimento da fraude à execução em relação ao devedor e em relação ao terceiro. O devedor tem a obrigação de saber do prejuízo de seu credor quando alienou o bem, já se configurando, desde logo, a fraude em relação a ele. Se essa fraude vai repercutir ou não na esfera do terceiro que adquiriu o bem, é o que deverá ser analisado em cada caso. São, portanto, fenômenos distintos a configuração da fraude contra credores e a repercussão dessa fraude na esfera jurídica do terceiro adquirente[32].
Por fim, um exemplo prático para a compreensão do tema.
Em uma ação civil pública ajuizada para apurar ato de improbidade administrativa, os bens de determinado réu, ex-prefeito de uma pequena cidade, foram tornados indisponíveis por determinação judicial que buscou resguardar o resultado útil do processo no que toca ao eventual pagamento de multa e ressarcimento ao erário. Antes mesmo do ajuizamento da ação civil pública, um dos bens foi alienado a um terceiro, que era um conhecido vereador na cidade, mas a alienação não havia sido registrada no cartório de imóveis.
A ação civil pública era conexa e foi reunida a uma ação popular, ajuizada anteriormente, contra parte dos réus da ação civil pública. O réu cujo imóvel foi objeto de indisponibilidade não era réu da ação popular, mas apenas da ação civil pública. O réu/alienante era réu em outras execuções mais antigas e nas quais ele já havia sido citado, antes mesmo da alienação do bem. Ante a constrição do bem ainda registrado em nome do réu, o terceiro adquirente ajuizou embargos de terceiro contra o Ministério Público Federal[33] requerendo que fosse reconhecida a transferência do bem a terceiro, isentando-o da responsabilidade patrimonial.
O caso suscita algumas dúvidas: se houve fraude à execução; de quem seria o ônus de comprovar o conhecimento da ação de improbidade contra o ex prefeito pelo terceiro adquirente, vereador; se o MPF pode se aproveitar da pré existência de execuções contra o devedor e requerer a ineficácia do negócio de compra e venda na ação de improbidade com a respectiva manutenção da indisponibilidade do bem; se o fato de não ter sido registrada a compra e venda do imóvel afasta a eficácia do negócio jurídico em face do credor.
A solução do caso é simples.
Primeiro, a ausência do registro da escritura de compra e venda não impede a procedência dos embargos de terceiro, de acordo com o disposto no art. 1.046 do CPC e na Súmula 84/STJ, porquanto oriundo do direito possessório decorrente de negócio jurídico anterior ao ajuizamento da execução[34]. Segundo, para reconhecimento da fraude a execução é necessário que o negócio jurídico fraudulento seja contemporâneo ao processo, haja litispendência que aproveita apenas o credor da ação pendente ao tempo do ato negocial. Terceiro, é possível configurar a fraude em relação ao devedor e não caracterizar em relação ao terceiro.
Assim, no caso analisado, a conclusão é de que a transação entre o devedor e o terceiro é válida e eficaz em relação ao credor, pois a compra e venda foi devidamente comprovada independentemente do registro na escritura do imóvel e, ao tempo da alienação, não havia litispendência em relação ao Ministério Público, não estando presentes os pressupostos para extensão da fraude à execução ao terceiro.