Há no mundo de cultura ibérica, e no Brasil, particularmente, um hábito histórico e idealista – aqui em nosso país, especialmente –, que prepondera em parcelas significativas da sociedade e da cultura brasileiras, de um modo geral, encontrado de forma difusa em muitas áreas e em diversos setores que envolvem o tecido social e a intelectualidade – jurídica, acadêmica, além de outros inespecíficos –, que aponta para a solução penal como a primeira medida que costuma-se lançar mão contra atitudes e/ou ações antisociais e moralmente reprováveis.
As considerações acima são feitas no propósito de um breve e genérico exame em torno de alguns aspectos da lei nº9.605/98(que dispõe sobre sanções penais e administrativas derivadas de condutas lesivas ao meio ambiente e ao patrimônio histórico, artístico e cultural do país), a qual vem sendo objeto de determinados estudos e propostas que visam alterá-la em alguns pontos.
No âmbito daqueles estudos e propostas que buscam alterar pontos da retromencionada lei, um, dentre eles, em especial, chamou a atenção deste modesto operador do direito. O dispositivo legal que fixou como condutas criminosas aquelas consistentes de atos que voltam-se para danificar, inutilizar ou deteriorar bens específicos ou determinadas partes de acervos históricos, conforme o devida e oportunamente previsto no art.62 da retromencionada lei nº 9.605/98, é o que vem a ser objeto de algumas considerações específicas que pretendo realizar, a seguir.
Deve ser observado, inicialmente, que, ali naquele mesmo dispositivo legal (art.62, da lei em comento) encontram-se referências a componentes de um conjunto físico e palpável, ao qual o estado não poderia furtar-se de amparar, ou vir a negar a sua imprescindível e imediata proteção, pois se os mesmos viessem sofrer atos destrutivos, ou de danos, estariam, provavelmente, condenados a desaparecer – revestindo-se a eventualidade em possíveis perdas em desfavor do patrimônio histórico nacional –, o que por si já justificaria, na prática, a existência da norma legal, além de todos os aspectos de ordem ética, moral e de coesão política que poderiam resultar os mesmos atos, se consumados.
Busca-se, contudo, no âmbito dos estudos e propostas de alteração da retromencionada lei, tipificar e punir como crime, por meio de projeto parlamentar em discussão, determinadas condutas contrárias a algumas manifestações culturais, também ali denominadas eventos, os quais são produziveis e reproduzíveis a qualquer tempo. Aqui, para que não haja equívocos, abrimos um oportuno parêntese para louvar todas as manifestações da cultura do povo, suas danças, cantos, o folclore, etc, bem como as manifestações indígenas de todas as origens.
Portanto, afaste-se desde logo a idéia leviana e míope que possa vir a conceber o que observa-se no item anterior como apenas produto de uma visão estreita e materialista do fenômeno cultural, que desconsidera expressões culturais como danças, festas populares, etc, como partes da mesma cultura, e, mais ainda, do patrimônio histórico nacional que deva ser protegido e defendido. Não é bem por aí.
Ao contrário do que possa parecer a uma suposta concepção que tenha por materialista e empobrecida a recusa em criminalizar os atos contrários às manifestações e eventos populares, o que pretende-se aqui é justamente questionar essa tendência em favor da criminalização fácil, demagógica e precipitada, que nada resolve mas que vem prevalecendo em nossa sociedade com força incomensurável e nunca vista antes, de um modo tal que cega e envolve a todos nós, que deixamos assim até de lembrar que há outras alternativas para enfrentar atos antisociais e contrários ao interesse público como aqueles que o projeto legislativo em comento busca punir.
Sim, referimo-nos aos investimentos em educação e em cultura, deveres do Estado que terão em casos como os que o projeto aborda soluções muito mais proveitosas e interessantes que a repressão pura e simples, buscada com a tipificação penal. Também esta, devo advertir, não é uma visão ingênua e irrealista para enfrentar atos antiéticos e contra o interesse público, que a nossa moralidade reprova e condena.
Não, a visão modesta e despretensiosa que estamos expondo aqui nem é nova, óbvio, pois não somos daqueles que gritam terem inventado a pólvora. Não, esta visão filia-se a um novo conceito de criminologia que busca aplicar antigos conhecimentos em favor da pedagogia para enfrentar questões reprováveis que se pretende, simplesmente, criminalizar, como se essa postura do estado tivesse resultado em sucesso na luta contra o crime.
Numa palavra, o sentido do que se busca com a presente discussão é chamar a atenção da importância da pedagogia no combate à criminalidade, contra a qual não deve ser banalizado o laboratório de leis do país, de um modo que licencia-se ali a criação de qualquer remédio que tenha-se por eficaz no enfrentamento dos atos que colocam-se contra o interesse público.
A proposta de alteração legislativa em exame insere-se dentro daquela ampla e inesgotável discussão que envolve o tema estrutura e fundamento da ordem jurídica, tratado pelo maior de todos os nossos juristas vivos, o grande professor e filósofo Miguel Reale, o qual, com o talento e a cultura que lhes são peculiares, leciona o mesmo tema, conforme passagem inserta em capítulo homônimo (ao tema), na obra de sua autoria Estudos de filosofia e ciência do direito(Editora SARAIVA, São Paulo- SP, 1978),do seguinte modo:
"As normas jurídicas não são cópias de algo dado de antemão no processo social. O que existe são condicionamentos naturais e tendências constantes que balizam e orientam historicamente o trabalho criador e constitutivo do legislador, primeiro, e do intérprete ou exegeta, depois. É só graças ao poder sintético e ordenador do espírito que os fatos se subordinam a exigências eletivas de valor e se compõem na unidade integrante das normas de direito, às quais é inerente certa temporalidade, que como diz L. Bagolini, não é a do tempo do relógio. – grifou-se.
Ora, o que se pretende fazer na dentro da discussão, dos estudos e propostas em torno da lei nº9.605/98, ora em exame, se não, justamente, converter uma dentre as normas jurídicas de uma lei ordinária em cópia de algo dado de antemão no processo social?
"Uma das marcas do pensamento jurídico contemporâneo é a reação crítica aos excessos da escola realista[o realismo jurídico, que encontrou sua maior expressão teórica na obra do juiz norte-americano Jerome Frank, é um descendente indireto das idéias do maior jusfilósofo europeu da segunda metade do século passado, o célebre Rudolf Jhering – explicação do autor]. Para Eward Levi, por exemplo, autor de uma instigante Introduction to Legal Reasoning(Chicago, 1970), o erro dos realistas está na sua incapacidade de perceber que o direito é capaz de combinar mudança com permanência.As regras jurídicas, argumentava Levi, são sempre intrinsecamente ambíguas, porque a ambigüidade é inerente à relação entre uma proposição geral e uma proposição particular, como a que se dá cada vez que o juiz se defronta com a necessidade de aplicar a lei a uma situação concreta. Quase toda particularidade cabe em mais de uma generalidade, enquanto as particularidades implicadas por cada generalidade nunca são exauríveis.
"Longe, porém de constituir apenas uma inconveniência, essa ambigüidade essencial da norma jurídica comporta duas vantagens. Em primeiro lugar, para ser aceitável por mais de uma pessoa em mais de uma circunstância, é bom que alei seja ambígua e não estreitamente unívoca. E em segundo lugar, a mesma ambigüidade ajuda a lei a permanecer estável ao mesmo tempo em que se adapta a novas circunstâncias."– grifou-se(Merquior, José Guilherme, in Direito e Justiça, ensaio do autor inserto na obra "O ARGUMENTO LIBERAL", do mesmo.
Isso que o grande filósofo e pensador brasileiro, José Guilherme Merquior, de saudosa memória, registrou acima, em relação à ambigüidade da lei, de um modo geral, constitui-se em uma observação de natureza obviamente genérica para esta, mas, mesmo consideradas as particularidades e peculiaridades da lei penal, caracterizadas pelas especiais exigências de precisão e especificidade na tipificação do crime, pode aquilo ser adequado a determinados aspectos da última – a lei penal -, no que concerne a determinados tipos de condutas(como aquelas que estão pretendendo encerrar em tipos penais específicos), já contempladas e previstas como crime em leis penais abrangentes. No Código Penal e na própria lei de contravenções penais, condutas como as que o projeto de lei vem pretendendo enquadrar e especificar como crime já encontram-se lá repelidas, pois já abrangidas como ilícitas e com prévias cominações legais.
.Dentro desta visão, agora mesmo especialistas em Direito Penal que estão debatendo os problemas da favela da "Rocinha", no Rio, os professores João José Leal e Ronaldo Porto Macedo, além do presidente do IBCCRIM, Marco Antonio Nahum, reunidos com aquela finalidade – o debate – pela revista eletrônica Carta Maior, de São Paulo, segundo edição da última sexta, 21 do corrente. Para eles, o Direito Penal é um sistema de controle das condutas humanas, que age de maneira repressiva e punitiva para manter a estabilidade social – grifou-se. Ainda segundo a mesma revista,
"É por isso que os especialistas acreditam que medidas como a alteração das leis e o aumento das penas se mostram ineficazes nesse caso."
Então perguntamos: o projeto ora em exame e discussão não encontra-se, exata e precisamente, na contramão da moderna tendência do direito penal, ou não?
Finalmente, deve ser registrado, por relevante e oportuno, que contra a obstrução – impedir, interromper ou dificultar, sem justa causa – de manifestações e eventos populares, já existe no universo do direito penal brasileiro regras genéricas abrangendo atos e condutas que ora busca-se repelir, podendo as mesmas, como sempre puderam ao longo da nossa experiência, adequarem-se às condutas e aos atos específicos que agora se procura tomar isoladamente como crime. Vide, assim, o nosso velho Código Penal e a própria Lei de Contravenções Penais.