CONSTITUIÇÃO E ESTADO DE EXCEÇÃO
O tema proposto é bastante sugestivo e atual na tangência das esferas governamentais na America Latina e outros países em desenvolvimento, nos quais uma pequena mais poderosa elite econômica, ávida de ambição por riquezas e poder, pressiona os sistemas constitucionais cujas democracias conquistadas muitas vezes mediante a luta popular ainda são muito fragilizadas. Na análise do autêntico pensamento de Carl Schimit, a genial obra de Gilberto Bercovicci nos mostra como e porque se formam as ditaduras e, ainda mais, imergindo no ordenamento jurídico, ou seja, constitucionalizando-a. Num breve resumo desta obra, apresentaremos conceitos de Estado Neutro, Estado Total, Estado de Exceção e sua intrínseca relação com fatores econômicos e a constituição.
Schimit, mesmo que em caráter substancial, defende uma inversão formal de soberania quando diz que esta deve estar concretizada nas esferas não estatais do poder, na sociedade organizada. Segundo Schimit, o Estado forte é aquele que protege as necessidades do povo garantidas pelo Estado social, das liberdades econômicas de setores privilegiados – elites.
Schimit considera a dicotomia Estado/político como uma relação de conflitos, considerando nesta interação quem é amigo e inimigo, em verdade, o grau de harmonia ou de crise nesta relação é que pode determinar a natureza do Estado legítimo de direito. É o Estado como unidade política, que mantém estes conflitos num nível de pacificação desejado. Quando assim ocorre, efetiva-se no ordenamento jurídico a sua soberania, imprescindível na manutenção da ordem e do Direito como um todo na busca de uma estabilidade completa.
Para schimit, a condição de existência de um povo político, está na capacidade de decidir o que é saudável e o que é nocivo para a sociedade. Assim sendo, só o povo e somente o povo poderia decidir sobre a realidade ou não de um Estado de Exceção.
Ao passo que percebemos em Schimit uma aversão às teorias pluralistas de Estado, por não considerarem este como a unidade política de um povo, capaz de decidir por si mesmo e impedir os antagonismos internos de grupos sociais diversos, encontramos em no autor uma leve, porém, determinante, inclinação à teoria de Estado de Direito de Ihering em a Luta pelo Direito (1872), principiologicamente, na admissão da existência de conflitos animados pela heterogeneidade de pensamentos de que o Estado como defensor magno da unidade política representa, por força do Direito, uma incansável luta pela paz, que é objeto celular da existência do Direito.
É importante notar a simpatia de Schimit pelo conceito Hobbesiano de Estado. No entanto, há que levar em conta que, a extemporaneidade da existência das duas teorias. Para Hobbes a origem do Estado decorre da necessidade de garantias principalmente da propriedade privada, aí está a símile das doutrinas, no pensamento Schimitiano, o estado é uma inovação técnica indiferente a valores como justiça e verdade, no entanto é paradoxal, e aqui é possível uma crítica, se para ambos o Estado é uma obra pura do homem, como este pode estar dissociado de valores? Não é a intangibilidade dos bens que sustentam a laje do Estado promovendo a garantia de propriedade, objeto da ambição ávida do homem? Scimit alenca que o estado não é bom nem mau, que só protege a propriedade em troca de obediência ao ordenamento proposto. Mas sabemos que é na transgressão das normas jurídicas que o Estado mostra sua existência, desembainha a espada, mostra seu caráter tecnicista que o faz extremamente positivista, estéril a valores como justiça e verdade.
Como o Estado deve se comportar diante dos conflitos de classes protagonizados pela sociedade civil. Para Hobbes, as reivindicações de uma classe insatisfeita, constituía uma quebra de contrato com o soberano e, portanto, um ato injusto. Para Schimit, não se trata de uma renegociação contratual visando restabelecer a harmonia, mas puramente uma decisão do soberano. Isto invoca o conceito de Estado de Exceção, a decisão firmada no positivismo normalizante, a imposição unilateralizada do poder.
O abandono do Estado de Natureza proposto por Hobbes implica na formação de um status quo de garantia administrativa, de segurança e organização – habitat natural também do Direito. Na visão Schimitiana, o abandono de tal situação enseja apenas caráter político em mais íngreme singularidade. A política como resultada do fenômeno social, protagonizada pelo o Político – sujeito fático.
A crítica de Carl Schimit a formação do Estado proposto por Hobbes, fortemente embasado na ordem, na razão e na normatividade, em sua concepção marginal de exceção, pressupõe mais uma vez o ceticismo de Schimit num Estado pleno de Direito. Em sua teoria – o conceito de Estado pressupõe o do político - fundamenta sua doutrina constitucional, na qual não se pode definir o político a partir do Estado.
Para Schimit, o que tange a superioridade constitucional, passa pela inevitável separação entre constituição e lei constitucional. Segundo o autor a última é fundamentada na primeira. A lei é produto constitucional e não somente legislativa. Assim sendo a lei, cujo conteúdo se apresenta limitador, liberalizador e pluralizador, afeta a unidade política. Por tanto, a lei constitucional não pode ser considerada originalmente como de um processo político, mas, da vontade do soberano e será usada como instrumento de contenção de conflitos e manutenção da ordem pública.
Schimit admite, no entanto que a constituição é albergada de elemento políticos e não políticos. É, segundo autor elementos político da constituição: os Direitos Fundamentais, a Separação de poderes e o Estado de Direito. Contamos esta afirmação, notamos no autor, uma sub-rogação do Estado de Exceção como uma decisão propriamente política, por tanto um ato político independente da vontade popular. Daí, porque tanto se opõe ao leberalismo – perda do monopólio político por parte do Estado.
Para o autor, o Estado somente albergou a função de auto-organizador da sociedade, após suprimir suas históricas distinções entre Estado forte e sociedade política. Schimit encerra como essencial o advento do Parlamento e o resgate dos princípios democráticos e homogêneos para a fusão entre Estado e sociedade. É importante notar que em sua teoria, democracia não significa liberdade política, mas identidade e igualdade material, aliás, esta ultima, segundo Schimit, pressupõe o fundamento de qualquer democracia.
Schimit descreve o fim do liberalismo do século XIX e implantação dos regimes democráticos na era moderna. Isso ocorreu devido à expansão do voto popular e o estabelecimento das sociedades classistas reivindicando interesses e pressionando os governos centrais, em busca de uma unidade entre governantes e governados. Através da formação de partido políticos, estas classes se fazem representar junto as esfera do poder, cada partido demonstrando ideologias políticas e históricas, defendendo interesses privados e demagogias socializadas. O pluralismo partidário neste cenário é para Schimit, nocivo a manutenção da unidade política. O Estado passa a ser o alvo dos partidos políticos e o Parlamento instrumentalizado pela diversidade de ideologias, vagueia na obstacularização de desentendimentos e conflitos. No Brasil são atualmente trinta e cinco partidos e mais dez tentando a legalização (registro partidário). Nota-se claramente uma distorção da ideia de democracia, e aqui vale invocar Carl Schimit e sua definição de igualdade substancial (material). Será que existem no Brasil trinta e cinco ideologias diferentes? Mesmo colocando caráter abstrato, é temerosamente surreal tal realidade. Os interesses individuais sobrepõem-se aos interesses coletivos na busca incansável pelo poder ou apenas por uma fatia deste. Há uma deterioração do conceito de democracia, bem observado por Schimit. Confundem-se liberdade com quantidade, menosprezando a qualidade.
É com base no comprometimento da unidade política, causada pela pluralidade de ideias cada qual julgando ser a mais correta, que Schimit invoca um Estado forte e a neutralidade na tomada de decisões, em outras palavras, o Estado de Exceção – atribuição extraordinária. Segundo o autor, não existe outra forma de reorganizar o estado, conter as investidas das massas e defender a unidade política e a ordem publica. A legitimidade sobrepõe-se a legalidade e assim exclui o inimigo (agente agitador). Situação análoga à ocorrida no Brasil com o golpe de 64. Sob a alegação de momento excepcional e de perigo eminente da derrocada das estruturas econômicas e comprometimento da ordem publica.
É diversa em sua complexidade a teoria Schimitiana, talvez pela primazia que o tema merece e o brilhantismo do autor. Em um piscar de olhos um ator passa de mocinho a bandido, dependendo do cenário em que o mesmo se apresenta. Schimit afirma que o Parlamento deve, no Estado de Exceção, manter o respeito à generalidade das leis constitucionais, muito esta seja beneficiadora das classes privilegiadas, dada a supressão de valores quando em sua elaboração motivada pela pressão no Parlamento das elites econômicas. Em seguida, ainda no seu opúsculo, apudiado por Bercovicci, Shimit admite que a racionalização do conteúdo das leis, limita o poder do Parlamento locupletando o poder monopolizador do Presidente.
De uma forma mais contundente, Schimit demonstra a independência do Parlamento das classes dominantes, detentora dos meios de produção. Ainda assim, este, ao ser submetido às medidas (decretos com força de lei) do poder executivo, comprometia sua histórica função de representante democrático do povo. Segundo o autor somente o Estado de Exceção poderia sua verdadeira autonomia e restabelecer a função primordial, outrora, execrada.
O que é peculiar no pensamento de Schimit é a realidade do Congresso Brasileiro, que formado em sua maioria por ricos empresários, latifundiários, banqueiros e sujeitos patrocinados pelas multinacionais, são em conluio, obstinados na defesa dos próprios interesses, secundarizando as demandas sociais e coletivas da maioria do povo brasileiro.
Schimit, em sua demonstração de Estado de Emergência Econômica, revela a relação salvadora com o Estado Legislativo, o que faz surgir instrumentos mobilizadores da criação do Estado de Exceção, normatizado e sem atos arbitrários. Bercovicci (2004, p.86), parafraseando Schimit, assim ilustra a ideia: “O desenvolvimento da pratica de exceção no aspecto econômico, com a promulgação de decretos com força de lei, não surgiu casualmente ou por alguma arbitrariedade, mas segundo Schimit, corresponderia às necessidades históricas, estando de acordo com a ordenação então existente”.
É particular, porém, de muito interesse, a ideia de Schimite quando declara a supremacia do presidente em relação ao parlamento. A neutralidade do presidente o legitima, segundo o autor, a ser o único defensor da constituição com prerrogativas que lhe assegurem o cumprimento da ordem jurídica. Não fica claro, no entanto, se p residente deveria se submeter a esta ordem. Positivamente, este poder neutro e imparcial do presidente, deve se afastar dos interesses e privilégios das classes econômicas dominantes e da hipocrisia pluripartidária. A unidade política proposta por Schimit deve atender não a interesses privados de grupos isolados, mas, ao povo como um conjunto homogêneo e político.
No decorrer da teoria proposta por Schimit, apresenta como adversário o liberalismo econômico imerso num conceito de Estado Total, ou seja, a estatização plena da economia contrariando liberalismo econômico. Fica, portanto evidente, uma transdisciplinaridade de poder justificada pelo nazismo Alemão e no caráter imperialista de Adolf Hitler. Esse conceito diverge e muito do que Schimit denominava de Estado Neutro que impunha limites na representação e organização do povo indiferente as indissiocrasias das demandas investidas pelas elites capitalistas. Mas os modelos, embora albergados pelo Estado de Exceção, eram contrários ao liberalismo econômico e a não unidade política do Estado, e favorável a pratica da democracia, como uma ditadura limitada da maioria.
É paradoxo, porém autentico, o comentário de Zigler sobre a doutrina Schimitiana no que tange a ideia de Estado Autoritário, que permitia a equiparação constitucional entre Estado e Sociadade. Na verdade, isso nos leva ao conceito de Estado Neutro despolitizado, alheios às incursões de partidos políticos. Pensamento positivo que, em nível de Brasil, é notório o travamento da administração publica, que pratica um sistema contrario ao proposto por Carl Schimit, no qual propicia a ingovernabilidade de certos setores da administração, por pressões de grupos político-partidárias. Pra manter o apoio, ou seja, a sustentabilidade do governo num Estado exacerbamente politizado, a soberana rateia, como uma “pizza”, entre os partidos políticos a maquina da administração publica.
Para Schimit, a ditadura com base num plebiscito, não é o oposto de democracia, a ditadura deve ser usada para a consecução de objetivos pré-determinados, que o Estado de Direito e o liberalismo não consegue atingir. Como por exemplo, a lida com o Estado de Emergência Econômico – economia decadente – e o controle das demandas das massas e suas instituições partidárias. O sistema autoritário centrado no executivo, dar subsídios, pelo menos no Estado moderno, a capacidade de lidar com as dificuldades da era econômica- tecnológica.
O Estado Neutro de Schimit, só apresentava caráter político quando este se divorciava da sociedade. Assim tinha autonomia para o controle organizacional desta, numa característica contraria ao Estado Total – a politização de tudo o que fosse econômico, social, cultural e religioso. Sendo a extensão do voto, num regime democrático, forte elemento restaurador da fusão Estado/Sociedade. Nesta relação democrática, o estado não se opõe as classes sociais, mas interage como auto-organizador desta, implicando deste fenômeno, o Estado Total como identidade única entre Estado e Sociedade. Bercovicci (2004, p.94), assim apresenta a ideia de Carl Schimit, no novo conceito de Estado e Sociedade: “Na medida em que o Estado e a Sociedade se interpenetram reciprocamente, gerando a identidade entre Estado e Sociedade (o Estado Total), todos os domínios passam a serem políticos, ou seja, não há mais como distinguir o político e aquela identificação de Estado e político, para Schimit, deixa de ser verdadeira”.
Dada a grande demanda das necessidades sociais, formam-se nas entranhas do poder uma bolha que se infla a cada momento e própria a explodir. Fica evidente o comprometimento da funcionalidade do Estado Total, tornando este, se algo não for feito, uma instituição fadada à decadência. Para Schimit, isto decorre da incapacidade, no cenário político de se buscar, novamente a distinção entre o que é Estado e o que é não Estado (sociedade civil), pois esta ultima não absorve a responsabilidade de administrar e controlar a economia. Uma das funções precípuas e fundamentais do estado.
Schimit declara a nocividade da política partidária e seu pluralismo, afirmando peremptoriamente a incapacidade de atender, desta maneira, o interesse coletivo. Na visão de Bercovicci, analisando Schimit, assim pressupõe: “O que deve ser eliminada não é a política em si, mas uma espécie de política, a política de partido”. (p. 101).
O pensamento Schimitiano sobre subdesenvolvimento revela a imprescindível necessidade de um Estado de Direito forte e democrático. Para a gênese de estado que deve ser continua e não uma exceção faz se necessária a normatização. Assim podemos suprimir das entranhas do poder, as classes econômicas capitalistas promovendo ameaças em uma cínica ditadura de mercados.
Bercovicci apud Rossiter descreve três concretas possibilidades de declaração do Estado de Exceção: Guerra Civil, Rebelião e a principal delas, as Crises Econômicas. Estes fatores balançam os pilares dos Estados constitucionais democráticos modernos. O resgate da autonomia por parte destes Estados demandaria interferência séria na liberdade política e econômica, sobretudo no direito a propriedade, o grande “calo” das elites burguesas. Bercovicci prenuncia como exemplo, a hegemonia Norte-americana na America Latina com seu neoliberalismo econômico e ideológico, o qual mantém os governos autônomos deste continente intrinsecamente e de forma macroeconômica dependentes do seu imperialismo e política expansionista de domínio.
O brilhantismo de Schimit se torna ainda mais reluzente, quanto a descreve a hipocrisia imperialista Norte-Americana e seu Estado de Exceção fora de suas fronteiras. A separação externa de política e economia nos contratos internacionais, em princípio buscavam colônias (terras), agora objetivam angariar grandes indústrias para seu espaço territorial. Para tal intento, cinicamente, convertem “Política universal” em “Polícia universal”, num cenário de pura demonstração de sua supremacia bélica e poderio econômico.
BIBLIOGRAFIA
- BERCOVICCI, Gilberto. Constituição e Estado de Exceção Permanente. Azougue. SP. 2004.
- IHERING, Rudolf V. A luta pelo Direito. Revista dos Tribunais. SP. 2011.
MARCONE CHAVES DA CUNHA
FACULDADE LUCIANO FEIJÃO (FLF) – 10º SEMESTRE - NOITE