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O CALVÁRIO DE NORAMBUENA NO BRASIL ASSUME CARACTERÍSTICAS SURREAIS

Agenda 08/09/2017 às 18:30

Nenhum outro preso permaneceu durante tanto tempo submetido aos rigores do Regime Disciplinar Diferenciado (assumido ou não) em penitenciárias brasileiras quanto o chileno Mauricio Hernández Norambuena. Os tramites legais do seu caso são chocantes!

Foi lá pelos meus 14 ou 15 anos que fiquei sabendo o quanto a Justiça de uma sociedade de classes pode ser tendenciosa quando tem em mãos o destino de quem luta ou lutou contra a dominação burguesa: a leitura de A tragédia de Sacco e Vanzetti, de Howard Fast, pulverizou o que eu absorvera acriticamente de um sem-número de filmes e séries estadunidenses, fazendo-me pela primeira vez perceber que há um verdadeiro abismo entre o espírito e a prática da Justiça.

Então, mais de meio século depois, eu já deveria estar vacinado contra absurdos como o que li na sentença do juiz titular da Corregedoria Judicial da Penitenciária Federal do Rio Grande do norte – mas, injustiças tão clamorosas ainda me deixam profundamente indignado!

Trata-se da resposta a um requerimento de Maurício Hernandez Norambuena, no sentido de que a Justiça brasileira:

O meritíssimo reconhece que "o referido interno atingiu o requisito temporal para progredir de regime no dia 7 de janeiro de 2007, assim não restando dúvidas acerca do preenchimento deste requisito".

Em seguida, coloca uma objeção tão bizarra que faz lembrar os pesadelos do Kafka ou a frase de Machado de Assis (em O alienista) sobre preso por ter cão, preso por não ter cão:

"...o Superior Tribunal de Justiça tem decidido que, quando se trata de preso recolhido a presídio federal, é paradoxal (!) a concessão de progressão de regime ou mesmo livramento condicional, pois, se ele faz jus a esses benefícios, é porque não deveria estar no sistema penitenciário federal (!!!)".

Ou seja, o Estado falhou tanto ao não conceder-lhe os benefícios a que já fazia jus, quanto ao não transferi-lo para um estabelecimento penal menos dantesco. E estas falhas servem como pretexto para que o julgador as continue cometendo. Não estará ele infringindo o princípio de que ninguém pode alegar a própria torpeza em seu benefício?!

Na mesma linha, o juiz federal admite que, segundo a Lei nº 11.671/2008, "a inclusão e a renovação do período de permanência do apenado em estabelecimento federal de segurança máxima é medida de caráter excepcional e temporária", exatamente por causa dos terríveis danos físicos e psicológicos que os rigores do confinamento extremado acarretam aos prisioneiros.

Mesmo assim, o meritíssimo vale-se de brechas legais que efetivamente existem, mas são autoritárias e desumanas, acintes à nossa condição de civilizados, para concluir que "que permanecem hígidos os motivos que ensejaram a transferência do interessado para o presídio de segurança máxima" como "melhor forma de se manter a ordem pública, o interesse da coletividade e a segurança da população". 

Por quê, já que o comportamento de Norambuena no cárcere é reconhecido pelas próprias autoridades como impecável? Por algo absolutamente não demonstrado:

"Cabe destacar que o interessado é um dos líderes do Comando Vermelho, facção criminosa do Estado do Rio de Janeiro, sendo o seu retorno àquele Estado, consoante bem ressaltado, é um facilitador da comunicação com a referida organização criminosa".

Ora, como é público e notório que Norambuena não tinha vínculo nenhum com o Comando Vermelho antes de ser preso, logo suspeitei tratar-se de fofoca de prisão, aquelas maledicências fartamente utilizadas para desacreditar os presos malquistos pelas autoridades.

Consultei o advogado de Norambuena, o abnegado Antônio Fernando Moreira. Na mosca! Eis a verdade sobre o pretexto utilizado para subtrair direitos de um condenado nestes tristes trópicos:

"Em 2015 Mauricio reencontrou alguns destes presos de SP no presídio federal de Rondônia, na selva amazônica. Pronto. A inteligencia alegou 'proximidade' de Mauricio com presos do CV – lógico, nestes presídios federais há assumida divisão de alas por facções criminosas. Afirmou que ele estava 'próximo' de Francisco, vulgo Piauí – era o sujeito da cela ao lado. Foi dito que ele 'tentou contato' – como? onde? para quê? – com Marcola e outro preso de codinome Vida Loka. Consegui descobrir que este cidadão estava a algumas celas de distancia".

Nenhum verdadeiro defensor dos direitos humanos pode permanecer indiferente a tantos abusos e injustiças! A perseguição judicial a Norambuena e a tortura sem fim a que o submetem têm de acabar! Não foi para chegarmos a isso que tantos entregaram a vida e tantos sofremos as mais dilacerantes torturas nos anos de chumbo!

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"VINGANÇA EXTREMA"

O professor Carlos Lungarzo, que há quatro décadas defende o respeito aos direitos humanos em nosso continente e teve participação destacada na luta contra a extradição do escritor italiano Cesare Battisti, já apontou várias incoerências e ilegalidades na sentença recebida por Norambuena e nas condições carcerárias que lhe estão sendo impostas. 

Questionou, primeiramente, sua condenação a 30 anos de prisão, já que o artigo 148 do Código Penal brasileiro estabelece para tais casos a pena máxima de cinco anos.  "Isto inclui até o caso de sequestro de crianças e doentes, e casos em que o sequestrado é ferido durante sua captura", explicou, destacando a inexistência de agravantes que tornassem pelo menos compreensível o rigor extremado da corte: 

"Apesar da animosidade da mídia, dos inimigos da esquerda brasileira e da elite empresarial, nunca foi dito que o magnata tivesse recebido coação física, salvo a de estar encerrado quase dois meses num pequeno quarto. Quando foi liberado, deu uma breve entrevista à imprensa, e seu estado físico, pelo menos de longe, parecia normal. Em sua entrevista, o mais substantivo que disse é que descobriu que os raptores não eram brasileiros, porque ninguém falou nunca do Corinthians".

Para Lungarzo, a condenação não só foi "ilegal e desproporcional, como cruel e desumana, pois ela transcorre no RDD, um "método indireto de tortura (...), um método insano utilizado especialmente nas teocracias orientais, mas também em estados maniqueístas como os EUA e a Itália".

Foto recente da penitenciária de Mossoró...

Uma observação importantíssima de Lungarzo sobre a utilização do RDD contra o prisioneiro chileno: "O RDD viola os acordos assinados pelo Brasil contra as penas cruéis, e também a própria Constituição, que proíbe os tratamentos degradantes". 

Ele também assinala que o RDD foi introduzido pela Lei 10.792, de 01/12/2003, inexistente, portanto, no momento do crime. 

Além disto, acrescento eu, o RDD nunca passou de uma variante mais rigorosa do confinamento nas chamadas celas solitárias. Deveria servir apenas para a punição do prisioneiro que, conforme está especificado no artigo 52 de da Lei 10.792, incidisse em "falta grave" que ocasionasse a "subversão da ordem ou disciplina internas". 

Mais: o texto legal diz que o RDD tem a "duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada".

...uma das mais draconianas do País.

Ou seja, Norambuena não poderia estar sendo submetido ininterrupta e indefinidamente ao RDD, mas somente por períodos escalonados de 360 dias, a cada falta grave que cometesse. E a soma desses períodos não poderia ultrapassar cinco anos (um sexto da sua pena), mas já totaliza quase dez anos!!! Será que a ditadura voltou e esqueceram de nos avisar?!

Lungarzo não tem dúvidas de que Norambuena está sendo retaliado pelas autoridades brasileiras com "uma vingança extrema", até porque  "nenhum chefe do narcotráfico sofreu RDD por tempo tão longo".

Sobre o autor
Celso Lungaretti

Jornalista, blogueiro, escritor e veterano da resistência à ditadura militar. Ingressei na luta contra a ditadura militar ainda secundarista, aos 17 anos. Passei um ano na clandestinidade, como dirigente estadual da VPR e VAR-Palmares. Preso, sofri uma lesão permanente que me prejudicaria tanto no convívio social quanto nos desempenhos profissionais. Mesmo assim, fiz longa carreira jornalística. Hoje sou escritor, articulista e blogueiro, atuando frequentemente na defesa dos direitos humanos. Observador atento da cena política brasileira há mais de meio século, além de haver sido, aos 18 anos, o primeiro e único comandante de Inteligência de uma organização que travava a luta armada, tento dar aos leigos no assunto um quadro realista das perspectivas atuais, para dissipar um pouco das paranoias e alarmismos que tantos pesadelos lhes causam .

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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