IV – O ARQUIVAMENTO E A AVERBAÇÃO DO ACORDO ACIONISTAS COMO MECANISMOS DE DIVULGAÇÃO, ENTRE OS ACIONISTAS NÃO SIGNATÁRIOS DA AVENÇA, DOS SEUS DIREITOS E DO FUNCIONAMENTO DA SOCIEDADE.
Por fim, no último caso concreto a ser aqui analisado, defrontamo-nos com a necessidade de oferecimento de parecer, na qualidade de amicus curiae (Lei n° 6.385/76, art. 31), em determinada demanda judicial, na qual pretendia a parte autora (acionista direta de companhia aberta, mas não integrante do bloco de controle), compelir a parte ré (a companhia aberta da qual a autora participava como minoritária), a arquivar definitivamente na sede desta um acordo de acionistas celebrado sob condição suspensiva entre a autora e terceiros, acionistas indiretos da mesma companhia incluída no pólo passivo, requerendo, ainda, cumulativamente, fosse determinado pelo Juízo a averbação da existência da aludida convenção e de todos os seus termos nos livros da instituição financeira prestadora do serviço de ações escriturais, tudo sob pena de multa cominatória diária.
A questão controvertida cingia-se, em linhas gerais, à possibilidade de arquivamento de acordo de acionistas celebrado sob condição suspensiva, entre acionistas diretos e indiretos, bem como quanto à viabilidade de defesa, pelo signatário do aludido acordo, dos direitos eventuais, futuros e incertos decorrentes da própria condição suspensiva convencionada.
A companhia demandada negava a possibilidade do arquivamento e da averbação do acordo, basicamente por entender que já havia outro acordo em vigor, com plena eficácia e devidamente arquivado/averbado, firmado no âmbito da holding, entre os mesmos acionistas indiretos subscritores do acordo objeto da demanda e outro acionista indireto, todos eles integrantes do bloco de controle.
Objetava a companhia, outrossim, no sentido de que, estando sob condição suspensiva o acordo invocado pela acionista autora [7], bastaria, para fins de publicidade e preservação de direitos, o mero registro do respectivo instrumento no Cartório do Registro de Títulos e Documentos, na forma do art. 127, inciso I, da Lei n° 6.015, de 31/12/73.
Permitir o arquivamento e a averbação do acordo de acionistas, conforme pretendido pela parte autora, acarretaria, ao juízo da companhia, a conturbação da vida societária, com graves conseqüências e repercussões para o mercado.
A contrário senso, portanto, pugnava a companhia pela existência e manutenção do acordo de acionistas como ajuste firmado estritamente entre as próprias partes signatárias, sem possibilidade de repercussão sobre a sociedade e os demais acionistas não pactuantes.
Preliminarmente, é de se observar que o acordo de acionistas, incontroversamente um contrato e como tal regulado pela lei, consoante doutrina mais abalizada, exige duas providências para que sua eficácia não se limite a res inter alios, mas sim obrigue a terceiros, entre eles a própria companhia, que, em regra, não é parte do ajuste, mas apenas toma formalmente ciência da sua existência após a celebração e o arquivamento do instrumento em sua sede.
Tais providências de efetividade encontram-se reguladas no caput e no § 1o do art. 118 da Lei n° 6.404/76, e são: a) o arquivamento do acordo de acionistas na sede da companhia, para obrigá-la à observância das suas cláusulas e condições, entre aquelas especificamente previstas no próprio caput do mencionado dispositivo legal; e b) a averbação do acordo de acionistas nos livros de registros e nos certificados das ações, se emitidos, para que o ajuste seja oponível aos terceiros que não tomaram parte na avença.
Assim sendo, está claro que, relativamente a todos os terceiros não participantes do acordo de acionistas, a averbação das suas obrigações prevista no § 1º do art. 118 da Lei Societária é condição sine qua non de eficácia, conforme a doutrina mais abalizada:
"O acordo, para que seja observado pela companhia, deverá ser arquivado na sua sede. A oponibilidade a terceiros, depende, entretanto, de averbação nos livros de registro (nominativas) e nos controles da instituição financeira responsável (ações escriturais), ficando as ações assim averbadas excluídas das negociações de mercado (bolsa ou balcão).
O simples arquivamento na sede da companhia não é, portanto, suficiente para alcançar terceiros, aos quais somente se opõem as obrigações e os ônus averbados nos registros. Inexistentes as averbações, a obrigação da sociedade, de observar o acordo, sucumbirá sempre que se defrontar com interesse de terceiros." [8]
A literalidade do caput do art. 118, por seu turno ("... deverão ser observados pela companhia quando arquivados em sua sede."), não deixa dúvidas acerca da obrigação da companhia de proceder ao arquivamento do acordo de acionistas, a pedido dos interessados, e respeitar integralmente suas disposições, sem que lhe tenha sido facultado pela lei o exercício de qualquer juízo de valor acerca da oportunidade ou conveniência daquelas providências.
Em verdade, a inexistência de discricionariedade da companhia em relação às providências previstas no art. 118 justifica-se em função da própria natureza de registro público da qual se reveste essa sua atuação específica.
A recusa da companhia no arquivamento e na averbação do acordo de acionistas, em tal hipótese, a rigor, não estava calcada na suposta ausência de requisitos estritamente legais que impediriam tais providências, sendo certo que estes requisitos estão limitados àqueles previstos no art. 118, e em mais nenhum outro, haja vista tratar-se do único dispositivo legal que regula o instituto em questão.
A recusa, em verdade, estava fundada menos em razões estritamente jurídicas, e mais em convicções subjetivas e questionáveis, de que o acordo não deveria ser arquivado e averbado (e não que o acordo não poderia ser arquivado e averbado), o que, conjugado à tenacidade da companhia na defesa judicial da sua postura, evidenciava o juízo de valor, não facultado à companhia pela Lei Societária.
Tanto é assim que a companhia permitiu-se invocar e interpretar dispositivos legais e institutos jurídicos que, a rigor, sequer estavam elencados na Lei Societária como intimamente relacionados com a específica e estreitíssima questão que estava posta para a análise dela, companhia, naquela situação, qual seja, a formação do juízo estritamente de realidade para identificação, no acordo de acionistas, daqueles elementos previstos no art. 118.
A prova de que a companhia havia empreendido verdadeiro juízo de valor, vedado em lei, para justificar a recusa no arquivamento e na averbação do acordo de acionista estava na alusão feita à suposta conturbação da vida societária que tal providência acarretaria, gerando pretensas dúvidas nos acionistas e no próprio mercado, por se tratar de companhia aberta.
Qualquer eventual comparação com o mister desempenhado pelos oficiais dos registros públicos, embora pertinente como paralelo à atuação da companhia, principalmente no que concerne à realização de ato equiparado a ato administrativo, e, portanto, vinculado, decorrente do desempenho de função pública que lhe foi atribuída pela lei, e do qual nenhuma companhia pode se afastar ou recusar a sua realização, revelar-se-ia, entretanto, carecedora de maior fundamento, diante da constatação de que, ao contrário dos oficiais dos registros públicos, aos quais não é dado recusar ou negar, pura e simplesmente, a prática do ato administrativo vinculado, mas sim suscitar a respectiva dúvida ao juízo competente para dirimi-la, a companhia optara, no caso concreto, por exercer, ao seu exclusivo alvedrio, juízo de valor não facultado pela lei, quando, cautelarmente, poderia, mutatis mutandis, ter suscitado a questão no âmbito da autoridade administrativa competente, qual seja, a Comissão de Valores Mobiliários.
A tese de que poderia ter sido feito o registro do acordo de acionistas no cartório do Registro de Títulos e Documentos, por sua vez, não tinha como prosperar, em linha com o entendimento acima, particularmente porque, ao cominar à companhia a atribuição de promover o arquivamento e a averbação do instrumento, a lei criou, à toda evidência, um registro próprio e específico para o acordo de acionistas, sem o qual os efeitos que lhe são inerentes jamais se produziriam.
É de razoável sabença que a Lei dos Registros Públicos enumera vários tipos de registros que são mandatórios, sob pena de invalidade dos respectivos atos e negócios jurídicos. O registro previsto no art. 127, inciso I, da Lei n° 6.015/73, porém, é meramente facultativo e residual em relação aos demais registros atinentes a atos e fatos jurídicos, na medida em que, por aquele dispositivo, todo e qualquer instrumento particular pode (a Lei dos Registros Públicos, no particular, não alude a dever, como acontece no art. 118 da Lei n° 6.404/76) ser transcrito, mas apenas como prova das obrigações convencionais lá previstas, e com o intuito óbvio de preservação do documento contra os inevitáveis efeitos do tempo, preservação que, na essência, também é um dos efeitos naturais de qualquer registro público (arts. 22 e seguintes da Lei n° 6.015/73).
Parece claro, portanto, que tão somente o arquivamento do acordo de acionistas na sede da companhia, com a concomitante adoção das providências de averbação, teria o condão de produzir os efeitos previstos no caput e no § 1º do art. 118 da Lei n ° 6.404/76.
A questão da validade e da eficácia do acordo de acionistas celebrado nas circunstâncias acima mencionadas cingia-se a possibilidade ou não da estipulação de condição suspensiva no pacto, verdadeiro ponto nodal da controvérsia.
Ao nosso ver, dita condição suspensiva não eivaria de nulidade o ajuste, muito menos inviabilizaria seu arquivamento e averbação, estando plenamente legitimada a signatária do acordo a promover a defesa judicial dos seus interesses, nos termos do art. 130 do vigente Código Civil, que, em face dos seus termos bastante claros, sequer dá margem a elucubrações.
O acordo de acionistas em questão previa que seus efeitos estariam condicionados à ocorrência de fato eventual, futuro e incerto - a desconstituição da holding, com a conseqüente mudança da estrutura societária da companhia controlada - que permitiria que todos os signatários do acordo pudessem exercer seus direitos de voto como acionistas diretos.
Desde logo, verificou-se a inexistência da alegada concomitância de acordos de acionistas, que geraria, na visão da companhia demandada, em primeiro plano, a impossibilidade e a ineficácia da convenção, e, em segundo plano, a alegada conturbação da vida societária.
Isto porque o acordo de acionistas anteriormente celebrado no âmbito da holding, e que precedia o acordo objeto da demanda, continuaria prevalecendo e em nada seria prejudicado pela existência do segundo acordo, justamente porque a condição suspensiva ajustada neste último impedia qualquer concomitância das obrigações.
Acaso verificada a condição suspensiva avençada para eficácia do acordo de acionistas – desconstituição judicial da holding, cuja existência, portanto, estava sob condição resolutiva - o primeiro acordo estaria de pleno direito resolvido, passando a subsistir, com plena eficácia, o segundo acordo objeto da demanda e impugnado veementemente pela companhia.
Como visto, os acordos de acionistas jamais teriam vigência nem eficácia concomitantes, pois um excluiria automaticamente o outro, em face das próprias circunstâncias envolvidas, atentando contra a própria companhia sua postura recalcitrante quanto ao arquivamento do instrumento posto em dúvida.
A resistência da companhia representou, essencialmente, a inobservância do disclosure inerente às boas práticas de governança corporativa, na medida em que, ao formar juízo de valor sobre o acordo de acionistas, recusando seu arquivamento, impediu o amplo conhecimento das convenções pactuadas pelos signatários no âmbito da sociedade.
Não basta, aliás, tornar públicos apenas os acordos de acionistas formalmente comunicados à companhia, ou dos quais ela tenha tomado parte, como interveniente. As boas práticas recomendam que se vá mais longe, devendo o administrador, cônscio da relevância da transparência, divulgar espontânea e prontamente ao corpo societário, às bolsas de valores e ao mercado todos os acordos dos quais, pela via direta ou indireta, tenha ou venha a ter conhecimento [9], socializando a informação e a facilitando a tomada de decisão, pelos acionistas e stakeholders, quanto à conveniência/oportunidade de manutenção dos investimentos já existentes, ou de ingresso de novos.
V – CONCLUSÃO.
Como ressaltado de início, governança corporativa é uma questão humana, e seu aprendizado exige prática.
Nosso arcabouço jurídico, que deveria servir de instrumento desse aprendizado, conforme revelaram os três casos concretos aqui estudados, é utilizado em determinadas situações como meio para negar a aplicação dos princípios de governança, o que, se por um lado justifica o trabalho de alguns profissionais do Direito, por outro lado contribui para o acirramento das relações entre os acionistas, tornando ainda mais arraigada a "cultura do dono" [10] em nossas empresas e afastando novos investidores, com claros óbices ao desenvolvimento do nosso mercado de capitais.
NOTAS
1 COMENTÁRIOS Á LEI DE LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS, Marçal Justen Filho, Editora Dialética, 5ª edição.
2 DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO, Hely Lopes Meireles, Editora Revista dos Tribunais, 16ª edição.
3 Hely Lopes Meirelles, cit.
4 ASPECTOS MODERNOS DO DIREITO SOCIETÁRIO, Nelson Eizirik, Editora Renovar.
5 DIREITO SOCIETÁRIO & MERCADO DE CAPITAIS, Luiz Leonardo Cantidiano, Editora Renovar.
6 ASPECTOS MODERNOS DO DIREITO SOCIETÁRIO, Renovar, 1992, pág. 3.
7 Dita condição suspensiva consistia na estipulação de uma cláusula de vigência e eficácia que se subordinava ao fato, futuro e incerto, de ser decretada judicialmente a extinção da holding, o que implicaria o desfazimento do acordo de acionistas firmado naquela esfera de controle indireto.
8 José Edwaldo Tavares Borba, Direito Societário, Freitas Bastos Editora, 3ª Edição.
9 Conforme dispõem a Cartilha de Recomendações da CVM sobre Governança Corporativa, item I.3, e Regulamento do Novo Mercado da BOVESPA.
10 Conforme artigo de Guilherme N. Dale, in A DIMENSÃO HUMANA DA GOVERNANÇA CORPORATIVA, PESSOAS CRIAM AS MELHORES E AS PIORES PRÁTICAS, Editora Gente, 2003.