Sumário: 1. Introdução 2. Do Contrato de Fiança - 3. Do Contrato de Locação: 3.1. O Dever de Boa-Fé: 3.1.1. A Demora na Cobrança dos Aluguéis; 3.1.2. A Necessidade de Comunicação do Fiador ante a Inadimplência do Locatário - 4. A Possibilidade de Utilização da Ação de Despejo pelo Fiador 5. Bibliografia.-6.Notas
1. Introdução
Dentre as várias modalidades de garantia que o locador de imóveis pode exigir do locatário quando da formalização do Contrato de Locação (Lei nº 8.245/91, artigo 37 e incisos), é indiscutível que a fiança continua a ser, ainda hoje, a mais adotada entre os contratantes.
Isso se dá, talvez, em virtude do excessivo valor que o cidadão comum devota à propriedade imobiliária dado cultural indiscutível -, fruto do apego demasiado que desde os nossos antepassados cultivamos em relação à propriedade da terra, símbolo de status, poder e segurança.
Não obstante ser do conhecimento dos leigos e dos operadores do direito os riscos que a prestação de fiança poderá gerar, a sua utilização pelos locadores, locatários e fiadores ainda é capaz de gerar um sem-número de problemas, os quais sequer são vislumbrados pelos contratantes no momento da celebração da locação.
Com efeito, ousamos dizer que a grande maioria dos fiadores sequer tem conhecimento dos efeitos que os contratos de fiança poderão acarretar-lhes, efeitos esses que na prática têm-se demonstrado fontes infindáveis de angustia e desassossego.
Nesse contexto, é indiscutível que o fiador tem sido sempre a parte mais prejudicada da relação contratual: além de nada receber em troca da outorga da fiança são, em geral, contratos de favor(1) firmados em benefício de parentes e amigos -, em caso de inadimplemento do locatário são chamados à responsabilidade para honrar os compromissos que restaram impagos.
Diante desse quadro que se avoluma dia após dia, a incômoda situação dos fiadores não pode ficar sem resposta. Daí termos resolvido tecer algumas considerações acerca de uma questão que ocorre com muita freqüência na vigência dos contratos de locação garantidos por fiança, e com a qual nos deparamos em nossa militância profissional: a demora do locador em cobrar os aluguéis devidos pelo locatário.
Essa demora na realidade negligência - na maior parte das vezes leva à ruína os fiadores, pois os locadores não se preocupam em ingressar com ação despejo contra o locatário inadimplemente já que os contratos encontram-se garantidos por fiança. No final, o único prejudicado é o fiador, pois o locatário se utiliza do imóvel sem pagar, no aguardo de vir um dia a ser demandado, enquanto o locador não se preocupa em cobrá-lo pois sabe que o fiador pessoa solvente - é quem irá responder pelos débitos em última instância.
Devido a isso o fiador paga dívida a que não concorreu, ciente muitas das vezes de que nada receberá do locatário pelo simples fato de o mesmo não possuir patrimônio suficiente, pois se o possuísse desnecessária teria sido a outorga da garantia.
Por essa razão, passamos a defender que ao fiador seja outorgada legitimidade ativa extraordinária para a propositura de ação de despejo por falta de pagamento contra o inquilino improbo em virtude da negligência do locador quiçá omissão dolosa -, o que entendemos ser plenamente viável à luz do ordenamento jurídico pátrio.
Para nós, tal postura servirá para prestigiar ainda mais o instituto da fiança, possibilitando ao fiador a utilização de meio expedito à resolução da locação, com vistas à pôr um fim à sua responsabilidade.
2. Do Contrato de Fiança
De início, breves considerações teceremos sobre o contrato de fiança.
Fiança é o contrato acessório, pelo qual uma ou mais pessoas obrigam-se, perante o credor, a cumprir a obrigação do devedor, se este não o fizer no prazo e forma legais.(2)
Com efeito, o contrato de fiança é caso típico de estipulação em favor de terceiros: o fiador garante, perante o credor, as obrigações assumidas pelo devedor ou afiançado.
Do pacto fidejussório não participa o devedor, pois o contrato de fiança é entre o fiador e o credor, e não entre o fiador e o afiançado.(3)
É o que doutrina o insuperável Pontes de Miranda(4):
"O negócio jurídico bilateral é entre o fiador e o credor, que é o outorgado. Nenhuma ingerência jurídica tem, no contrato, o afiançado, dito devedor principal. De regra, o devedor principal promete a fiança, em cláusula do contrato de que se gera a dívida, ou em pacto adjecto, ou em negócio jurídico unilateral, ou bilateral, ou plurilateral, o que é quod plerumque fit se a dívida é de origem extranegocial. Não raro o devedor apenas manifesta a sua vontade de ter fiador, porém não se pode dizer, com exatidão, que aí "consinta" ou "assinta", salvo se em algum negócio jurídico foi estipulado que as fianças, obtidas pelo credor, teriam de ser concluídas com ciência e assentimento do devedor principal. No Código Civil, diz o art. 1.484: "Pode-se estipular a fiança, ainda sem consentimento do devedor". Entende-se: sem manifestação de vontade do devedor, ou mesmo contra a sua vontade. Alguém pode afiançar a dívida do desconhecido, ou ser desconhecido quem afiançou. Conforme teremos de frisar, desconhecido pode ser o próprio credor, desde que não se elidam com isso, a bilateralidade do negócio jurídico."
No mesmo sentido assesta a professora Maria Helena Diniz(5):
"A fiança é um negócio entabulado entre credor e fiador, prescindindo da presença do devedor e podendo até mesmo ser levado a efeito sem o seu consenso, por não ser parte na relação jurídica fidejussória."
Não obstante a inexistência de participação do afiançado (in casu locatário) na formalização do contrato de fiança entabulado entre o fiador e o credor (in casu locador) do devedor, para nós não há duvidas de que as relações contratuais são interdependentes, o que implica em dizer que as ações ou omissões de conduta de um dos partícipes da relação contratual gerará efeitos em relação aos demais, v.g., se o locatário restar inadimplente o fiador poderá ser chamado a honrar o compromisso, se o locador conceder moratória ao devedor cessará a responsabilidade do fiador etc.
Desta forma, entendemos que todos os participantes dos contratos de locação e de fiança (locador, locatário e fiador) têm real interesse jurídico em fiscalizar a conduta dos demais parceiros contratuais, pois os efeitos da ação ou omissão de alguns certamente repercutirão nas esferas jurídicas dos demais.
Daí a importância de ser analisado o contrato de locação à luz do princípio da boa-fé.
3. Do Contrato de Locação
Com relação ao contrato de locação, não pretendemos discutir nesta oportunidade o seu conceito e disciplina legais, mas apenas procuraremos visualizar a aplicação do princípio da boa-fé em face da execução contratual.
3.1. O Dever de Boa-Fé
Segundo a doutrina civilista clássica, boa-fé é a intenção pura, isenta de dolo ou malícia, manifestada com lealdade e sinceridade, de modo a não induzir a outra parte ao engano ou erro.(6) É a chamada boa-fé subjetiva, um estado de ignorância sobre características da situação jurídica que se apresenta, suscetível de lesionar os direitos de outrem.
Atualmente, a noção clássica de boa-fé subjetiva vem cedendo espaço à sua face objetiva, a qual leva em consideração a prática efetiva e as conseqüências de determinado ato em lugar de indagar sobre a intenção do sujeito que o praticou. A boa-fé objetiva diz respeito a elementos externos à norma de conduta, que determinam como se deve agir. É um dever de agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de correção, lisura, honestidade.(7)
Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação "refletida", uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização do interesse das partes.(8)
De acordo com Karl Larenz(9), "El principio de la "buena fe" significa que cada uno debe guardar "fidelidad" a la palabra dada y no defraudar la confianza o abusar de ella, ya que ésta forma la base indispensable de todas las relaciones humanas; suppone el conducirse como cabía esperar de cuantos con pensamiento honrado intervienen en el tráfico como contratantes o participado en él en virtud de otros vínculos jurídicos. Se trata, por lo tanto, de un módulo "necesitado de concreción" que únicamente nos indica la dirección en que hemos de buscar la contestación a la cuestión de cuál sea la conducta exigible en determinadas circunstancias. No nos da una regra apta para ser simplemente "aplicada" a cada caso particular y para leer en ella la solución del caso cuando concurran determinados presupuestos. Sino que en cada supuesto se exige un juicio valorativo del cual deriva lo que el momento y el lugar exijan. Pero este juicio no se obtiene a través del criterio subjetivo del que hace la apreciación en caso de litígio, por conseguinte, del juez, sino que se tomará como módulo el pensamiento de un intérprete justo y equitativo, es decir, que la sentencia ha de ajustarse a las exigencias generalmente vigentes de la justicia, al criterio reflejado en la conciencia jurídica del pueblo o en el sector social al que correspondan los participantes (p. ej., comerciantes, artesanos, agricultores), en tanto ello no sea contrario a las exigencias y al contenido objetivo de los valores descritos en las palabras "fidelidad" y "crédito" (es decir, confianza). A este juicio cooperan los usos y concepciones ya existentes en el tráfico habiendo de investigarse a su vez si coinciden con aquellas supremas exigencias y de otra parte el ejemplo y modelo que la jurisprudencia ofrece en la valoración de casos análogos o equiparables." (Grifamos)
A boa-fé objetiva tem duas funções principais: cria deveres secundários de conduta (anexos ou acessórios) e impõe limites ao exercício de direitos.
Em decorrência desse princípio, são reconhecidos deveres correlatos ou laterais em todas as espécies contratuais, que se incorporam às relações negociais, exigindo aos contratantes comportamentos adequados, principalmente em vínculos que se estendem no tempo.(10)
Uma das funções do princípio da boa-fé objetiva diz respeito aos chamados deveres anexos ou secundários. Vejamos.
Há, no contrato, o dever bilateral de proteção, que impede que uma das partes cause à outra algum dano, em razão da sua atividade. Existem, assim, deveres do credor, que não são deveres para consigo mesmo, mas sim deveres jurídicos. Muitos deles consistem em conduta determinada, em comunicar algo, em indicar alguma circunstância, em fornecer informações, cuja omissão pode causar dano ao outro figurante.(11)
O dever de proteção consiste em não causar danos ao patrimônio e à pessoa do outro contratante. O dever de informação tem duas acepções, uma positiva e uma negativa. A primeira importa na prestação das informações necessárias ao conhecimento da contraparte, ao passo que a segunda veda a omissão de elementos essenciais ao pleno andamento do contrato. Por sua vez, o dever de lealdade impõe que os contratantes portem-se de forma honesta e evitem comportamentos que destoem do vínculo de cooperação contratual. Este dever também tem faces positiva e negativa; no primeiro caso deve-se proceder de tal forma e, no segundo, devem-se evitar comportamentos que desvirtuem o objetivo do contrato.(12)
Dentro dessa nova visão oriunda da aplicação do princípio da boa-fé objetiva, os contratos passam a ser considerados não apenas como instrumentos de transferência de riquezas, mas como meios idôneos de que dispõem as partes para atingir os seus reais e socialmente legítimos interesses, uma vez que os contratos existem porque são úteis, na condição de que sejam justos.(13)
3.1.1. A Demora na Cobrança dos Aluguéis
No transcorrer do contrato de locação, ante a inadimplência do locatário o locador dispõe da chamada ação de despejo por falta de pagamento, a qual objetiva o desfazimento do vínculo contratual em virtude do impagamento dos aluguéis, o que se encontra em consonância com a regra contida no artigo 1.092, do Código Civil.
Apesar de dispor de ação de despejo, e até mesmo de ação de execução, não raro o locador, não obstante o impagamento dos aluguéis, deixa de cobrar o inquilino impontual por muitos meses, pois sabe que se o mesmo não pagar o fiador o fará.
Diante disso, a dívida oriunda do contrato de locação se avoluma dia após dia, acrescida de multas, juros e correção monetária, tudo isso ocorrendo sob os olhos benevolentes do locador, o qual não manifesta interesse em cobrar a dívida tão cedo pois a vantagem que por ele será auferida por vezes superará em muito as aplicações financeiras populares que remuneram o dinheiro a juros baixos. Enquanto isso, a cada novo impagamento do devedor a multa mensal poderá chegar a 20% (!), o que em parte explica o porquê da omissão de alguns locadores: tornam-se sócios do inquilino na ruína do fiador!
Em sendo assim, entendemos que a omissão do locador em cobrar os aluguéis devidos pelo inquilino dentro de prazo razoável se nos afigura abuso de direito ou demora desleal na cobrança, o que não pode ser admitido como justo ou legal à luz do ordenamento jurídico vigente.
Em artigo lúcido à respeito do tema, advertiu o saudoso advogado Biasi Ruggiero(14):
"Nesta fase da economia nacional, a oferta de imóveis para locação é maior do que a procura. Então, alguns locadores, quando protegidos por fiança idônea, deixam, malandramente, que o inquilino permaneça em débito meses a fio, com o objetivo, indecente, de manter o imóvel ocupado e depois surpreender o fiador com astronômico débito.
Se o imóvel objeto da locação é dos vulgarmente conhecidos como "micados", ou seja os que não despertam nenhuma atração mercadológica, o fiador pode se preparar porque, mais dia menos dia, será surpreendido por tenebrosa cobrança.
Por conhecer esse abuso, as apólices de seguro, quando substituem a fiança, obrigam o locador a não aguardar mais do que um mês para mover o despejo por falta de pagamento. Os fiadores que assumem a garantia, com a intenção de honrá-la, excluídos, evidentemente, os nefastos profissionais, assinam contrato impresso em que, invariavelmente, consta a renúncia ao benefício do art. 1.500 do Codigo Civil. Se de um lado a ninguém é dado alegar a ignorância da lei, de outro, há princípios, como o da boa-fé e o da cognoscibilidade, resgatados explicitamente pelo Código de Defesa do Consumidor, que precisam ser respeitados. O infeliz renuncia sem saber a que está renunciando. Não tem conhecimento técnico, portanto, falta cognoscibilidade. Entra como Pilatos no Credo." (Grifamos)
Muito embora a demora desleal do locador seja há muito tempo conhecida, a mesma sempre foi tolerada.
Com efeito, não se nega ao locador o direito de cobrar o inquilino ou até mesmo o fiador. Muito pelo contrário. O que se quer evitar é que o direito de cobrar seja exercido de forma irrazoável ou tardia, o que na maioria das vezes não beneficia o credor porém sempre prejudica o fiador!(15)
O direito de cobrar não pode ser tido como absoluto, razão pela qual o fiador não pode ficar à mercê do arbítrio do locador(16) que já deveria adotado todas as medidas necessárias ao despejo do imóvel, o que não não o fez tampouco o fará por mero capricho, espírito emulativo ou até mesmo negligência.
O absolutismo do direito choca-se com a realidade dos fatos, e, por isso, sua aceitação seria força propulsora do desequilíbrio social.(17)
Nesse contexto, não se pode deixar de considerar a relatividade do exercício dos direitos subjetivos, pois que os mesmos existem como um meio para a realização da paz social, e não como um instrumento para a satisfação de interesses puramente individuais.(18)
O exercício arbitrário ou desarrazoado do direitos subjetivos colide frontalmente com a moderna noção de obrigação, a qual é tomada como o processo(19) em que credor e devedor devem prestar colaboração e esforços mútuos tendo por fim o adimplemento. Em outras palavras o contrato não envolve só a obrigação de prestar, mas envolve também uma obrigação de conduta!(20)
Tal noção tem por base o princípio da boa-fé objetiva(21), standard de comportamento leal, honesto e probo que deve viger de acordo com as expectativas da sociedade, eis que em verdade se passa é que todos os homens têm de portar-se com honestidade e lealdade, conforme os usos do tráfico, pois daí resultam relações jurídicas de confiança, e não só relações morais.(22)
Liberar os contratantes de cumprir seus deveres gerais de conduta, significaria afirmar que na relação contratual os indivíduos estão autorizados a agir com má-fé, a desrespeitar os direitos do parceiro contratual, a não agir lealmente, a abusar no exercício de seus direitos contratuais, a abusar de sua posição contratual preponderante, autorizando a "vantagem excessiva" ou a lesão do parceiro contratual somente porque as partes firmaram um contrato.(23)
Diante dessa situação o Direito não pode omitir-se, razão pela qual deverão ser aplicadas as doutrinas da venire contra factum proprium, da supressio ou a dos atos próprios, a fim de permitir ao fiador a utilização da ação de despejo por falta de pagamento com vistas à acionar diretamente o locatário-afiançado se acaso o locador tiver incorrido em demora desleal na cobrança de aluguéis do inquilino.
No Brasil, o douto Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior,(24) em obra ímpar, já explicara a importância que as referidas teorias possuem no âmbito das relações contratuais:
"A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte. Aquele que vende um estabelecimento comercial e auxilia, por alguns dias, o novo comerciante, inclusive preenchendo pedidos e novas encomendas, fornecendo o seu próprio número de inscrição fiscal, não pode depois cancelar tais pedidos, sob alegação de uso indevido de sua inscrição. O credor que concordou, durante a execução do contrato de prestações periódicas, com o pagamento em lugar ou tempo diverso do convencionado, não pode surpreender o devedor com a exigência literal do contrato. Para o reconhecimento da proibição é preciso que haja univocidade de comportamento do credor e real consciência do devedor quanto à conduta esperada.
Na supressio, um direito não exercido durante um determinado lapso de tempo não poderá mais sê-lo, por contrariar a boa-fé. O contrato de prestação duradoura, que tenha passado sem cumprimento durante longo tempo, por falta de iniciativa do credor, não pode ser exigido, se o devedor teve motivo para pensar extinta a obrigação e programou sua vida nessa perspectiva. O comprador que não retira as mercadorias não pode obrigar ao vendedor a guarda dos bens por tempo indeterminado. Enquanto a prescrição encobre a pretensão pela só fluência do tempo, a supressio exige, para ser reconhecida, a demonstração de que o comportamento da parte era inadmissível, segundo o princípio da boa fé. A surrectio é a outra face da supressio, pois consiste no nascimento de um direito, sendo nova fonte de direito subjetivo, conseqüente à continuada prática de certos atos. A duradoura distribuição de lucros de sociedade comercial, em desacordo com os estatutos, pode gerar o direito de recebê-los do mesmo modo, para o futuro." (Grifamos)
O professor Cunha de Sá(25), em importante obra da literatura jurídica portuguesa, em comentários sobre a aplicação da doutrina do abuso de direito venire contra factum proprium - no direito alemão, deixou assentado que:
"Julgando-se que o abuso de direito se traduz num acto antijurídico, faz-se derivar dele, consoante as circunstâncias concretas da hipótese em causa, a obrigação de indemnizar, admite-se contra ele a legítima defesa, reconhece-se a legitimidade do pedido de omissão do exercício abusivo do direito, dá-se a excepção de dolo contra o que abusivamente faz valer uma pretensão e entende-se que o abuso deve ser sempre apreciado ex officio, pois é ao tribunal que compete determinar os limites de exercício do direito e a ideia de abuso não é senão o retirar precisamente esses limites do conteúdo do direito.
No campo da excepção de dolo, como aplicação da proibição geral de venire contra factum proprium, um dos institutos que mais largamente tem sido objecto de elaboração pela jurisprudência alemã é o da Verwirkung, o qual entre nós foi chamado, embora sem qualquer preocupação de rigor, de <caducidade do direito> e a que prefiro, por mais expressiva e apropriada, a designação de <exercício inadmissível do direito>. Trata-se de proibir que, no âmbito de uma relação pré-existente, o titular de um direito o venha fazer valer em contradição com a própria conduta anterior, por tal se afigurar inadmissível com a boa fé vigentes na relação, que seriam violados por tal exercício nomeadamente, se a conduta anterior do titular, objectivamente interpretada, legitimava a convicção de que o direito já não seria exercido (o titular, por hipótese, não fazia uso dele já há muito tempo) ou nunca seria exercido por aquela forma, violadora da lei, dos bons costumes ou da boa fé. Ligado ao já citado § 242º, sobre o qual se construiu, o instituto da Verwirkung tem, no entanto, esta particularidade: o facto relativamente ao qual se vem assumir uma atitude contraditória não só se situa no âmbito de uma relação pré-existente, como consiste numa inactividade, isto é, numa omissão do exercício de um certo direito por um tempo tal que torna agora inadmissível, por contrária à boa fé, a pretensão de o vir fazer valer ou de o vir fazer valer por aquele preciso modo." (Grifamos)
Igualmente à respeito da doutrina do venire contra factum proprium, também chamada de teoria dos atos próprios, os juristas argentinos Rubén S. Stiglitz e Gabriel A. Stiglitz(26) também entendem que o exercício contraditório de direito ou a demora desleal ou injustificada do exercício de direitos na pode ser tolerada:
"La circunstancia de que un sujeto de derecho intente verse favorecido en un proceso judicial, asumiendo una conducta que contradice outra que la precede en el tiempo, en tanto constituye un proceder injusto, es inadmisible.
A la cuestión en examen se la caracteriza como una derivación necesaria e inmediata del principio de buena fe, especialmente en la dirección que la concibe como un modelo objectivo de conduta, aceptada como arquetipo por una sociedade y que recibe su impronta ética.
Examinado el principio de buena fe, advertimos que su observancia requiere que en la relacíon jurídica la parte exhiba un comportamiento leal y adecuado a la creencia y confianza despertada en la otra, manteniendo la palabra empeñada desde el proceso formativo mismo si se trata de una relación creditoria, haciendo inadmisible la contradicción com una conducta previa y propia.
Nos parece que es un imperativo des sujeto observar un comportamiento coherente, como principio básico y en todos los órdenes de sus relaciones, no solamente las jurídicas. En este campo confluyen para su identificación, y evalución y proyecciones (consecuencias), los deberes secundarios de conducta que embretan el perfil de la línea objetiva de una lógica interior congruente que hace, al cabo, que el hombre sea debe serlo fiel a sus propios actos.
La declaración de inadmisibilidad de una conducta incoherente emplazada en una pretensión, requiere indeludiblemente su comparación com outra conducta precedente y propia del mismo sujeto. La inadmisibilidad será el resultado de una tarea de interpretación, relacionando para ello la conducta propia que precede al comportamiento ulterior. Y este último será el declarado inadmisible por incoherente.
El fundamento estará dado en razón de que la conducta anterior há generado según el sentido objetivo que de ella se desprende confianza en que, qien la ha emitido, permanecerá en ella, pues lo contrario importaría incompatibilidad o contradicción de conductas emanadas de un mismo sujeto, que afectan injustamente la esfera de intereses de quien suponía hallarse protegido, pues había depositado su confianza en lo que creía un comportamiento agotado en su dirección de origen.(27)
La doctrina del acto próprio importa una limitación o restricción al ejercicio de una pretensión. Se trata de un impedimento de "hacer valer el derecho que en outro caso podría ejercitar.
Lo obstativo se apoya en la ilicitud de la conducta ulterior confrontada com la que le precede. La ilicitud reposa en el hecho de que la conducta incoherente contraría el ordenamiento jurídico considerado éste inescindiblemente, noción aplicable en el ámbito extracontractual o contractual y también, y fundamentalmente, dentro del proceso judicial y que conlleva como sanción la declaración de inadmisibilidad de la pretensión que quien intenta ponerse en contradicción com su anterior conducta deliberada, jurídicamente relevante y plenamente eficaz."(28) (Grifamos)
Ora, se o locador deixa de pedir o despejo do imóvel locado ao devedor ante a sua inadimplência, concorrendo com a sua conduta a que o mesmo fique vários meses sem pagar aluguel, entendemos inadmissível que a sua omissão venha a beneficiá-lo, não se podendo negar ter o mesmo agido com dolo ou no mínimo de forma negligente.
Daí por que ao ter assumido uma conduta contraditória com aquele que era de se esperar viesse a ter sido tomada pelo locador diligente, a postura adotada não poderá lhe aproveitar.
O jurista português Menezes Cordeiro(29), em obra destinada ao estudo da boa-fé, apresenta-nos o conceito da denominada supressio com um exemplo bastante interessante:
"Diz-se suppressio a situação do direito que, não tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa fé."
Continua o autor:
"A suppressio tem origem jurisprudencial. As suas manifestações mais antigas deram-se no domínio da venda de ofício comercial, a favor do comprador, ficando consignadas em decisões do então Reichsoberhandelsgericht. A questão esquematiza-se desta forma: os §§ 346 ss. HGB, na versão em vigor na altura, permitiam ao vendedor na compra e venda comercial, havendo mora do comprador no levantamento da coisa, a sua venda de ofício, atribuindo-lhe, ainda, uma pretensão pela diferença do preço. A lei não fixava, porém, um prazo para o exercício destas faculdades. Podia, pois, acontecer que o vendedor, dando a impressão de se ter desinteressado do contrato viesse, mais tarde, inesperadamente, a actuar as suas pretensões, de modo ruinoso para o comprador. Entendeu-se, bem, haver aí, em certas circunstâncias, uma demora desleal no exercício do direito, contrária à boa fé.(30)
Foram, no entanto, as perturbações económicas causadas pela primeira grande guerra e, sobretudo, pela inflação, que levaram à consagração dogmática definitiva da suppressio. No primeiro caso, registraram-se alterações imprevisíveis nos preços de certas mercadorias, ou dificuldades acrescidas na realização de determinados fornecimentos. Em conseqüência dessas alterações, o exercício retardado de alguns direitos levava a situações de desequilíbrio inadmissível entre as partes. O segundo, através do chamado direito da valorização monetária, marcaria, pelas aplicações permitidas à suppressio, a sua consagração definitiva.
A revalorização monetária conta-se entre os avanços mais significativos proporcionados pela boa fé à Ciência do Direito. Na sua base está a superação, por razões sociais imperiosas, do princípio nominalista, fixado por lei, através da pura acção jurisprudencial. Admitindo a possibilidade de revalorização monetária, por força da inflação, o RG protege, no essencial, a posição do credor. A suppressio vai funcionar como contrapeso dessa protecção, assegurando, desta feita, o interesse do devedor: a boa fé requer, pela equivalência das prestações e pelo equilíbrio das situações das partes, que se proceda a reajustamentos destinados a compensar a depreciação monetária; a mesma boa fé exige que as pretensões de reajustamento, quando caibam, sejam exercidas num prazo razoável, sem o que atingiriam montantes com que o devedor não poderia contar. Da extensa jurisprudência sobre a suppressio no direito de revalorização, deve salientar-se a preocupação do juiz em ponderar o interesse das duas partes em termos de equilíbrio e em apurar o efeito que, nesse equilíbrio, tem o decurso do tempo."(31) (Grifamos)
Portanto, diante do dinamismo da relação contratual, não podemos mais analisar as relações de forma estática, como se as mesmas apenas revelassem um dever de prestar. A bem da verdade, devem ser coibidos a todo custo os exercício arbitrários de direitos, pois se o exercício de direito é desviado da sua finalidade, de sua utilidade, contamina-se de malícia, afasta-se dos princípios da boa-fé, mesmo estribado em dispositivo legal que o assegure, consuma-se o abuso de direito, porque a ordem jurídica não tolera o exercício malicioso do direito.(32) A ordem jurídica não mais tolera que os direitos subjetivos sejam exercidos de forma egoísta.
Nesse sentido, aliás, inúmeros autores de outrora já condenavam a figura do abuso do direito, não obstante a lição dos doutos não ter repercutido na prática do foro, eis que o excesso ou abuso no exercício dos direitos subjetivos de certa forma sempre foi tolerado, situação essa que não pode mais ser admitida nos dias atuais, máxime após a edição do Código de Defesa do Consumidor, o qual indubitavelmente teve o mérito de renovar as discussões acerca do papel das relações jurídicas na sociedade moderna.
Dizia Carvalho Santos(33):
"O que mais pràticamente se poderá dizer repetindo a velha fórmula, acolhida pela jurisprudência francesa, segundo a qual todo direito deve ter por limite a satisfação de um interêsse sério e legítimo. Dizendo-se legítimo, entende-se, naturalmente, normal, exercido dentro dos fins sociais traçados para êle ou, para aquêle que age de boa-fé. Com razão pôde dizer o professor Orozimbo Nonato que a noção do abuso de direito vale como a afirmação da justiça contra a lei:
"Ela aparece, diz Cornil, como princípio mitigante do rigor do direito formulado."
"E porque a noção do justo é, sobretudo, moral, é em um elemento moral que a teoria do abuso do direito lança as suas raízes profundas."
"O ato abusivo mostra-se como falta de medida (reveladora de um ânimo desvestido de boa-fé) no exercício, prejudicial a outrem, de um direito próprio que, destarte, contraria, falta à sua vocação"(Revista Forense, cit. Pág. 17).
No direito moderno, pois, já não se toleram os direitos absolutos, não faltando mesmo quem sustente, quanto ao seu exercício, que todo o direito é relativo, verificando-se o abuso sempre que se verificar a ruptura do equilíbrio dos interêsses sociais em jogo." (Grifamos)
Por sua vez, assesta o mestre mineiro Darcy Bessone(34):
"Concebido assim o abuso do direito, resulta uma fórmula abstrata e geral, capaz de abranger todas as modalidades que se apresentem ao juiz. Então, reprimirá o exercício do direito com intenção de prejudicar, ou com culpa grave, equiparável ao dolo, ou por não haver sido escolhida a melhor maneira de usá-lo, ou por falta de interesse legítimo, ou por contrariar interesses gerais preponderantes, pela mesma consideração de teleologia social: em qualquer desses casos, a prerrogativa foi desviada de sua finalidade social, foi usada antifuncionalmente. Então, a nova concepção erige-se em princípio supremo, destinada a presidir ao exercício dos direitos."
Em outro tópico de sua obra, deixou assentado o ilustre professor:
"De ordinário, a sanção do abuso consiste na indenização dos prejuízos que dele resultem.
Pode, porém, excepcionalmente, consistir na nulidade do ato abusivo, na recusa de proteção a quem o pratique ou, por fim, na reforma do ato, substituindo-o por outro mais correto, como é o caso, por exemplo, do consentimento para sublocar, concedido pelo juiz, por não se fundar em motivo sério e legítimo a impugnação do locador.
A solução deve atender às circunstâncias de cada caso, determinativas da sanção a aplicar."(35) (Grifamos)
Doutrinava Noé de Azevedo(36):
"O exercício do direito, quando não é regular, quando não se conforma com o seu destino econômico e social, offendendo as exigencias da ethica, acarreta a responsabilidade de quem o pratica, obrigando-o à reparação dos danmos que causar; e essa doutrina do abuso de direito autoriza o juiz a impedir que as partes intentem ações e usem, nas differentes phases da demanda de recursos que a lei lhes dá, mas, não obstante, têm um caracter de injustiça manifesta, contrariando, manifestamente, o interesse social".
Como se vê, não podemos mais admitir que a demora desleal no exercício dum direito possa vir a beneficiar o parceiro contratual omisso.
Dentro dessa visão a que nos dispusemos a defender, cumpre apontarmos o que entendemos por prazo razoável em que o locador deverá ajuizar a ação de despejo visando a cobrança dos aluguéis devidos pelo inquilino. Para nós, esse prazo razoável seria de 30 (trinta) dias. Eis o porquê.
Com efeito, nas locações vigentes por prazo indeterminado, poderá o locatário denunciá-las com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, segundo a dicção do artigo 6º, da Lei do Inquilinato.
Por sua vez, de acordo com o artigo 57, da citada lei, o locador poderá denunciar o contrato de locação vigente por prazo indeterminado, desde que o faça por escrito, concedendo ao locatário 30 (trinta) dias para a desocupação.
A leitura dos dispositivos legais retro nos permite vislumbrar o sentido finalístico de ambos: permitir ao locador ou locatário tomar conhecimento, com um mínimo de antecedência, da intenção do outro contratante em desfazer a locação. Há claramente um dever de informação, a fim de evitar que ambos os contratantes sejam surpreendidos pela postura do parceiro contratual, o que estaria em descompasso com a necessária boa-fé que deve presidir o cumprimento dos pactos.
Assim, entendemos possível aplicar o mesmo prazo relativo à denúncia da locação previsto nos artigos 6º e 57, da Lei do Inquilinato, àquele em que o locador deverá agir para cobrar os aluguéis do inquilino inadimplente.
Neste caso, se o locatário não purgar a mora a locação será desfeita, salvaguardando-se os legítimos interesses do locador que terá o imóvel de volta, podendo locá-lo a outra pessoa - sem tornar onerosamente excessiva as obrigações do fiador que após a desocupação do imóvel terá por cessada a sua obrigação de garante.
3.1.2 A Necessidade de Comunicação do Fiador ante a Inadimplência do Locatário
Em decorrência do dever de informação derivado do princípio da boa-fé objetiva, entendemos que para permitir ao fiador verificar e controlar a postura do locador face ao inadimplemento do inquilino, o impagamento dos aluguéis deverá ser de pronto informado ao fiador pelo locador, o qual poderá ajuizar a necessária ação de despejo o que será defendido no tópico seguinte - se o locador não o fizer no prazo de 30 (trinta) dias.
Ora, se a relação contratual é vista como um processo em que os contratantes deverão auxiliar-se mutuamente com vistas à permitir o adimplemento, a existência dos deveres anexos de conduta é indiscutível, sendo de rigor a comunição da inadimplência do locatário ao fiador.
A visão teleológica e atual do Direito deve ser sempre presidida por uma lógica de solidariedade(37) e lealdade entre os parceiros contratuais, baseando-se na boa-fé e equidade, o que certamente não ocorrerá se ao fiador forem imputadas todas as conseqüências do inadimplemento do locatário, eis que os riscos contratuais deverão ser partilhados de forma justa, e não demasiadamente excessiva para um dos contraentes em prejuízo dos demais.
Os tempos são outros e a sociedade já não mais tolera o abuso de direito, o agir de forma desarrazoada, pois o direito não pode caminhar divorciado dos princípios morais que imperam na sociedade e que norteiam as consciências a conceberem os relacionamentos dentro de um mínimo de decência e pudor econômico, sob pena de se converterem estes em instrumento de pura especulação e destruição, ao invés de se tornarem fatores construtivos da riqueza nacional.(38)